Se dizes que o mundo é feito à nossa medida, não estarás a dizer que tu és feito à medida desse mundo?
Não estarás a dizer que o mundo que vês com teus olhos, É O MUNDO QUE TUA MENTE aprendeu a ver?
Se distingues o ser do não ser isso significa, afinal, que és capaz de dar uma lei ou leis dos seres?
Nunca pensaste que as ideias que se formam no teu cérebro são tributárias das ideias que flutuam por aí?
O que tem a tua pessoa de excecional, de único? Se todos somos únicos, que sentido tem essa expressão?
Somos todos iguais... Sim, se esta construção pretende ser um abreviado de «termos todos os mesmos órgãos, que funcionam de modo muito semelhante em todos os organismos, desempenham as mesmas funções, etc.?»
Não somos iguais nem únicos, somos iguais e únicos. Mas estas afirmações são simultaneamente verdadeiras: o problema estará na linearidade do discurso, da forma simplista de traduzir realidades complexas em uma sucessão de sons ou de carateres, o que é sempre uma paupérrima tradução do real.
Se o que te preocupa é a verdade, a autenticidade, a coerência... então instaura regras de bom-senso, válidas para ti, no teu quotidiano. Podem parecer rituais superficialmente, mas são diferentes na medida em que um ritual religioso é algo em que nunca se mexe, é sempre o mesmo na forma e no conteúdo. Enquanto uma regra ditada pelo bom-senso, é sempre modificável, na medida em que uma experiência venha apontar uma incoerência em relação ao fim em vista: levar a cabo uma vida equilibrada e feliz.
Contento-me com uma religião da natureza, onde cabem elementos de todas as religiões, onde cabem também elementos de todas as ciências. Assim, traduzo no tempo presente, aquilo que parecia evidente a São Tomás de Aquino e seus contemporâneos.
Mas, dentro de mim, não existe qualquer certeza, não existe uma «lei» que diga: Faz isto, não faças aquilo, etc.
Alguém diz-me, «no fundo tu tens algumas certezas, só que as omites a ti próprio» Ao que respondo, «sim, terei algumas certezas das quais eu próprio não tenho consciência, talvez tornadas inconscientes pela própria mente, ou que não é possível formular devido aos limites da palavra. Em qualquer dos casos, e como todos os homens, terei de estar no tempo presente, na minha vida concreta; não posso estar sempre ou quase, a fazer introspeção. Tenho de admitir o erro, a contradição e a parte obscura na minha mente.»
Outros dirão: «precisas de certezas, sem elas vais à deriva, ficas paralisado, podes até cometer crimes ou disparates enormes». Para esses, direi: "se a tua lei interna é tributária da lei externa, podes parecer um cidadão exemplar, ou um crente de uma dada religião, ou um cientista integral, etc. Mas, isso tudo são "capas". Se o teu universozinho se desmorona, tu não saberás como te conduzir. Não há bússola, não há credo, não há manual de instruções, nem receita: terás de ser tu próprio, quer gostes ou não. As grandes transformações na vida das sociedades, fazem vir ao de cima o que há de melhor e de pior, em cada um."
De facto, é impossível sair completamente da subjetividade da língua, quando se passa da linguagem matemática, para outro meio. Mesmo o discurso científico mais rigoroso, é um discurso e como tal, sujeito a interpretação. «O que é que o autor quis dizer com esta frase»? É frequente nos depararmos com esta interrogação, enquanto lemos um texto científico, uma comunicação, um tratado, etc.
Sem cair no subjetivismo, podemos nos guiar por uma certa dose de bom senso, de piloto automático, de empirismo. Sempre fazemos isso, quer estejamos conscientes desse facto, ou não. Mas, a vida seria impossível ou tornada tão complicada, que seria um inferno, caso nós estivéssemos sempre colocando dúvidas metodológicas. Isto não implica, de modo nenhum, que não seja necessário colocar estas tais dúvidas metodológicas, num ou noutro momento da nossa busca, da nossa pesquisa.
Porém, «não somos animais racionais, mas racionalizadores» (Robert A. Heinlein): quer dizer que nos julgamos racionais, mas agimos com frequência impulsionados por paixões, por preconceitos, etc.
O animal racional, não é sequer desejável. É absurdo, na medida em que se crê igual ou superior a Deus-Natureza. O animal, simplesmente animal, não tem este tipo de confusões. Tais confusões seriam letais para ele, impeditivas da sua sobrevivência e de prosperar o suficiente para deixar descendência (segundo o modelo de evolução darwiniana, ou outro). Os reflexos, as cadeias de ações estereotipadas, etc. são comportamentos tão selecionados e herdados, como as características físicas dos animais.
Nós - humanos - não somos destituídos de reflexos, mas somos tributários de uma longa aprendizagem, que tem como principal objetivo, não confessado na maior parte dos casos, fazer com que entremos dentro da norma do grupo.
Lamento que as pessoas de hoje não tenham quase nunca um treino em filosofia, não a soma de clichés e de livros de texto, que fazem as vezes de conteúdo dos programas de filosofia, do ensino secundário à universidade. Apenas reforçam preconceitos, de tal maneira, que é mais difícil promover o filosofar em alguém que «tem luzes» (ou seja, que as julga ter!) , do que nalguém que esteja completamente em branco neste domínio.
Sim, vou ao ponto de ser apologista da ignorância, em vez do atafulhar as mentes jovens com falsos conceitos, falsas certezas, e com visões acríticas e dogmáticas das ciências. É um processo de reprodução do erro, não um processo pedagógico; este último seria algo como encaminhar o aluno a ir - por si só - descobrir os conceitos-chave.
Primeiro, é preciso perceber o que se deseja; se é a conformidade à norma, ou se é a emancipação, a capacidade de autonomia em todos os domínios, da vida prática aos saberes (incluindo os saberes teóricos, claro). A escola de «massas», do século XIX, XX e XXI é um doutrinamento das «massas».
Quanto a mim é inútil quase tudo o que «se aprende» em situações de educação formal. Há necessidade de destruir o edifício da educação estatal ou para- estatal, visto que os programas, etc. continuam a ser obrigatoriamente os que o Estado impõe.
A ilusão é contínua, ao se hierarquizar as diversas etapas, do «primário» ao «superior»: uma escala de graduações em que supostamente o aprendiz é cada vez mais apto, até chegar ao topo. Uma perfeita escala hierárquica, conducente a que se veja a vida em sociedade assim mesmo. Há os mais «evoluídos» e os «menos», os que atingiram um grau «mais elevado» que outros, etc.
A academia e as instituições de ciência (institutos, laboratórios, etc.) estão apenas interessadas em subsistir e prosperar para elas próprias; «sabem» que só o poderão fazer, satisfazendo as exigências do poder, não os «cidadãos em geral», não «os desafios que se colocam ao conhecimento», etc... É preciso distinguir a realidade, dos «floreados» que despejam sobre nós.
O paradoxo é que apenas nós próprios podemos estudar o pensamento de filósofos, sábios, cientistas, prosadores, poetas, etc. usando a nossa curiosidade, buscando quais foram as respostas que eles deram ou esboçaram, etc.. Mas isto tudo, em simultâneo com o desenvolvimento de uma metodologia própria, ancorada na observação do real, não numa tradição, seja ela qual for. Pode-se recorrer a várias tradições, mas no sentido de extrair delas aquilo que nós consideramos interessante. Isso chama-se apropriação do saber e é completamente diferente do «engolir e regurgitar» que nos impingem como «o saber».
Gosto de contar a história verdadeira de um Jardineiro do Jardim Botânico, da Faculdade de Ciências de Lisboa, que acompanhava as saídas de estudo em Ecologia Vegetal: ele sabia muito mais da identificação das espécies do que os assistentes da faculdade, que acompanhavam os alunos. Era de tal maneira, que eles - assistentes e alunos - iam perguntar-lhe se conseguia identificar uma espécie que eles tinham dificuldade em identificar. Este jardineiro era modesto, sabia muito, mas não se «armava» por isso. Tinha muito mais prática que qualquer um de nós: sabia distinguir as características das várias espécies de plantas. Fiquei com uma grande lição para toda a vida: vê-lo atuar, em harmonia com os docentes!