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domingo, 11 de fevereiro de 2024

A RADICALIDADE DO PENSAMENTO DE FRANCIS COUSIN

 Acabei de visualizar um recente vídeo de entrevista do filósofo marxista radical Francis Cousin. Este inspirou-me a escrever algo novo.

                       

Na verdade, a atualidade não se pode entender, em profundidade, seja qual for a escola de pensamento a que se pertença, se não houver uma compreensão aprofundada do movimento da História.
Este movimento da História baseia-se, na visão de Francis Cousin, na evolução do valor de troca da mercadoria. Como marxista que é, defende que há uma diminuição inelutável, no longo período, da taxa de lucro, durante o processo produtivo e durante todo o circuito da mercadoria, enquanto tal. Tenho contestado a inelutabilidade dessa diminuição tendencial, essa «lei» do marxismo clássico. Já expliquei em detalhe, porque considerava que tal «lei» não existia, na verdade (ver: https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2022/03/sera-queda-da-taxa-geral-de.html) .

Mas, entendo a retórica de Francis Cousin e reconheço-lhe certo grau de coerência. Não sou marxista e, no entanto, não tenho complexos em considerar que os processos materiais, nomeadamente, a produção de utensílios, de géneros alimentares, etc., resultantes das indústrias humanas, desde os alvores da História - ou seja, desde o neolítico - tiveram um papel de grande importância, não apenas na geração de um excedente de alimentos facilmente estocáveis, como os cereais, mas também a definição de uma primeira separação de tarefas, a existência de agricultores, de pastores, de artesãos, de soldados, de sacerdotes. A perpetuação destes grupos ia de par com uma estratificação social e logo uma divisão assimétrica da riqueza (sob forma de excedentes) produzida.
Mas, a criação de valor de troca, em si mesma, o método de produção, a abundância com que é produzida, a utilização de instrumentos mecânicos ou outros, que multiplicam a capacidade produtiva dos indivíduos, não determina, só por si, a estrutura política e social na sociedade onde tal valor de troca é produzido. Penso que a apropriação privada dos excedentes, essa sim, tem a maior importância na definição das classes sociais; embora este aspeto seja necessário, não é suficiente. Com efeito, para existirem classes, é preciso que se dê a perpetuação de geração em geração das prerrogativas de agricultores e de artesãos, ou como guerreiros-defensores da casta no poder. Tanto o grupo dominante, como os dominados, sujeitos pela coação mais ou menos brutal, vão submeter-se a desempenhar o seu papel respetivo na estrutura social.
Acredito que não exista uma correlação total, unívoca, entre a infraestrutura produtiva e as diversas superestruturas: a divisão em classes, a organização política, a religião, a cultura, etc. Penso que existem muitas possibilidades de variação, em estádios bastante semelhantes do desenvolvimento das forças produtivas. Seriam assim tão diferentes, em termos de forças produtivas, processos de produção, de produtividade primária, a China e a Europa medieval, no período do ano 1000 A.D. a 1300 A. D.? Creio que não. Porém, havia grandes diferenças ao nível da estrutura de classes, do poder político, etc. O mesmo se pode dizer em relação às civilizações Maia ou Azteca, no mesmo intervalo de tempo, com a Europa medieval ou daquelas, com a civilização Chinesa.
A História é contingente e caótica, na minha visão: Pretender, como o faz Cousin, de que exista uma inelutável progressão conduzida pelo processo material, ou seja, um determinismo, como ele faz com a «evolução do valor de troca das mercadorias» (ou com outro fator singular), parece-me não corresponder à verdade da História. Sei que existe nas sociedades, ao longo dos séculos, uma acumulação de saber científico-técnico, que se traduz na facilidade cada vez maior em produzir excedentes; que estes permitem a existência de «classes ociosas», não envolvidas no processo produtivo, diretamente. Estas podem, no entanto, desempenhar um papel na estrutura da sociedade conducente á sua perpetuação, sendo por isso classificadas como úteis, socialmente.

Igualmente, a sua profecia de que o capitalismo estaria moribundo porque tem de «se negar a si próprio», através de esquemas que são - na verdade - destinados à «não-produção», parece-me exagerada.
Não é falso que a crise do COVID tenha sido largamente manufaturada para congelar a produção e diminuir a pressão do excedente de produtos (principalmente chineses) nos mercados. Também não é falso que as políticas de Zero Carbono, advogadas pelo FEM, pela ONU e por vários governos poderosos, sejam o meio de estabilizar a produção e o consumo a um nível mais baixo, permitindo assim uma «folga», que salvaria os mercados do congestionamento; sendo o «Aquecimento do Clima», uma explicação aberrante, para uso das massas.
Eu diria que o capitalismo pode transformar-se noutra coisa diferente, que não se viu antes. Mas, infelizmente, ela não terá que ver, prevejo, com modelos de socialismo que se implantaram no século passado e que (alguns) sobreviveram. Tenho uma visão pessimista de uma sociedade à «Huxley», onde a maioria está completamente alienada, com pequenos «brinquedos» e uma satisfação elementar, quer tenha  emprego, ou no desemprego, com rendimento mínimo, de miséria, para não se atrever à revolta.
Os processos produtivos vão-se tornando mais e mais automatizados, robotizados, utilizando Inteligência Artificial, chegando a invadir os domínios das profissões ditas intelectuais e antes consideradas ao abrigo de tais ingerências. Isto tornará possível uma acumulação de capital, sem ter que o repartir, seja de que forma se encare, com o trabalho. Daí, que eu esteja em total desacordo com Francis Cousin, que pensa que haverá uma limitação á mais-valia que é retirada ao trabalho humano. Ora, se houver um menor componente de trabalho humano, o rendimento que o capital irá  obter dessa produção, será maior; o lucro, ou mais-valia,  serão maiores. Por outro lado, o trabalho humano precarizado fica desvalorizado; o trabalhador será obrigado a vender-se bem abaixo do que são os custos  do processo automatizado, com utilização de  robots.
Estamos na via da eliminação progressiva do trabalho humano, mas como a mudança se faz sob o capitalismo, com estrita divisão de classes, os patrões poderão dispensar grande número de trabalhadores, que deixaram de ser indispensáveis ao processo produtivo. A questão do «rendimento mínimo universal», põe-se neste momento histórico, porque há que manter a capacidade de funcionamento do mercado, o escoamento das mercadorias e dos serviços:
- Se a classe trabalhadora estiver desempregada numa enorme proporção, ela não poderá consumir de modo significativo: Seria o próprio mercado capitalista que se iria desmoronar. Além disso, criar essa dependência relativa ao «rendimento mínimo» é o meio dos Estados gerirem as massas trabalhadoras em «subemprego crónico» e evitarem a revolta dos desapossados.


Quanto à sua interpretação dos Evangelhos, no sentido de fazer de Jesus um «comunista», não deixa de ser um anacronismo. Tanto Jesus, como as comunidades cristãs iniciais, banhavam e eram herdeiras de uma cultura em que o dinheiro era raro, não era o dinheiro que «mandava» em todos os domínios, como foi o caso desde o triunfo do capitalismo, até hoje.
A radicalidade do cristianismo primitivo envolvia a não aceitação da «lei temporal», a elevação das pessoas a «filhas e filhos de Deus»: estavam todas em igualdade diante de Deus. A partilha dos bens materiais e a Eucaristia, como Corpo e Sangue de Cristo, é literalmente o «corpo» da Eclésia (que quer dizer, em grego, Assembleia da Comunidade).
Se não considero correto designar Jesus, ou os primeiros cristãos como «comunistas», inversamente, reconheço que o cristianismo foi inspirador das várias tendências de libertação social que existiram. Entre muitos exemplos, vejam-se os movimentos dos camponeses alemães e holandeses, no século XVI; a missionação jesuíta no Novo Mundo (do séc. XVI a XVIII), catequizando os indígenas, etc.
O cristianismo foi, certamente, uma das inspirações das diversas vertentes de comunismos e socialismos, incluindo o socialismo libertário ou anarquismo.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

O QUE É O ROMANTISMO?

Aqui, não vos irei falar sobre a infinidade de sentidos que é dada à expressão ou a forma como o público, em geral, avalia qualquer obra como sendo «romântica» ou não. Isso terá pouco interesse, se não se compreender previamente a existência de um movimento dentro da História, que é simultaneamente estético, político e filosófico.

É esse movimento romântico que me interessa: o que  foi assim designado por críticos contemporâneos ou posteriores, ao movimento sobre o qual escreveram.

Muito haveria a escrever sobre as componentes que o caracterizam - a estética, a política e a filosofia. Estão entrançadas de tal modo que, ao distingui-las, devemos ter em mente que isso se deve antes a conveniência na exposição, pois se misturarmos os aspetos, acabamos por não clarificar nada sobre as várias facetas do movimento.

A definição de romantismo poderia dá-la  sintetizando definições de dicionários; mas estou convicto que essas definições «congelam» ideias, causam a sua cristalização, tanto na mente de quem escreve como de que lê.

É inegável a ligação do romantismo com algumas ideias que «andavam no ar», nos finais do século XVIII: A ideologia liberal, na sua formulação primeira, a da Declaração de Independência dos Estados Unidos. A filosofia dialética de Hegel, a filosofia da Natureza de Goethe e de muitos mais. Nota-se a emancipação da Escolástica medieval. Embora o ser humano ainda seja colocado no centro da Criação, não é um «pedaço de argila moldado por Deus», antes o construtor de si próprio, da sua própria vida, do seu devir. Num tempo em que as estruturas do passado se desmoronam, a realeza absoluta, a Igreja da Inquisição, a família patriarcal, começo de emancipação da mulher (somente na aristocracia e na burguesia), tendência a acabar o regime de monopólio e privilégio das companhias de comércio, protegidas pelo poder real, levando à entrada de vários atores no mercado. Tudo isso, tinha relação com um dos pilares da nova visão do Homem enquanto indivíduo, um ser dotado de inteligência, sensibilidade e senso moral: ele não podia já ser tratado como mera criança, obrigado a aceitar como as únicas ideias «legítimas», as que lhe impunham os padres, os reis e os nobres. A descoberta doutros mundos, para além do Velho Mundo, da Europa, Ásia e África, implicava relativizar ou por francamente em causa «certezas» ensinadas e reproduzidas em austeros tratados, nas Universidades europeias. O saber deixou de estar limitado à elite universitária e eclesiástica, com a nova dimensão do saber técnico, o saber-fazer. Pense-se nos saberes associados à navegação: a geografia, a cartografia, as técnicas de construção de navios, a descoberta e descrição de novas espécies vegetais e animais, nos continentes explorados pelos europeus. Nos dois séculos anteriores ao século XIX, houve um constante alargar dos horizontes. Foi, propriamente, o início da revolução científica e técnica. Esta revolução não foi política, ou não teve como motivação substituir a ordem política vigente. Os reis e os poderosos encorajavam as expedições longínquas, acolhendo os novos dados científicos que delas resultavam, com a mesma abertura com que acolhiam novas trocas comerciais.

Foi assim nascendo a ideia do ser humano enquanto indivíduo. Não que dantes não existisse uma tal noção. Mas, de uma forma ou doutra, ela esteve subordinada ao coletivo: o povo, a pátria, a pertença ao reino, à zona geográfica, à profissão (as corporações de ofícios). O homem do século XVIII/XIX ainda continua conectado a essas realidades, que moldam o seu destino. Mas, aquilo que muda, é a ênfase: o essencial, já não é a proveniência do indivíduo, a sua classe de origem ou a sua pertença a tal ou tal reino.

Na música, no teatro, na pintura e escultura, as sociedades aceitam o cosmopolitismo dos artistas e até o encorajam. Por exemplo, a corte do rei D. João V de Portugal, que beneficiou das muitas riquezas das colónias, em particular do Brasil, estava repleta de estrangeiros, músicos, artistas plásticos, cientistas, etc. na sua maioria, italianos.

A ênfase tornou-se mais política, a partir da Revolução Francesa. O cidadão, era aquele individuo que aderia ao projeto revolucionário. Assim, houve deputados polacos, irlandeses e alemães à Convenção da França revolucionária. Eram homens que se tinham identificado com a causa revolucionária; eram legitimamente membros deste corpo representativo. Note-se que, mais tarde, esta noção política de cidadania foi instrumentalizada por Napoleão: Em todas as suas campanhas militares utilizou estrangeiros (regimentos de irlandeses, de polacos, de suíços, de alemães), completamente subordinados ao poder imperial. 

Na literatura, a grande revolução foi o dar-se primazia ao indivíduo, através da exposição dos sentimentos: Rousseau (Confessions), Goethe (Werther) etc. 
Na música, o cânon clássico representado por Haydn e outros músicos, foi destronado a favor do romantismo nascente, correspondente ao movimento literário «Sturm und Drang» (Tempestade e Ímpeto).  
A crítica foi muito negativa, na estreia da  3ª Sinfonia de Beethoven.  Porém, a nova estética acabou por triunfar. Os músicos românticos, após a morte de Beethoven, foram célebres: Mendelssohn, Schubert, Liszt, Chopin, Berlioz, etc. A estes, seguiu-se uma segunda e uma terceira vaga. Na época do romantismo ascendente não são produzidas peças «delico-doces», associadas pelo público à expressão música romântica. A ideia do romantismo como música «lamecha» e com falta de imaginação, tem origem na utilização de fórmulas, por pessoas sem talento, mas que se atreviam a compor.
A música e a poesia romântica vão de par com uma sensibilidade emancipatória, envolvendo as determinantes nacionais e sociais.
 
Os heróis românticos não dependiam senão do seu destino. O seu devir era moldado por suas características psicológicas; pela sua capacidade em amar, o seu sentido do dever, a sua determinação. Também existe a imagem estereotipada do herói/heroína que sucumbe ao destino trágico: Eles lutam até ao limite de suas forças. São vencidos, mas não resignados. 
Mesmo a vertente «negra» do romantismo (ver poema de Baudelaire, abaixo*),  não implica uma renúncia ao bem ou ao que há de saudável nos humanos e na sociedade. Se Baudelaire adota, nalguns poemas, uma pose «decadentista» ou mesmo «satânica», isso deve-se, sobretudo, à sua condição pessoal: ele sofre, mas não aceita esse sofrimento com resignação. A revolta é percetível, em muitos dos seus poemas.

                       Foto de Charles Baudelaire, por Nadar

*
Charles BAUDELAIRE
1821 - 1867

Épigraphe pour un livre condamné

Lecteur paisible et bucolique,
Sobre et naïf homme de bien,
Jette ce livre saturnien,
Orgiaque et mélancolique.

Si tu n'as fait ta rhétorique
Chez Satan, le rusé doyen,
Jette ! tu n'y comprendrais rien,
Ou tu me croirais hystérique.

Mais si, sans se laisser charmer,
Ton oeil sait plonger dans les gouffres,
Lis-moi, pour apprendre à m'aimer ;

Ame curieuse qui souffres
Et vas cherchant ton paradis,
Plains-moi !... sinon, je te maudis !