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domingo, 18 de agosto de 2019

MICHEL ONFRAY E O COMPLEXO FREUDIANO

Após muitos anos de grande culto pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud, é pela primeira vez biografado como deveria ter sido sempre: sem complacências, com rigor e objectividade. Esta tarefa coube ao filósofo Michel Onfray, bem conhecido do público francófono - pela sua obra, mas também pela universidade popular de Caen, que ele ergueu e tem animado, desde os primeiros anos do século. 



Onfray, ele próprio, durante muitos anos foi sujeito ao mito de Freud e ensinou-o aos seus alunos de filosofia. As circunstâncias que fizeram com que ele fosse investigar melhor Freud, tem a ver com um livro «amaldiçoado», pois escrito por autores de «extrema-direita», mas que Onfray se sentiu na obrigação de ler para poder criticar. Qual foi o seu espanto ao verificar que o livro, classificado como «propaganda anti-semita» de autores de extrema-direita, não tinha este cunho, mas antes ia buscar o seu conteúdo à própria obra e a relatos biográficos, que geralmente têm sido ocultados ou mal interpretados. Em geral, os biógrafos também são discípulos directos ou indirectos do «mestre», e as suas biografias não são neutras, são antes construções que tendem a hiper-valorizar as «descobertas» de Freud na psicologia.


Não irei aqui fazer a exposição do conteúdo do excelente livro que Michel Onfray redigiu, na sequência da sua surpreendente (para ele próprio também) descoberta, dum Freud desconhecido e, no entanto, patente pela simples leitura da sua obra completa e correspondência publicada, coisa que poucos fizeram: sobretudo, ninguém com capacidade de distanciamento crítico e independência de espírito, como Michel Onfray.
A sua obra sobre Freud destrói o mito. Vale a pena ser lida por qualquer pessoa, não apenas por profissionais da psicologia e ciências humanas. 
As teorias de Freud são tudo menos científicas. São teorias ad hoc construídas pelo médico vienense para «justificar» suas próprias obsessões e «generalizar» a todo o género humano, os seus problemas! Eis a constatação explosiva e, no entanto, rigorosa, que efectuou o autor do livro «Anti-Freud», nas suas exaustivas leituras e nas reflexões subsequentes que faz. Nos aspectos essenciais, baseia-se em dados, os mais objectivos, nas obras de Freud, na sua correspondência, em particular, com o médico amigo e confidente, Fliess e outras fontes de informação absolutamente seguras. 
O Freud das hagiografias dos seus seguidores não tem muito que ver com o Freud da realidade, é esta a espantosa conclusão que se tira desta biografia. No essencial das questões, nada de especulativo pude encontrar, na escrita de Onfray. Quando ele faz conjecturas, ele afirma-o de modo claro, para que o leitor não possa confundir com o que está efectivamente escrito nas fontes consultadas. 
As conclusões que se possam tirar da leitura desta biografia são muito significativas: a construção de um mito «científico» e a dificuldade das pessoas «educadas» descolarem desse mito, pois elas têm sido nutridas com ele, «desde a infância». 
Depois, há a questão da honestidade e da coragem intelectual. As pessoas que estudaram Freud, que o biografaram, antes de Onfray, com certeza deram com algumas incoerências gritantes, com contradições patentes, com aspectos menos luzidios da biografia do homem. Porém, pelo que me apercebi, na sua imensa maioria, descartaram ou menorizaram tudo o que pudesse amesquinhar a personagem e a «cientificidade» das suas supostas descobertas.    
A cultura do século XX tem muito a ver com o freudismo, com todos os clichés derivados da psicanálise... é um verdadeiro complexo freudiano, que seria necessário descrever sob o ângulo da antropologia cultural. 
Seria um trabalho gigantesco e salutar, o de se compreender como se ergueu e se elevou este mito aos «cumes da objectividade científica». 
Muitas pessoas foram efectivamente capturadas pela propaganda do próprio Freud, segundo a qual, suas «descobertas» seriam de significado e dimensão análogos à revolução do heliocentrismo de Copérnico, no séc. XVI, e à teoria da evolução das espécies e da ascendência do homem, de Darwin (século XIX). 

Declaro aqui, sem hesitações, a minha gratidão por Michel Onfray ter-me aberto os olhos e permitido ver, para além de todos os mitos e fábulas com as quais convivemos ao longo de mais de um século. 
É que não se trata somente da personagem «tutelar» da ciência psicológica contemporânea, mas sobretudo da montagem das suas teorias e do seu suposto poder explicativo e terapêutico.  
Não lhe falta coragem e honestidade intelectual por nos dar a conhecer algo que outros ocultaram, sabendo que iria desencadear contra ele uma série de ataques. Estes ataques efectivamente têm surgido dos que se arrogam o papel de sacerdotes da religião da psicanálise. 
O livro é agradável de se ler e é uma fonte inesgotável de referências, tanto da obra de Freud, como de muitos dos seus seguidores e biógrafos, historiadores da psicanálise ...

quarta-feira, 7 de junho de 2017

A MACIEIRA DE NEWTON [Obras de Manuel Banet]

                     
                        
       [Isaac Newton: manuscrito autógrafo]

  - Este texto surgiu primeiro na página literária do Diário de Lisboa e posteriormente foi incorporado à recolha de poemas inédita «Transfigurações» (obras de 1984-1985).


                       A MACIEIRA DE NEWTON
                                       (Ensaio)

As teorias, os conceitos científicos estão frequentemente associados, nas biografias mais ou menos romanceadas de celebridades da Ciência a anedotas ou lendas ou ainda, a citações atribuídas a este ou aquele cientista.
Tomamos esse conjunto de “estórias” como ponto de partida do presente ensaio.
Com efeito, elas fazem parte do imaginário colectivo... o que nos leva a considerá-las como fonte de poesia, tal como as lendas, os contos de fadas, as canções, etc. ... que iluminam a nossa infância.
Cremos que a poesia não é uma forma de pensamento ou de expressão do pensamento radicalmente diferente das “iluminações” (título de um livro de poemas de Rimbaud) dos citentistas. O momento poético, tal como o momento da intuição de uma nova teoria, é de revelação.
Os poetas, tal como os cientistas, são dotados da capacidade de abaixar o limiar da consciência e de produzir algo que foi elaborado nas profundezas do sonho.
Os homens têm, à partida, essa capacidade ... “a poesia deve ser feita por todos, não por um” (Lautréamont) ... mas ela é reprimida ao longo da vida adulta, na grande maioria das pessoas.
Pierre Curie dizia: “é preciso fazer da vida um sonho e desse sonho uma realidade”. Eis aqui, formulada por um cientista, a declaração clara das intenções dos poetas e artistas que se congregaram sob a bandeira do movimento surrealista. O sonho é um processo expontâneo de produzir imagens, em que intervém o aleatório. Note-se que aleatório não significa arbitrário, mas antes, um processo  a-determinístico de geração ao qual se sobrepõe um processo de selecção, de tal modo que, na imagem produzida, há criação de algo intrinsecamente próprio, genuíno, cuja lógica profunda foi decifrada por Freud e por Jung.

  A lógica do sonho opera sobre imagens simbólicas. Uma imagem é simbólica quando o objecto a que se refere não está contido nela, quando este pode ser definido apenas dentro do contexto em que se encontra a referida imagem/símbolo. 
É pois uma questão de “evidência poética” (título de um livro de poemas de Éluard), a questão de se saber ler o que o poema encerra: “voir c’est recevoir, réfléter, c’est donner à voir” (Éluard). 
                                 


O poeta é um revelador, é aquele que imprime na superfície do espelho (a realidade)... a imagem que se encontra ... “do outro lado do espelho” (Lewis Carrol). Aqui chegados, temos de reconhecer que não é com os instrumentos do dia-a-dia, com o senso comum, que podemos caminhar, pela mão de Alice, no país das Maravilhas. Este país é uma densa floresta, recheada de estranhas formas, cujas pistas estão entrecortadas por ribeiros, cujos diversos andares abrigam diferentes nichos ecológicos, e onde, digamos, precisamos de toda a força animal de Tarzan, para subir e descer pelas lianas que pendem das árvores.
A palavra poética é polissémica; é uma polissemia resultante do confronto entre a utlização corrente, pragmática, das palavras e o uso simbólico que o poeta faz delas. Mas isto não significa que a utilização corrente das palavras seja destituída de polissemia. O tradutor  experiente sabe bem como é difícil dar à tradução de um texto literário as conotações, a carga emotiva, a polissemia em suma, que encerra o texto original. Mas a vida está cheia de “frases feitas”, os provérbios, os ditados, as expressões idiomáticas... é possível que o seu produtor tenha sido um poeta anónimo, que soube dar contorno emblemático a essas modestas “flores” da linguagem. Isso foi reconhecido pelo povo, que passou a fazer  uso dessas expressões ... com o uso, acabaram por perder o carácter cortante, afiado, que tinham inicialmente: tal como um instrumento que é utilizado por longo tempo, com grande frequência, as imagens poéticas também se “gastam”. A função do poeta, do criador é a de produzir novas imagens, de retemperar as imagens gastas.
        A poesia foi comparada a “uma alquimia do Verbo” (Rimbaud). A alquimia é uma forma de conhecimento do Universo em que as partes não estão dissociadas do Todo. É um caminho inverso ao da análise. Tem por fim o conhecimento interior e a transmutaçõa do eu (Je, est un autre” Rimbaud) muito mais do que a transmutação de metais; na verdade, a tranmutação dos metais é apenas o aspecto exterior da Obra Filosofal, “a pedra de toque” que permite constatar a realidade da transmutação interior. 


                                   




Quais são os instrumentos do “laboratório” poético? A “loucura”, a “lucidez”, a “hiper sensibilidade”, o abaixamento da fronteira entre o sonho e a realidade, o trabalho árduo, lento, nocturno, o confronto com a realidade externa, a leitura, a apropriação, o plágio da obra dos outros poetas. O resultado de tudo isso, uma obra da qual o artista nunca se encontra satisfeito, ficando necessariamente aquem do ideal que o artista persegue. O mito do pigmalião constitui a parábola dessa situação. O transcendente e o efémero, a serenidade e o empolgado, o indizível e o explícito: antinomias que estão presentes em qualquer obra de um artista total.

O objecto poético deixa de pertencer ao seu criador quando atinge o público. O público é o outro pólo do acto de criação, pois quem diz criação, diz mensagem ... e uma mensagem só existe enquanto tal, quando existe um emissor e um receptor: as mensagens que são enviadas para o espaço por astrónomos, astro-físicos, por cientistas da era espacial, só o são... se encontrarem destinatário, seres extra-terrestres dotados da capacidade de compreender esses sinais. A teoria diz que é impossível transmitir uma informação sem perda de energia e o que é captado, nunca é mais do que uma fracção do que é emitido; as palavras lançadas ao vento pelos poetas obedecem a estes princípios. Do “lado de cá do espelho”, o receptor, ao ler a mensagem, vai interpretá-la de acordo com o universo semântico no qual está banhado e que lhe é pessoal, vai portanto recriá-la, com toda a carga de subjectividade que o acto implica. Será possível uma “análise objectiva” de uma produção poética? Para responder a esta questão vamos recorrer ao Princípio da Incerteza de Heisenberg; este diz-nos que não se pode conhecer com grande precisão o momento de um corpo e a sua energia, simultaneamente. Se utilizarmos um instrumento muito potente para observar uma partícula atómica, a energia investida na observação vai interferir com o estado energético dela. Se quisermos saber com precisão a quantidade de energia dessa partícula, num dado momento, temos de renunciar á determinação simultânea das suas coordenadas espaciais... Analogamente, quando se está perante uma obra poética, não podemos num único olhar, detalhar a forma da obra, e sentir a sua vibração, avaliar a energia que encerra. Não se pode, em simultâneo, num concerto, estar atento à perfeição com que os violinos e outros instrumentos executam a obra e ao desenho geral da mesma, à atmosfera em que ela está banhada. Visão analítica e visão global fazem apelo a dois tipos completamente distintos de capacidades psicológicas ( teoria da Gestalt). 

O nosso ponto de vista é de que, em relação à obra poética, o desenho geral, a visão global, a avaliação da energia intrínseca são principais... para que o “efeito poético” possa exercer-se no leitor. Portanto, por mais legítimas que sejam, as leituras críticas de uma obra poética deixam, a nosso ver, de lado o que constitui o cerne, a razão de ser, o centro gerador da poesia. 







Dito isto, é quase inútil sublinhar que, quer no produtor, quer no receptor, uma procura e uma compreensão das formas são necessárias. A crítica (diferente da fruição), deve exercer-se sobre os aspectos formais do poema, deve pôr em evidência a “gramática generativa” (Chomsky) da linguagem poética.