- Este texto surgiu primeiro na página literária do Diário de Lisboa e posteriormente foi incorporado à recolha de poemas inédita «Transfigurações» (obras de 1984-1985).
A
MACIEIRA DE NEWTON
(Ensaio)
As teorias, os conceitos científicos estão frequentemente
associados, nas biografias mais ou menos romanceadas de celebridades da Ciência
a anedotas ou lendas ou ainda, a citações atribuídas a este ou aquele
cientista.
Tomamos esse conjunto de “estórias” como ponto de partida do
presente ensaio.
Com efeito, elas fazem parte do imaginário colectivo... o
que nos leva a considerá-las como fonte de poesia, tal como as lendas, os
contos de fadas, as canções, etc. ... que iluminam a nossa infância.
Cremos que a poesia não é uma forma de pensamento ou de
expressão do pensamento radicalmente diferente das “iluminações” (título de um
livro de poemas de Rimbaud) dos citentistas. O momento poético, tal como o
momento da intuição de uma nova teoria, é de revelação.
Os poetas, tal como os cientistas, são dotados da capacidade
de abaixar o limiar da consciência e de produzir algo que foi elaborado nas
profundezas do sonho.
Os homens têm, à partida, essa capacidade ... “a poesia deve
ser feita por todos, não por um” (Lautréamont) ... mas ela é reprimida ao longo
da vida adulta, na grande maioria das pessoas.
Pierre Curie dizia: “é preciso fazer da vida um sonho e
desse sonho uma realidade”. Eis aqui, formulada por um cientista, a declaração
clara das intenções dos poetas e artistas que se congregaram sob a bandeira do
movimento surrealista. O sonho é um processo expontâneo de produzir imagens, em
que intervém o aleatório. Note-se que aleatório não significa arbitrário, mas
antes, um processo a-determinístico de
geração ao qual se sobrepõe um processo de selecção, de tal modo que, na imagem
produzida, há criação de algo intrinsecamente próprio, genuíno, cuja lógica
profunda foi decifrada por Freud e por Jung.
A lógica do sonho
opera sobre imagens simbólicas. Uma imagem é simbólica quando o objecto a que
se refere não está contido nela, quando este pode ser definido apenas dentro do
contexto em que se encontra a referida imagem/símbolo.
É pois uma questão de
“evidência poética” (título de um livro de poemas de Éluard), a questão de se
saber ler o que o poema encerra: “voir c’est recevoir, réfléter, c’est donner à
voir” (Éluard).
O poeta é um revelador, é aquele que imprime na superfície do
espelho (a realidade)... a imagem que se encontra ... “do outro lado do
espelho” (Lewis Carrol). Aqui chegados, temos de reconhecer que não é com os
instrumentos do dia-a-dia, com o senso comum, que podemos caminhar, pela mão de
Alice, no país das Maravilhas. Este país é uma densa floresta, recheada de
estranhas formas, cujas pistas estão entrecortadas por ribeiros, cujos diversos
andares abrigam diferentes nichos ecológicos, e onde, digamos, precisamos de
toda a força animal de Tarzan, para subir e descer pelas lianas que pendem das
árvores.
A palavra poética é polissémica; é uma polissemia resultante
do confronto entre a utlização corrente, pragmática, das palavras e o uso
simbólico que o poeta faz delas. Mas isto não significa que a utilização
corrente das palavras seja destituída de polissemia. O tradutor experiente sabe bem como é difícil dar à
tradução de um texto literário as conotações, a carga emotiva, a polissemia em
suma, que encerra o texto original. Mas a vida está cheia de “frases feitas”,
os provérbios, os ditados, as expressões idiomáticas... é possível que o seu
produtor tenha sido um poeta anónimo, que soube dar contorno emblemático a
essas modestas “flores” da linguagem. Isso foi reconhecido pelo povo, que
passou a fazer uso dessas expressões ...
com o uso, acabaram por perder o carácter cortante, afiado, que tinham
inicialmente: tal como um instrumento que é utilizado por longo tempo, com grande
frequência, as imagens poéticas também se “gastam”. A função do poeta, do
criador é a de produzir novas imagens, de retemperar as imagens gastas.
A poesia foi
comparada a “uma alquimia do Verbo” (Rimbaud). A alquimia é uma forma de
conhecimento do Universo em que as partes não estão dissociadas do Todo. É um
caminho inverso ao da análise. Tem por fim o conhecimento interior e a
transmutaçõa do eu (Je, est un autre” Rimbaud) muito mais do que a transmutação
de metais; na verdade, a tranmutação dos metais é apenas o aspecto exterior da
Obra Filosofal, “a pedra de toque” que permite constatar a realidade da
transmutação interior.
Quais são os instrumentos do “laboratório” poético? A
“loucura”, a “lucidez”, a “hiper sensibilidade”, o abaixamento da fronteira
entre o sonho e a realidade, o trabalho árduo, lento, nocturno, o confronto com
a realidade externa, a leitura, a apropriação, o plágio da obra dos outros
poetas. O resultado de tudo isso, uma obra da qual o artista nunca se encontra
satisfeito, ficando necessariamente aquem do ideal que o artista persegue. O
mito do pigmalião constitui a parábola dessa situação. O transcendente e o
efémero, a serenidade e o empolgado, o indizível e o explícito: antinomias que
estão presentes em qualquer obra de um artista total.
O objecto poético deixa de pertencer ao seu criador quando
atinge o público. O público é o outro pólo do acto de criação, pois quem diz
criação, diz mensagem ... e uma mensagem só existe enquanto tal, quando existe
um emissor e um receptor: as mensagens que são enviadas para o espaço por
astrónomos, astro-físicos, por cientistas da era espacial, só o são... se
encontrarem destinatário, seres extra-terrestres dotados da capacidade de
compreender esses sinais. A teoria diz que é impossível transmitir uma
informação sem perda de energia e o que é captado, nunca é mais do que uma
fracção do que é emitido; as palavras lançadas ao vento pelos poetas obedecem a
estes princípios. Do “lado de cá do espelho”, o receptor, ao ler a mensagem,
vai interpretá-la de acordo com o universo semântico no qual está banhado e que
lhe é pessoal, vai portanto recriá-la, com toda a carga de subjectividade que o
acto implica. Será possível uma “análise objectiva” de uma produção poética?
Para responder a esta questão vamos recorrer ao Princípio da Incerteza de
Heisenberg; este diz-nos que não se pode conhecer com grande precisão o momento
de um corpo e a sua energia, simultaneamente. Se utilizarmos um
instrumento muito potente para observar uma partícula atómica, a energia
investida na observação vai interferir com o estado energético dela. Se
quisermos saber com precisão a quantidade de energia dessa partícula, num dado
momento, temos de renunciar á determinação simultânea das suas coordenadas
espaciais... Analogamente, quando se está perante uma obra poética, não podemos
num único olhar, detalhar a forma da obra, e sentir a sua vibração, avaliar a
energia que encerra. Não se pode, em simultâneo, num concerto, estar atento à
perfeição com que os violinos e outros instrumentos executam a obra e ao
desenho geral da mesma, à atmosfera em que ela está banhada. Visão analítica e
visão global fazem apelo a dois tipos completamente distintos de capacidades
psicológicas ( teoria da Gestalt).
O nosso ponto de vista é de que, em relação
à obra poética, o desenho geral, a visão global, a avaliação da energia
intrínseca são principais... para que o “efeito poético” possa exercer-se no
leitor. Portanto, por mais legítimas que sejam, as leituras críticas de uma obra
poética deixam, a nosso ver, de lado o que constitui o cerne, a razão de ser, o
centro gerador da poesia.
Dito isto, é quase inútil sublinhar que, quer no
produtor, quer no receptor, uma procura e uma compreensão das formas são
necessárias. A crítica (diferente da fruição), deve exercer-se sobre os
aspectos formais do poema, deve pôr em evidência a “gramática generativa”
(Chomsky) da linguagem poética.