terça-feira, 17 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Ballade Nº1, Sol menor, Frédéric Chopin




Restava somente um, de toda aquela casa, outrora ilustre. Tinha forçosamente que fazer a «guarda do castelo», não havia mais ninguém, todos tinham morrido ou fugido. O tempo era de incertezas; roubava-se, aprisionava-se, mutilava-se, matava-se … a gente boa estava fugida. Os bandidos reinavam. Impunham a sua barbárie. Tinham prazer em submeter e humilhar.
Não te irei esconder que passei as horas mais angustiadas de minha vida, nessa época terrível.
Mas o meu medo foi-se transformando em força. Fui aprendendo a dominá-lo. Fazia pequenas sortidas para me abastecer por perto, onde houvesse alimento. Trocava comida por tudo o que pudesse despertar a cobiça dos comerciantes. Já não circulava dinheiro: apenas se trocavam objetos ou serviços.
Era um tempo muito duro de escassez generalizada, exceto para alguns. Estes tinham tudo, em resultado do saque e da extorsão permanente. O obscurantismo de há mil anos voltara e instalara-se. O medo fazia o resto. Tinha de me manter sempre vigilante, dia e noite; era uma autêntica tortura. Só podia dormitar uns minutos por dia, sempre com a arma ao alcance da mão. Agitavam-se vultos durante a noite, mesmo por debaixo das janelas.
Eu ouvia os sons que os homens desesperados faziam, a meio da noite, quando entravam furtivamente no jardim. Eram pobres diabos, exaustos, que apenas bebiam um pouco de água de uma fonte e dormiam umas poucas horas sobre a terra debaixo de um arbusto. De início, tive medo deles, depois compreendi que eu lhes metia respeito a eles também, pois as luzes do interior, filtradas através das gelosias fechadas eram indício seguro de que havia habitantes dentro.
A verdade é que a presença noturna dos fugitivos era protetora contra verdadeiros ladrões e assaltantes. Somente tinha de me manter vigilante para que não fosse surpreendido por um bando organizado de malfeitores armados.
Esta situação manteve-se durante algumas semanas. Depois, apesar da catástrofe, a vida foi retomando os seus direitos. Conseguia ver isso pelo ar menos contraído das pessoas, o seu olhar nem sempre era de medo ou inquietação, às vezes esboçavam um sorriso. 
Os animais selvagens também se acolhiam ao jardim. Escolhiam sempre as horas de maior calmaria. Onde estivesse um melro, um ouriço-cacheiro, uma serpente… era terreno (provisoriamente) seguro. Eles escolhiam locais pacíficos como refúgio.
Por vezes avistava-se um falcão peregrino, poisado sobre um poste de iluminação, de onde observava o entorno.
Os gatos selvagens gostavam de vir furtivamente beber água no tanque das traseiras. Marcavam o território enterrando, em determinados pontos do jardim, seus excrementos. Ao fazerem isso, estavam a dar-me uma ajuda, pois os ratos cheiravam à distância a presença dos felinos e não se aventuravam pelos canteiros da minha horta improvisada.
O mais difícil era manter o equilíbrio perante a situação de incerteza permanente, que obrigava a estar sempre alerta. Mas aprendi a afugentar o medo e a olhar para uma situação aparentemente desesperada com uma certa serenidade.
 As visões que perpassavam pela minha mente, os sonhos acordados dessa época, eram - evidentemente - projeções da minha mente perturbada, mas não insana.






segunda-feira, 16 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Magnificat BWV 243 J.S.Bach


Deixou repousar em cima do peito o livro que estava a ler; fechou os olhos. Sentia um agradável torpor, embalado pela música de J. S. Bach




Neste estado, as imagens que lhe apareciam diante do espírito e sobretudo os sentimentos no seu peito, o transportavam para o êxtase:
Uma luz difusa fazia rebrilhar miríades de partículas de poeira doirada. Uma pulsação rítmica movimentava o tronco do sonhador, era o movimento do cavalo dócil, que se transmitia ao cavaleiro. Um jovem, no meio de uma orquestra de músicos empoados; estava entoando uma pura melodia jamais ouvida antes.
(Tudo era estranho, justamente por tudo lhe parecer familiar. Até o gato do vizinho se imiscuíra no sonho, com os seus movimentos circunspectos, cautelosos…)
Sobretudo, a estranheza era devida à impossibilidade de decidir onde se encontrava: se no seio da música de Bach, se no conforto do seu estúdio ou se no universo dos sonhos… Talvez estivesse nesses três universos em simultâneo. Era a alegria metafísica que o invadia, que o impulsionava a subir aquela escada de luminoso cristal que se erguia pelos céus em arcada, num majestoso arco-íris. O livro que tinha estado a ler, porém, não estava relacionado com tal visão. Embora não se saiba o conteúdo exato do mesmo, sabe-se que era de bioquímica. Com efeito, no campo dos sonhos onde evoluía, bailavam várias espirais caprichosas de proteínas, enroladas em torno de eixos invisíveis, em tons de vermelho, roxo, castanho e azul-escuro. Deslocavam-se, rodavam e pulsavam ao ritmo da música. Por vezes, aproximavam-se umas das outras, ou se afastavam como galáxias no Universo.

[Depois, mergulhou num torpor profundo e sua visão esfumou-se rapidamente.]





sábado, 14 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Salmo Primeiro



SONHO 4:               Salmo Primeiro, Coro de monges do mosteiro de Optina (Rússia)



Eles aqueciam-se como podiam ao calor da fogueira. Estavam no meio da estepe gelada. Outros fogos tremeluzentes se viam por todo o horizonte. Irkutz estava a onze vestras. O acampamento fora ordenado ao cair da noite. Em Setembro já mordia o frio do outono. De vez em quando, ao longe, ouvia-se o tropel dos cascos da cavalaria, que passava perto do nosso acampamento. Ouviam-se também vozes em surdina, dos soldados do regimento de infantaria nº16, em torno da fogueira. Nunca mais se calavam; falavam de tudo e de nada. Rompido de cansaço, acabei por adormecer. Um suave calor bafejava-me o rosto.
Não sei se foi sonho ou foi realidade; não sei se ela se deslocou por artes mágicas até ao acampamento ou se sempre lá estivera:
- O que sei é que o seu rosto estava lá, no meio dos meus companheiros de armas. Aquele rosto trigueiro e oval, com olhos de faiança e cabelos de seda. Vestia com modéstia, mas o seu porte era de uma princesa. Sua doçura e espontânea bonomia derretiam-nos a todos. Ninguém era insensível à beleza, no meio de tanta  fealdade.
Vi o seu vulto levantar-se da roda da fogueira, com um movimento ondulante e flexível, erguendo-se no meio dos meus companheiros. Logo começou a entoar uma prece. Ela dizia o verso e o coro de homens respondia-lhe. As vozes entoavam os salmos num uníssono perfeito, tanto as dos velhos e ressequidos sargentos, como as dos jovens quase imberbes.
Tal era a perfeição, que me pareceu um encanto; era como se nada tivessem feito na vida, senão cantar a salmódia. Os versos eram espaçados por pausas. Nestas, o crepitar do fogo fazia-se ouvir. Maria estava no meio de todos nós, seus familiares, vizinhos, amigos.
Não havia ninguém que não conhecesse Maria; não havia soldado que ela ignorasse, a todos cumprimentava pelo patrónimo. Numa ocasião, vira como ela tratava de um ferido que tremia de febre - já nem conseguia segurar a colher ou a malga.
Senti-me feliz como nunca, nessa noite! Sabia que estava sob proteção dum anjo enviado pelo Senhor. Nem a morte eu temia!
Desde então, trilhei os caminhos da luz e da bondade, seguindo a Palavra, que ressoava na voz do povo.
Se foi sonho ou realidade, não sei. Para mim, isso é indiferente, pois a vida mudou-se totalmente a partir dessa noite.
Tive de sofrer muito; vi horrores, tive medo, frio, fome, fui ferido, bati o dente de febre, corri como um coelho diante da metralha. Esporei desesperadamente cavalos e cruzei ferro com inimigos ferozes, tão desesperados como eu. Percorri milhares de vestras em países distantes, sob climas tórridos ou gélidos. Sou o que sou, sem dúvida. Mas não tenho a arrogância de me considerar mestre de meu destino. A minha vida foi igual à de muitos homens, tão bons ou tão maus quanto eu. No entanto, sinto-me diferente. Tornei-me outro, a partir da noite da visão acima descrita. A simples evocação dessa noite, enche-me de suave júbilo. Iluminou vários momentos e episódios da minha jornada.  
Meu último desejo é somente que alguém transcreva estas palavras. Ámen.

[Alexei transcreveu, 17 de Outubro, Ano da Graça de 1842]

sexta-feira, 13 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] «Sol de Mi Corazón»

                             «Sol de Mi Corazón», interpretado na guitarra e voz por Paulina Iñiguez



Sonhos sem memória embotaram-me a alma…

Assim falava quando queria designar alguém distraído…  
Avô, que dizia tudo em verso… afinal, estava a comunicar com o autor destas linhas, sem saber: sou seu neto mais novo, ainda não tinha nascido quando o Avô abandonou este vale de lágrimas.
Ele sofreu muito, mas não viu aquilo que veio a seguir. Deus poupou-lhe essa desdita. Ele foi-se embora esperançado no «Homem Novo». Deus foi carinhoso com ele.
Ele dizia «sou ateu, graças a Deus»! Avô és ateu como eu sou Teu… Avô, és um homem do teu tempo: racionalista, mas sem desprezo pelos crentes e respeitando a religião dos outros.
Porém, o Avô estava desligado do universo mental do catolicismo de sacristia. O mesmo se pode dizer de todos os descendentes em linha direta… uma espécie de tradição familiar.
Desculpa! Não estou aqui a falar contigo só para contar umas futilidades! Tenho coisas sérias para te dizer, Avô.
Teu neto, presente pela primeira vez perante o teu espírito… nunca te tinha visto antes, senão em fotos. Agora sei como és, na verdade: afável, atento, com teu olhar penetrante.
Tens o sorriso doce e meigo, mas és capaz de severidade, também. Teu magistério é o de um pai amado e temido!











Foi triste a tua partida, tão cedo deste mundo! O raio da Rickettsia …ou lá como se chama essa bactéria… levou-te em poucos dias!
Tua esposa Júlia, minha Avó, demonstrou – quando contava histórias sobre ti e sobre a família – quanto te amava, como se sentia saudosa, mesmo depois de tantos anos.
Seres amado assim para lá do tempo e da morte… diz tudo!
(Entretanto, chegou-me um muito curioso papel, «Caução 382509001» … no momento em que te ia falar do teu Filho e meu Pai, Luís Manuel. Isto desconcentrou-me, fiquei muito preocupado )
Avô, noutra ocasião, se quiseres, voltarei a falar contigo.




[NO PAÍS DOS SONHOS] Allemande da partita para flauta solo BWV 1013 de J.S. Bach


 (Adormeço e vou de novo para o país dos sonhos.)

Agora estou à porta de uma casa, no campo. Esta casa parece-me muito familiar, porém, ao mesmo tempo, não sei onde estou. 
É como se tivesse sido transportado de repente a um local onde já estive no passado, mas ao ignorar todo o caminho percorrido, tenho de tentar buscar na memória em que circunstâncias eu me encontrei em frente desta casa ou de outra semelhante a esta.
De repente, a porta principal abre-se e sai de lá um jovem apressado. Leva uma sacola a tiracolo; aparenta uns 20 e poucos anos… Ele não olha para o sítio onde me encontro. Está decidido, no passo largo, ligeiramente curvado, olhando fixamente o chão à sua frente. Que estará ele a pensar? Impossível saber! 
- Embora eu nunca venha a saber nada mais do jovem, agora já sei onde e como eu vi esta casa pela primeira vez: …. Curiosamente, este jovem desconhecido permitiu-me situar-me no tempo. Num tempo muito diferente deste, embora as casas e as indumentárias fossem pouco diferentes do que se vê agora.
Sim, foi há uns quarenta anos e aquele jovem…sim, era eu!





[NO PAÍS DOS SONHOS] «Impromptu» em Lá bemol maior, Op.90 D.899, nº4 de Schubert


[O impromptu, como o nome o indica é, na origem, um improviso. Estes improvisos transcritos de Schubert têm o dom de, magicamente, nos restituir a atmosfera dos serões vienenses.
Não sei se este é o impromptu que melhor faz vibrar a corda sensível dos outros. Mas, certamente no que toca á minha pessoa, quando o oiço, é impossível não começar a sonhar acordado:]
- Sonho que estou sentado à lareira de uma casa burguesa, está uma primavera fria - neva lá fora. Uma jovem está ao piano, de costas para mim, com um xaile de lã axadrezada e executa com nonchalance este impromptu.

O professor, um jovem com uma casaca escura e gravata branca, de pé no lado esquerdo da executante, ligeiramente inclinado, segue a interpretação lendo a partitura, uma mão pronta, ao canto da mesma, para virar a página.

[NO PAÍS DOS SONHOS] vol. I

Cadernos selvagens   


     


 NO PAÍS DOS SONHOS



          Por   Manuel  Banet  Baptista


                                       2016  

  



          «No país dos Sonhos»  -  Índice Musical



SONHO 1: «Impromptu» em Lá bemol maior, Op.90 D.899, nº4 de Schubert

SONHO 2: «Allemande» da partita para flauta solo BWV 1013 de J.S. Bach

SONHO 3: «Sol de Mi Corazón», interpretado na guitarra y voz por Paulina Iñiguez

SONHO 4: «Fuego y Tambores Ritual Espiritual», do site de Priscilla P. Wood
               Salmo Primeiro, pelos monges do mosteiro de Optina (Rússia)

SONHO 5: Magnificat BWV 243 J.S.Bach

SONHO 6: Ballade Nº1 em Sol menor, F. Chopin

SONHO 7: «Lachrimosa» excerto do Requiem de Mozart

SONHO 8: Concerto para Piano Nº3 , Prokofiev

SONHO 9: Andantino do concerto para flauta e harpa K299, Mozart

SONHO 10: Adágio do Concerto para dois violinos em Ré menor, J.S. Bach

SONHO 11: Aria (Cantilena) Bachânias Nº5, Heitor Villa-Lobos.

SONHO 12: Fantasia em Fá menor Op.49, Chopin

SONHO 13:  Segundo Tento do Primeiro Tom, Manuel Rodrigues Coelho
https://www.youtube.com/watch?v=r0msc0ED2eY&list=PL96SrnaQycucnU4rQVuxpSm8WBk3yhfX2&index=6

SONHO 14: Frottola «Vergene Bella»,  Bartolomero Tromboncino