OUTRO ESPELHO NO QUARTO DOS QUADROS*
(em memória de meu Tio-avô, Édouard Gandon)
Era uma tarde calma de Domingo.
O Tonton pintava um quadro, paciente, com gestos sublimados
pelo saber de sombra e de luz.
Não sei o que fiz; só sei que ele se zangou. Muito medo
tinha eu da mudança de sua palavra, uma censura vinda de sua boca era
suficiente para apagar, num sopro, a felicidade do meu espírito.
Então, tive que fazer algo que restaurasse o equilíbrio
feliz e a beleza do nosso mútuo olhar: peguei num papel e num lápis e pus-me a
desenhar um Confúcio de porcelana que repousava sobre a cómoda.
Ofereci-lhe o desenho, imagem do meu tosco mas dedicado
pensamento. O seu perdão foi uma aceitação simples e estou-lhe, por isso, eternamente
devedor.
O quarto dos quadros era uma divisão de tecto alto em que as
paredes desapareciam, para dar lugar a telas justapostas de naturezas-mortas,
paisagens, retratos, composições em tons de austera e harmónica luminosidade.
Havia nesse quarto um objecto fascinante: uma caixa de projecções.
Uma caixa assente sobre um tripé, com dois óculos
reguláveis, permitia que se vissem paisagens, daguerrotipos sobre vidro, que
recebiam a luz da janela.
Nos vastos compartimentos da casa, os móveis respeitáveis,
em mogno ou nogueira, tinham o estilo das coisas perenes. Lá estavam em
silenciosa compostura, ao gosto de épocas brilhantes, requintados, polidos, com
“patine” sobre as decorações de bronze.
Movia-me dentro do universo estagnado, perfumado de
pastilhas “Valda”, sem saber que a imagem reflectida nos espelhos só acorre
quando deles se acerca o nosso rosto. Do piano de cauda do salão aos vidros do
aparador, todos os espelhos me habitavam...
SOMA AUSENTE*
(em memória de minha Avó,
Júlia Monteiro Baptista)
Era uma vez...
Assim começava minha Avó, desfolhando as maçarocas da
memória. No canto do sofá seu rosto engelhado inspirava a sombra à medida que o
Sol se deslocava, lento, atravessando as gelosias. Eram estórias sábias, sem
começo e morais, nos lábios que formavam as letras de morango, o recorte de um
silêncio enternecido.
E eu ia vogando sobre os rios calmos, na barca que Avó
remava, não com remos, mas com pausas.
Eram tardes sem redemoinhos, que inevitavelmente acabavam
com andorinhas trazendo chilreios aos ninhos sob o telhado. Eram espaços em
tijoleira, na marquise estranhamente luminosa, ornada de plantas exóticas. Eram
cascatas do jardim, melancólicas sem dúvida, distiladas entre limos.
Nas sopas de massa havia letrinhas.
No tabuleiro do escritório, rectângulos com letras; o jogo
das letras, ortografia do acaso.
Não me recordo de beijos, nem de xi-corações. Mas sabia que
a meticulosa paciência da Avó guardava, em arcas, os postais e outras
maravilhas de frases-feitas.
Porém, o silêncio apodera-se de nós, o pudor cerrado no muro
de cal.
Não posso dizer a escrita que recobria os cadernos, nem tão
pouco os traços que bailavam nos desenhos...
Desenhos em que construía o historial da fantasia, povoados
de cavalos, espadachins, soldados napoleónicos e – por vezes – árvores.
Lembro-me bem do movimento das luzes (de faróis de carros)
que se iam projectar no tecto do quarto, à noite. Não fosse o ruído paralelo de
motores e ficaria convencido que eram sonhos, traiçoeiros, iludindo a espera
paciente do adormecer.
(* proso-poemas retirados do opúsculo inédito «Estórias de Estar e de Ser» 1985)