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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

A ALEMANHA E AS MENTIRAS DO IMPÉRIO [por Patrick Lawrence*]



Por Patrick Lawrence

Original em  Consortium News:

https://consortiumnews.com/2022/12/13/patrick-lawrence-germany-the-lies-of-empire/


 “A Alemanha é Hamlet,” escreveu uma vez Gordon Craig. O grande historiador daquela nação (1913-2005) era famoso pelas suas frases sugestivas, intuições que mostravam sob nova luz os recônditos antros da psique alemã, o que fazia este povo pestanejar. 

Estará a Alemanha virada para o Atlântico ou para Leste, para a massa continental Eurasiática? De que tradição vai beber? Onde se situam as suas lealdades? Isto são questões de geografia, de uma cultura antiga e rica e de uma longa e complicada história que se colocam aos alemães. Não penso que Craig pretendia sugerir que esta condição fosse um fardo. Não, não havia nada para resolver. Neste estado ambíguo - no Oeste, mas não integralmente nele, no Leste mas não totalmente dele - a Alemanha era igual a si própria, verdadeiramente.

Os alemãs viveram assim, sem pedir desculpas, durante muito tempo. Podiam permitir que os EUA estacionassem 200,000 militares no seu território - efetivos presentes no fim da guerra-fria — enquanto prosseguiam com a Ostpolitik de Willi Brandt, a abertura da República Federal à República democrática alemã e por extensão a todo o Bloco de Leste. Foi a Alemanha que investiu juntamente com Gazprom, o conglomerado russo da energia, nos gasodutos Nord Stream I e II, mesmo durante as crescentes tensões Leste - Oeste.

No longo percurso para a entrada em Moscovo, a partir do aeroporto internacional de Domodedovo, as largas vias estão bordejadas com stands de negociantes de carros alemães, de guindastes de construção alemã, de fábricas de companhias alemãs. Os meios industriais alemães assim como muitos cidadãos alemães, têm sido críticos sonoros do regime de sanções que os EUA impuseram à Rússia  — e efetivamente à Europa, de facto — após o golpe de Estado em Kiev, orquestrado pelos EUA, ter desencadeado a corrente crise na Ucrânia.

Eu leio as duas extraordinárias entrevistas dadas por A. Merkel ao Der Spiegel e ao Die Zeit na semana passada com pano de fundo desta historia, deste assente, deste organizado estado de ambiguidade. Se existe uma verdade que possa erguer-se acima de todas as outras nas espantosas revelações que a ex-chanceler fez, sobre  duplicidade de Berlim em suas relações com Moscovo, é a de que a República Federal abandonou a sua herança — o seu estado natural, de facto — assim como as responsabilidade consideráveis que o passado e a geografia lhe atribuíram.

Separação Leste-Oeste

Seria difícil exagerar o significado desta mudança para todos nós. A separação global tornou-se mais ampla, agora. A Guerra Fria II também se tornou mais fria. A separação do Leste e Oeste tornou-se agora uma situação mais ou menos permanente. E o mundo acabou de perder aquele país que tinha a capacidade de mitigar as atuais circunstâncias péssimas, graças à peculiar posição, talvez única, na comunidade das nações.

É estranho considerar o Príncipe Henrique XIII, o aristocrata alemão que acaba de ser preso por liderar uma conjura para derrubar o governo de Berlin (uma coleção de alegações absurdas, devo referir desde já, não tomo nem por um minuto a sério esta ausência de provas credíveis e não espero que jamais venham a ser apresentadas) Consta que o príncipe teria desenvolvido argumentação de que a Alemanha não se tinha tornado uma nova nação, após a Segunda Guerra Mundial, mas uma colónia subsidiária e pertença dos EUA.

“Não somos alemães. Não somos um verdadeiro Estado alemão" isto é citado como declaração dos seus adeptos numa peça (muito enviesada) do New York Times, publicada Domingo. “Somos apenas um ramo duma SARL”, que significa «sociedade anónima de responsabilidade limitada».

É tão estranho ler isto na mesma semana em que Merkel removeu qualquer laivo de dúvida, de que isto é precisamente a condição da Alemanha, seria este o caso desde os anos pós- guerra, e certamente o foi desde que Washington se comprometeu a si própria e aos seus aliados nesta campanha de expansão e inclusão de novos países na OTAN, para a levar até às fronteiras da Rússia e com o objetivo último de subverter a Federação Russa. 

Embora eu não saiba muito sobre as posições políticas do príncipe, é deveras interessante ouvir um cidadão alemão ter objeções, d facto, de que a República Federal se atraiçoou a si própria e à sua herança histórica, na mesma semana em que a ex-chanceler disse aos mis lidos magazine e jornal da Alemanha, que a frutuosa ambiguidade do passado da nação foi abandonada, em favor de uma desonestidade manipulativa e russófoba, que está no centro da guerra por procuração que os EUA têm levado a cabo contra a Rússia na Ucrânia.

Tem sido amplamente referido e analisado — salvo na imprensa americana «mainstream» em que as palavras de Merkel , na semana passada, não foram mencionadas — que a ex-líder alemã tenha descrito a sua traiçoeira e cínica atitude com Moscovo, nas negociações dos dois protocolos de Minsk, o primeiro assinado em Setembro de 2014 e o segundo, no Mês de Fevereiro do ano seguinte.

 

Outubro de 2014: O presidente russo, Vladimir Putin, à esquerda, falando com o presidente da Ucrânia Petro Poroshenko, à direita, e com a Chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês François Hollande. (Kremlin.ru, CC BY 4.0, Wikimedia Commons)

Tanto Berlim como Paris, o regime de Kiev resultante do golpe e Moscovo, foram todos signatários dos acordos.  Lembro-me muito bem do empenho que o presidente russo Vladimir Putin pôs nestas conversações. Muitos de nós esperávamos que, tendo Kiev violado os acordos de Minsk I, o segundo acordo iria produzir aquilo que o presidente russo procurava - um acordo duradoiro que deixasse a Ucrânia unida e estabilizasse a segurança e ordem na fronteira sul-oeste da Rússia e no flanco leste da Europa.

Mais cedo, este ano, o primeiro presidente ucraniano pós- golpe Petro Poroshenko, chocou toda a gente quando afirmou publicamente que Kiev nunca tinha tido qualquer intenção de honrar os compromissos feitos quando assinou os protocolos de Minsk: As conversações na capital da Bielorrússia e todas as promessas queriam simplesmente dizer, para ele, um processo de ganhar tempo enquanto a Ucrânia construía fortificações nas regiões a leste e que treinava e armava um exército suficientemente forte para levar a cabo uma guerra de agressão total contra as  regiões com inclinações pró-russas, de Donetsk e Lugansk.

Nunca houve qualquer interesse em implementar a estrutura federal desenhada em Minsk II. Nunca houve qualquer intenção em fornecer às regiões separatistas a medida de autonomia reclamada, que a própria História da Ucrânia e seu mosaico linguístico, cultural e de tradições, justificavam. Tornou público que isto era uma astúcia para enganar Moscovo e as repúblicas do Donbass, enquanto a Ucrânia se rearmava e bombardeava estas repúblicas, em antecipação da guerra que rebentou em pleno em Fevereiro.

É chocante, sim. Mas Poroshenko é um magnate da doçaria que montou o regime, largamente irresponsável e furiosamente russofóbico que tinha tomado o poder em Kiev.  Portanto: Chocante, mas também conforme com a conduta desse bando de ninguéns, corruptos até às raízes dos cabelos, com nenhuma noção de sentido de Estado ou de governança responsável.

Tomam outra dimensão, para vincar o óbvio, quando as mesmas coisas são ditas por Merkel. Era suposto a ex-chanceler ter liderado a posição da diplomacia ocidental, juntamente com François Hollande, o presidente francês na altura e claramente formando equipa com a figura mais importante na política europeia. Pelo seu próprio relato, estava a usar a diplomacia exatamente como o fazia Kiev, para inviabilizar o acordo que, pretensamente, ela apadrinhava.

Convém lembrar os leitores de que os EUA não foram parte nas conversações de Minsk. Por um lado, posicionou-se totalmente contra qualquer acordo quer coma Rússia, quer com as Regiões Separatistas. Por outro lado, não fazia sentido convidar os EUA para Minsk porque a sua posição era óbvia e sua presença seria contraproducente. Agora, que Merkel falou nestes termos, a posição alemã era a de que o Ocidente precisava do acordo - que não interessava a ninguém, no Ocidente -  apenas como forma de ganhar tempo para a Ucrânia se rearmar. 

As entrevistas de Merkel com o Der Spiegel e o Die Zeit foram efetuadas como retrospetivas, em que os correspondentes amistosamente proporcionavam à ex-chanceler um olhar para o passado. Os tópicos de Minsk e da Ucrânia eram apenas dois entre muitos. Os textos dão a impressão de que Merkel falou deles de forma casual e sem reticências. Os fragmentos em causa, são curtos, mas muito claros.

Der Spiegel:

Ela pensa que… depois, durante as conversações de Minsk, ela conseguiu comprar tempo que a Ucrânia precisava para melhor enfrentar um ataque russo. Ela diz que é agora um país forte e bem fortificado. Nessa altura, ela tem a certeza de que seria varrido pelas tropas de Putin.

No Die Zeit, na segunda das das entrevistas, Merkel descreveu as negociações de Minsk como “um meio para dar tempo à Ucrânia... para ela se fortalecer,” mais adiante exprime satisfação de que esta estratégia - um claro abuso dos procedimentos diplomáticos - tenha tido sucesso.

Há várias interpretações das palavras de Merkel. São, em geral, tomadas como o reconhecimento sem máscara da sua duplicidade - e por extensão, do Ocidente - na sua forma de lidar com a Rússia sobre a questão da Ucrânia. O «Moon of Alabama», um blog feito por um alemão, vê as entrevistas como a tentativa de Merkel em proteger sua reputação, junto dos meios de liderança da Alemanha, onde há uma viragem para posições de russofobia, comuns nos EUA, mas não o eram, até agora na Alemanha.

Acho ambas as leituras plausíveis. De qualquer modo, o grande assunto que enfrentamos agora é  o prejuízo causado por Merkel em 2014 e 2015 e as consequências das suas declarações na semana passada.  

Muito se disse e escreveu sobre o golpe fatal que Merkel desferiu na confiança em assuntos diplomáticos, e penso que «fatal» é a palavra adequada. Ray McGovern foi esclarecedor neste assunto, trazendo a sua experiência profissional a esta questão, numa longa conversa com Glenn Diesen e com Alexander Mercouris, na semana passada.

Um certo grau de confiança era essencial entre Washington e Moscovo, mesmo durante as etapas mais perigosas da Guerra Fria. A Crise dos Mísseis de Cuba foi resolvida porque o Presidente John F. Kennedy e Primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, foram capazes de confiar o suficiente um no outro. Esta confiança já não existe, como Putin e outros membros do governo russo deixaram claro em declarações feitas em resposta às duas entrevistas alemãs.

Moscovo e Pequim disseram repetidamente que, desde que Joe Biden assumiu o cargo, nem sequer há dois anos atrás, já não existe confiança com os americanos. A consequência disto, é que não vale a pena negociar com eles num contexto diplomático. Para os diversos membros do governo russo, desde afirmações de Putin, até figuras menores, as declarações de Merkel parecem ter confirmado, lamentavelmente, as conclusões anteriores. 

Trata-se de uma viragem maior, que Moscovo agora inclua os europeus e em especial os alemães, nesta avaliação. Agora os alemães dizem as mentiras de que o império americano  é feito - um motivo de ansiedade e tristeza, juntas. Se a diplomacia da terra-queimada é nome adequado para as manobras que o Ocidente tem estado a fazer no relacionamento com a Rússia desde 2014, como eu penso que seja, então a ponte alemã entre o Ocidente e Leste foi queimada.

A gravidade destas conclusões, as suas implicações à medida que avançamos, são imensas para o Ocidente e para o que não seja Ocidente, de igual modo. Um mundo cheio de hostilidades é o que nós todos conhecemos. Um mundo destituído de confiança e de diálogo será outro patamar. Tal como vemos no contexto ucraniano, não há possibilidade de diplomacia, de negociação ou de diálogo de qualquer espécie, sem confiança. Nós lemos quotidianamente os resultados disso nas poucas publicações que descrevem com honestidade esta guerra.

*Patrick Lawrence, tem sido correspondente estrangeiro durante muitos anos, principalmente para International Herald Tribune, ele tem escrito colunas, ensaios, é autor de livros e conferencista. O seu livro mais recente é intitulado «Time No Longer: Americans After the American Century».