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sábado, 25 de setembro de 2021

A ARTE RUPESTRE DO PALEOLÍTICO QUESTIONA O HOMEM CONTEMPORÂNEO*

                 

Gostava de levantar alguns pontos de reflexão no que toca à arte parietal do paleolítico, as representações ou as figuras abstratas, que revelam algumas grutas e alguns locais a céu aberto. 

- Conta-se que dizia Picasso, ao sair da gruta de Lascaux, recém-descoberta: «nós não inventámos nada! Eles já sabiam tudo!». Com efeito, eles tinham um olhar atento e agudo, a mestria da forma e do movimento, a ciência dos pigmentos, sabiam jogar com o relevo e com sombra e luz …

O que me toca mais - e isto é uma reflexão inteiramente subjetiva - é a estranha sensação que tenho quando olho, observo estes testemunhos dos caçadores-recolectores de há dezenas, senão centenas de milhares de anos: é a sensação de que estas figuras me estão próximas, que estou vendo algo muito antigo, mas em simultâneo algo feito por pessoas como eu, como nós, com as mesmas características.

Quando digo pessoas como eu, como nós, refiro-me aos aspetos anatómicos. Se um desses humanos voltasse à vida e fosse arranjado e vestido como os contemporâneos, seria impossível de distingui-lo de nós, apenas talvez notáveis por uma complexão vigorosa, pelo corpo fortemente musculado. Mas, também me refiro aos aspetos mais sociais, psicológicos. Acredito que tivessem uma forte ligação ao seu grupo, que tivessem perpetuado desde incontáveis gerações narrativas semi-históricas, semi-fantásticas, que narravam e transmitiam, à luz da fogueira. Não podem ter sido senão excelentes observadores do mundo natural, pois as figuras de animais representadas têm um vigor e precisão anatómica que implicam uma visão muito apurada e um sentido mesmo do movimento dos referidos animais. A sua utilização dos volumes das paredes rochosas, a disposição e a forma como delineavam precisamente certas partes do contorno enquanto outras apenas eram esboçadas, ou até suprimidas, não podem ter sido fruto do acaso. São resultantes de um saber-fazer, duma técnica, dum conhecimento de como determinada imagem iria vibrar à luz das tochas, visto que muitas destas imagens parietais estão presentes em salas recuadas dos complexos cavernícolas, apenas podiam ser vistas à luz artificial, de tochas ou lamparinas. 

Não creio que seja por acaso que não se encontrem, ou sejam tão raras, representações humanas, anteriores ao neolítico, nesta arte parietal. É um facto que existem raras figuras humanas ou humanoides,  corpo de homem, com cabeça de cervo, ou com cabeça de leão das cavernas, porém estes exemplos, além de raros, estão sobretudo presentes em pequenas estatuetas de marfim ou de osso, que poderiam ser transportadas como amuletos. Porém, são menos raras as representações estilizadas do órgão sexual feminino, a vulva. Os órgãos masculinos nunca, que eu saiba, estão representados em separado. Conhece-se uma figura masculina, aparentemente tombada, com o pénis em ereção. Parece-me correto dizer-se, pelo menos à luz das descobertas feitas até hoje, que a figura humana está quase ausente do conjunto de arte parietal paleolítica. 

A este propósito, não deixa de ser intrigante que, em muitos exemplos de arte neolítica, nos primeiros povos praticando agricultura e pastorícia, as representações humanas, em monumentos, nos objetos de adorno, etc. são muito mais frequentes. 

Muita tinta deve ter corrido para «explicar» a visão do mundo dos homens paleolíticos. Muito do que se tem especulado, tem mais a ver com a projeção da mentalidade e preconceitos  dos seus autores, sobre o que seja o homem paleolítico, a evolução biológica humana, etc. do que uma tentativa séria, mesmo que especulativa, para ir ao encontro de um mistério, para perceber a realidade essencialmente interior dos humanos, que produziram aquelas expressões do psiquismo, que nós consideramos «arte». Eu tenho lembrança dos escritos de André Leroi-Gouhan, que foram tão importantes para minha formação pessoal, no início dos anos 70 (Le Geste et la Parole; La Mémoire et les Rythmes; Techniques et Langage...) 

                               
                        https://www.youtube.com/watch?v=UT3sN3Df2j4

Leroi-Gourhan e outros, podem estar datados, as conclusões a que chegaram devem ter sido profundamente revistas, algumas foram rejeitadas, mas a ciência é feita assim. Com a emissão de hipóteses, que num dado momento estão em conformidade com o conjunto de dados disponíveis sobre um assunto determinado, porém sempre a serem revistas, reelaboradas, rejeitadas e substituídas por outras hipóteses. O facto de que uma hipótese formulada cientificamente foi derrotada por um novo conjunto de dados, por descobertas que obrigam a modificar substancialmente e a impor-se um novo paradigma, não significa que essa hipótese anterior tenha sido em vão. Pelo contrário, é como o patamar, indispensável para se alcançar o andar acima.

Para além das teorias e as especulações mais ou menos imbuídas de elementos ideológicos, acho que podemos abordar as imagens, as representações deixadas pelo homem paleolítico, com respeito. Com o respeito decorrente de estarmos perante culturas, cuja trama mental e  universo simbólico, não nos poderão ser revelados jamais, mas cujos produtos estão inegavelmente presentes, brutalmente contemporâneos de nós todos. 

A arte é intemporal /A arte é fruto de uma época, de uma mentalidade, de uma cosmovisão

Este paradoxo é aparente, apenas, pois nada de essencialmente contraditório se encontra nas afirmações acima.

Confesso que tive um choque ao descobrir as gravuras rupestres do Foz-Côa, há mais de uma dúzia de anos. Deixaram-me uma impressão tão memorável como outros momentos cruciais da minha vida de 67 primaveras. O olhar que pousamos sobre a arte paleolítica é sobretudo sobre nós próprios: Assim como tu olhas para esta forma da expressão humana, assim eu sei em que cultura tu te encontras mergulhado, sei qual o substrato ideológico sobre o qual constróis os teus juízos estéticos. A história do modo como as diversas sociedades encararam o «homem primitivo», diz-nos muito mais sobre elas, do que sobre o dito homem. 

Darwin, na segunda metade do século XIX, tinha a modéstia de reconhecer que dispunha de pouquíssimos dados paleontológicos sobre os antecedentes da humanidade. Porém, escreveu dois volumes sobre a origem do homem, baseado numa biologia comparativa, essencialmente, resultando de observações, quer sobre o homem atual, quer sobre outras espécies de mamíferos. 

A descoberta, contemporânea de Darwin, do Homem de Neandertal, foi a primeira revelação concreta duma forma anterior ao Homo sapiens. Esta espécie é bastante recente, de facto, coexistiu com nossa espécie, por um período muito extenso de história comum. Foi, na época da sua descoberta, objeto da projeção de tudo o que - em finais do século XIX, princípio do século XX - se considerava como «primitivo, bruto»... Os que seguiram imediatamente Darwin não tinham mais que uma mão-cheia de achados, muito mal estudados. Alguns dos locais destes achados foram irremediavelmente destruídos. Porém, foram muito arrojados em avançar com teorias, caducas hoje em dia, que apenas têm interesse para a História das Ciências,  para se perceber como a antropologia está eivada de preconceitos, que se espalham em determinadas épocas e sociedades. 

Isto não significa que não se possa abordar a expressão estética no homem paleolítico. Significa antes, que se tem de abordar sob um prisma objetivista (como Leroi-Gourhan defendia), o que passa por um agudo sentido de autocrítica, uma modéstia e uma abertura enorme às opiniões alheias. Ao fim e ao cabo, isto remete para algo de muito filosófico, adequado a uma reflexão aprofundada sobre a humanidade.

A natureza humana, será imutável? Será ela resultante, mais ou menos direta, das condições de vida?  Fará sentido falar-se de «natureza humana», para além da óbvia continuidade biológica da sucessão de gerações, no tempo e da não menos óbvia continuidade de caraterísticas comuns, ao longo do espaço geográfico da distribuição da espécie?

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*NB 

O título pode parecer invertido, mas não: A verdade é que devemos questionar-nos aonde foi parar a humanidade do homem, este é o sentido primário da frase « A ARTE RUPESTRE DO PALEOLÍTICO QUESTIONA O HOMEM CONTEMPORÂNEO ». É, afinal de contas,  esta reflexão que irá desencadear outra, ou seja, qual a realidade do que chamam «progresso» ou «civilização»!