Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.
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domingo, 9 de setembro de 2018

CRÓNICA SINO-COREANA, PARTE IV: A POESIA DE YUN-DONG-JU por Eduardo Baptista*



Antes de ler a poesia do personagem principal desta semana, Yun Dong Ju (1917-1945), nunca me considerei um apreciador de poesia. Quando penso nos poucos encontros que tive com esta arte, vêm-me à memória os meus dias do secundário em Portugal.

Em Setembro de 2013, na aula de língua e literatura inglesa, fazia um calor insuportável que nos punha, miúdos de dezassete e dezoito anos, num estado incompatível com o estudo. Contudo, a nossa jovem professora, Miss Bird, não tolerava preguiça em qualquer circunstância. De olhos e nariz afiados, Molly Bird era uma londrina imbuída duma elegância e sofisticação cultural que forçavam o nosso respeito; o sotaque dela estava impregnado daquela melodia que todo o mundo associa com a classe alta inglesa, mas não era exagerado ao ponto de ser cómico. Talvez eu ainda esteja sob o feitiço dela, mas lembro-me de ter pensado que a voz dela era feita para falar de assuntos profundos, como a poesia.
Porém, nesse dia ela não teve que se esforçar muito para captar a nossa atenção. Toda a turma, incluindo os malandros que se sentavam lá atrás a ver as últimas notícias da bola no Record.pt, pôs-se a ler o poema que Miss Bird tinha colocado em cima da mesa de cada um. Era “O Caminho Que Não Foi Percorrido”, pelo americano Robert Frost, um poema que fala sobre as escolhas difíceis que cada um de nós tem que enfrentar durante a nossa vida. Já faz mais do que quatro anos desde a última vez que li um poema de Frost, mas há uma estrofe que - sabe-se lá porquê - nunca me saiu da cabeça:

E irei dizer isto suspirando                               I shall be telling this with a sign
Algures eras e eras depois                                Somewhere ages and ages hence:
Duas estradas divergiam no mato, e eu–   Two roads diverged in a wood, and I–
Tomei a menos percorrida                                I took the one less traveled by,
E isso fez toda a diferença.                               And that has made all the difference.

Avancemos rapidamente para Março de 2018. Estava falando numa vídeo chamada com a minha mãe, chateada comigo depois de ter visto um vídeo bastante medíocre, que eu tinha feito sobre os restaurantes-tenda de Seul. Pensava que ela estaria orgulhosa do seu filho, que depois de tantos anos sem estudar seriamente a língua coreana, conseguiu conduzir entrevistas em coreano e criar qualquer coisa que tinha a ver com a cultura coreana. Mas, caros amigos «tugas», não se pode esquecer que as mães coreanas são das mais objetivas e exigentes que há neste mundo.
“Mas que me importa que tenhas passado 25 dias a filmar esse vídeo, tudo o que eu vi foi tu a gaguejar como um palerma enquanto entrevistavas essas pessoas.”
“Vá lá, mãezinha, estava frio nesse dia, é por isso que eu estava a gaguejar, não sejas assim,” eu queixei-me.
“Podias ter tomado aulas de coreano, viajado pelo país, feito qualquer coisa de útil, meu filho! Como é possível que o teu coreano ainda não tenha melhorado depois de 40 dias em Seul, a sério que pensavas que fingindo ser jornalista irias resolver o problema?”
“Pelo menos aprendi como se bebe à coreana, não podes negar que isso é útil para a minha educação,” eu respondi, na esperança de que a minha mãe iria achar piada.”
“E que tal começares pelo básico? Abre o «chat» do Facebook, acabei de te enviar um poema escrito por um dos poetas coreanos mais famosos da era moderna, Yun Dong Ju. Gostava muito de ler os seus escritos quando era moça. Memoriza-o antes da próxima conversa e assim acreditarei que a borga em Seul tinha um objetivo educacional,” e assim se despediu a minha mãe.
Meu Deus! Já me tinha esquecido quão dura ela podia ser. Olhando para o link que ela me tinha enviado, temia enfrentar o que na altura pensava ser um escrito cheio de palavras coreanas complicadas e pomposas, que alguém com um nível de coreano medíocre como eu teria dificuldade em digerir. De qualquer modo, decidi pôr estas preocupações de lado e ver quem era este Yun Dong Ju.
O link levou-me para um blog apresentando o poema “Prólogo”, um dos poemas mais famosos de Yun, ensinado em todas as escolas coreanas do segundo ciclo. Lendo a primeira estrofe, fiquei surpreendido ao descobrir que a linguagem de Yun era simples, clara e imbuída de amor pela natureza, características que me atraíram na poesia de Frost há cinco anos atrás. Abaixo, está a minha tradução do poema.


Até o dia da minha morte, eu olho para o céu                  
Para não sentir nem uma gota de vergonha,                   
Mas no meio do vento onde as folhas tremem                  
Senti-me só.                                                                               
Tudo o que morre, tem que  ser amado                            
Com uma alma que canta como as estrelas                      
E o caminho que me foi dado                                                
Andarei.                                                                                     

Nesta noite de hoje, as estrelas desvanecem no vento.        

Tanto Yun como Frost falam sobre uma estrada que os leva para um certo destino, mas para onde exatamente? Para uma criatividade artística? Para a fama literária?
- Não me parece. Frost declama ‘com um suspiro’, enquanto reflecte o caminho que percorreu, Yun olha para a frente, contemplando o futuro que o aguarda como jovem coreano sem nação própria, com um desejo de lutar contra o imperialismo japonês, por mais poderoso que ele seja, por mais graves as consequências. Em ambos casos, os dois “caminhos” não parecem estar cheios de felicidade e prosperidade, muito pelo contrário.
Seguir o destino ou ir contra a corrente não é defendido como sendo objetivamente “bom” por qualquer um destes poemas; os dois autores aceitam estoicamente escolher a estrada menos percorrida, porque sentem uma compulsão irresistível de o fazer. Ainda me lembro de quando, há cinco anos atrás, li o último verso de “O Caminho que não foi percorrido” – «e isso fez toda a diferença» – e senti um surto repentino de bravura e esperança, daquela que é decorrente da compreensão esporádica de que a única coisa a fazer é, nas palavras de Friedrich Nietzsche, nos tornarmos no que somos.
Contudo, é preciso lembrar que tal escolha só poderá trazer-nos maior infelicidade do que a aceitação da conformidade. Nietzsche, depois de ter escrito durante tantos anos, que perseguir a felicidade era um comportamento de ovelhas, não do pastor que as comanda, enlouqueceu aos 44 anos, passando os últimos anos da sua vida num asilo.  Frost, apesar de ter estado rodeado de pastos idílicos e quintas durante grande parte da sua vida, sofreu períodos de grande depressão. Da mesma maneira, o desejo de Yun de deixar a sua terra naquele cantinho remoto do nordeste da China (conhecida agora como Yanbian) e de estudar nas cidades de Seul e Tóquio, mais tarde, trouxeram-no demasiado perto das autoridades japonesas, sempre vigilantes contra os movimentos de independência organizados pelos estudantes coreanos. Encarcerado aos 25 anos, falecido aos 27, deixou-nos menos de 50 poemas, escritos ao longo da sua curta vida.
A trajetória da vida de Yun também contém um outro elemento trágico, sensível para muitos coreanos.  Yun nasceu, formalmente, com nacionalidade japonesa, em vez de coreana. Nascido em 1917, sete anos depois da anexação da Coreia, Yun nunca viu uma Coreia independente, pois a sua morte - em Fevereiro de 1945 - antecedeu a capitulação do império japonês a 15 de Agosto, de 1945.
No entanto, este artigo debruça-se sobre o nascimento de Yun, ou dito melhor, a sua terra natal, a uns 50 km de Yanji. Quando Yun nasceu em 1917, a província autónoma de Yanbian não existia, porque os coreanos naquela altura não faziam parte de um Estado omnipresente no território inteiro da China. Em 1917, pode-se dizer que Yanbian estava cheia de coreanos, em vez de djosonjok, o nome coreano da etnia minoritária coreana na China.
Naquela altura, a península coreana ainda era vista pelos coreanos como um só país e os que tinham emigrado para o nordeste da China, quer fossem em busca de uma vida melhor ou para escapar à opressão japonesa, ainda se consideravam coreanos, tinham saudades da sua terra natal, acreditando que no futuro poderiam regressar. Isto foi o mundo em que Yun nasceu.
Como disse num artigo anterior, Yanbian - hoje em dia - é vista com bons olhos pelo governo chinês. Foi galardoada inúmeras vezes com o prémio “Prefeitura Exemplar do Ano” pelo Concelho de Estado Chinês, no pólo oposto da região autónoma de Xinjiang que recentemente tem sido vítima duma campanha do governo chinês contra o Islão e etnias minoritárias islâmicas, principalmente os Uigurs.
Mas quando Yun estava vivo, Yanbian não era mansa, pelo contrário, era o foco da resistência coreana contra o imperialismo japonês. Depois da anexação japonesa da Coreia em 1910, Yanbian tornou-se refúgio para os coreanos que recusaram colaborar ou aceitar os novos governantes japoneses– era perto da fronteira sino-coreana e havia uma comunidade coreana bem-estabelecida, pronta para acolher de braços abertos os heróis da pátria. Pode-se dizer que a Yanbian de Yun tornou-se numa segunda Coreia, depois da colonização desta pelos japoneses.

Dado que Yun fez parte deste período, podem imaginar a minha surpresa, ao chegar ao local de nascimento de Yun e ter visto as palavras “poeta chinês djosonjok patriótico”, inscritas em coreano e chinês na placa da entrada.



Como eu descobri depois, isto enfurece muitos turistas sul coreanos que têm visitado a casa de nascimento do poeta, desde a sua abertura em 2012, o que levou algumas organizações mediáticas sul coreanas a fazer reportagens sobre esta apropriação chinesa deste “herói do povo”

 Reportagem da organização mediática YTN sobre a representação errónea de Yun Dong Ju como sendo chinês

Antes de chegarmos à aldeia de Mingdong, parámos para almoçar na pequena cidade de Longjing. Depois de comer um delicioso guisado de cão, descobri que havia uma escola djosonjok nos arredores, alojando um museu dedicado ao poeta Yun, assim como estátuas e bustos.

«A escola djosonjok que brilha como as estrelas», uma referência a um dos símbolos que Yun mais frequentemente usava na sua poesia, escrita sobre uma placa ao pé da porta principal da escola.

Apesar do museu estar a meio duma renovação, tive a oportunidade de ver o busto de Yun.


… e este monumento gigante, um pedregulho cinzento, tendo nele gravado: “Yun Dong Ju, o poeta”, por cima de um cubo de mármore exibindo o poema “Prólogo”, por sua vez posto em cima dum cubóide negro tendo o mesmo poema gravado, mas em chinês.



Falando com o curador do museu, um djosonjok com baixo nível de mandarim (o dialeto do norte da China), ele apressou-se a definir Yun como chinês, antes de começar a queixar-se sobre um incidente quando alguns turistas sul coreanos entraram na escola, desfraldaram bandeiras sul-coreanas, e começaram a tirar fotografias com elas, nos monumentos dedicados a Yun. O curador chamou a polícia imediatamente, recordou ele, fazendo uma cara de desdém ao descrever o que ele achava ser arrogância sul-coreana, em ignorar a singularidade dos djosonjok
Nota-se que o orgulho dos djosonjok como sendo um grupo étnico coreano distinto dos sul-coreanos, leva-os a ignorar detalhes importantes históricos, como o facto de que Yun - sem dúvida - se considerava coreano, numa altura em que os imigrantes coreanos na China não tinham sido naturalizados. 
Os djosonjok, no presente, consideram-se como cidadãos chineses. Por isso, criar uma história que reforce esta identidade é o que importa. Achei particularmente interessante o facto de que este curador, apesar de falar coreano mil vezes melhor que chinês, exprimia uma retórica pró-China.

 Eduardo Baptista e o curador do museu Yun Dong-Ju da escola djosonjok de Longjing

De qualquer forma, a peregrinação de sul-coreanos para Yanji acabou bruscamente no verão de 2016. 
A decisão do governo sul-coreano de instalar o sistema de defesa antimísseis (conhecido como «THAAD») enfureceu o governo chinês, que viu tal decisão como sendo obra dos americanos, com intenção de usar o radar poderoso do THAAD para espiar o território chinês, que é vizinho da península coreana. Por esse motivo, o governo chinês impôs uma barragem de sanções económicas com severidade nunca antes vista. O turismo entre os dois países também fez parte destas sanções, que só em Outubro de 2017 foram levantadas.

Mas deixemos a política fora desta reportagem, e voltemos ao tema principal: a poesia.

Os caracteres representando «estrela, céu, e vento», cada um gravado numa coluna de granito.  
Olhando de perto a coluna da esquerda, encontrei o poema “Prólogo” gravado em coreano


No dia em que eu visitei a casa de nascimento de Yun, a entrada estava fechada. Só depois de algumas pesquisas no Baidu (a versão chinesa do Google) é que conseguimos encontrar o número de telemóvel do guarda deste lugar, o qual chegou passados 45 minutos, em cima de um trator, fumando um cigarro, enquanto olhava para mim como se eu fosse louco. Suponho que há muitos meses que ele não abria as portas desta casa a grupos de turistas sul coreanos e muito menos a um sul-coreano viajando sozinho.

Tinha as minhas dúvidas iniciais sobre esta visita. Contudo, após entrar no pátio desta casa-museu, fiquei encantado.


Em volta do pátio, encontravam-se todos os poemas de Yun Dong Ju, gravados em coreano, em rochas pousadas no chão, e em chinês nas torres de bronze. Saborear poesia duma maneira tão visual era uma novidade para mim, e entretive-me a pular de um poema para o outro. 
Em baixo, coloquei uma pequena selecção de poemas, traduzidos de coreano para português.


“Num dia assim”


Lá ao fundo, passando os pilares do portão da frente,
Num dia em que o Sol e o Céu dançavam,
Nesta aldeia coberta de ouro, sorriam as crianças.

Para crianças que passam o dia em aulas monótonas na escola,
E naquele tédio do fim do ano que se abate sempre,
Para que elas não percebam o significado do termo «contradição»,
As suas mentes têm de ser realmente muito puras.

Num dia assim
Sinto vontade de chamar
O irmão teimoso que perdi.



“Ameijoa – eu quero ouvir o som do mar”


Ao pé do mar, a nossa irmã colheu ameijoas,
Pontilhadas, pontilhadas conchas do mar.
Aqui, aqui é o país do Norte.
As ameijoas são prendas queridas,
As ameijoas são brinquedos.
Rebolando, brincando enquanto rebola,
A concha de ameijoa solitária
Tem saudades do seu parceiro perdido.
Pontilhada, pontilhada concha do mar,
Como eu, também tens saudades,
Do som da água,
Do som do mar.




“Prólogo”


Até o dia da minha morte, eu olho para o céu                  
Para não sentir nem uma gota de vergonha,                   
Mas no meio do vento onde as folhas tremem                  
Senti-me só.                                                                               
Tudo o que morre, tem que  ser amado                            
Com uma alma que canta como as estrelas                      
E o caminho que me foi dado                                                
Andarei.                                                                                     
Nesta noite de hoje, as estrelas desvanecem no vento.   
          

“Despedida”


A neve cai, um dia chuvoso chegou,
O céu cinzento tornou-se enevoado,
E, quando o enorme comboio a vapor chora
Fiu, Fiu! meu pequeno coração geme.
A despedida é demasiado apressada e triste
Dizemos às pessoas que amamos:
Apenas nos veremos no trabalho —
E antes dos apertos de mãos quentes e que sequem as lágrimas
O comboio vira a sua cauda em direção ao sopé.



“Na noite em que choveu”


Chuá-Chuá, Cracccc!
O som das ondas batendo nas janelas,
O sono, suavemente, dispersa os meus sonhos.

O sono é apenas como a agitação de um bando de baleias negras,
É incapaz de consolar.

O fogo revela os pijamas da Yeomi honesta,
Meia-noite,
Desejo.

Na terra de Longjing, é como se o rio Gang tivesse transbordado outra vez,
Faz-me sentir mais só que no Mar da Nostalgia.




Tal como o universo das tendinhas de Seul, a poesia de Yun Dong Ju é muito “humana”, pois cobre um vasto leque de emoções e temas, ao representar com precisão a mutabilidade emocional do homem e a natureza volúvel de sua mente. Ao contrário das tendinhas, em que os adultos coreanos deixam escapar sua fúria reprimida, a poesia de Yun carece precisamente desta característica, intrínseca à personalidade estereotipada do urbanizado típico coreano.
A razão pela qual os sul-coreanos veneram tanto Yun, é provavelmente devido ao poeta ser capaz de simplesmente observar o mundo, sem julgar ou mostrar-se preocupado com a sua posição em relação à sociedade. 
Num país onde o stress no trabalho abunda e onde conformar-se com as normas restritivas é obrigatório, a poesia de Yun fornece um pouco de paz de espírito, que nos ajuda a redescobrir a nossa capacidade de apreciar ou, pelo menos observar, o nosso estado emocional, em vez de agir cegamente de acordo com o que ele dita. Perante intenções tão puras, desprovidas de motivações ocultas, os sul-coreanos não podem deixar de se sentir comovidos por alguém que viu o mundo de maneira tão oposta ao que lhes tem sido inculcado desde a infância.
Depois de duas horas em que deixei a imaginação poética de Yun Dong Ju conduzir as minhas pernas, finalmente chamei, por telemóvel, o motorista que tinha saído da casa-museu, depois de lhe ter dito que 30 minutos não seria suficiente para eu me fartar deste santuário de poesia.
Ao sair, vi-o encostado ao capot do carro, fumando um cigarro. Sorriu-me, quando me aproximei dele.
-“Então, a visita está concluída, ou quê? Já estava a preparar-me para ficar cá até amanhã de manhã” gracejou.
Ri-me, dando-me conta que provavelmente ele pensava que eu era ché-ché.
- “Talvez me tenha sentido comovido, só um pouquinho, por este Yun…”
- “Sim, eu - por acaso - também me senti comovido,” disse ele.
Olhei-o surpreendido, o que - por sua vez - o surpreendeu.
-“Não é difícil gostar do que este tipo escreve. O charme dele é escrever de uma maneira tão simples que derrete o coração de todos. Os poetas chineses são fanfarrões, não percebo metade do que eles escrevem. Mas este gajo coreano, Yun qualquer coisa, é um homem do povo!”
Fiquei feliz por ele compartilhar alguns dos meus pensamentos. Conversámos durante mais de uma hora antes do porteiro finalmente vir trancar a entrada. Era quase o pôr-do-sol e decidimos apressar-nos de volta a Yanji.

 Estava contente com os meus cinco dias passados em Yanji, uma cidade bilingue e bicultural, onde vivem coreanos desiludidos com a China, as mais bonitas professoras de piano da Coreia do Norte e onde é homenageado o poeta coreano do século XX mais bem conhecido mundialmente. 
Teria sido bom passar mais tempo com djosonjok de diferentes percursos de vida, mas Pequim chamava-me. A minha única consolação foi que, no voo de regresso, a equipa de futebol de Yanbian também estava a bordo:
Até o avião aterrar no aeroporto de Pequim, tive o privilégio de ouvir e ver homens djosonjok matulões, gozando uns com os outros e também com o único jogador negro da equipa. 
No aeroporto, à chegada, dúzias de meninas djosonjok cercaram os jogadores enquanto eles caminhavam para levantar as malas, desencorajando-me de lhes pedir um autógrafo no meu exemplar da colectânea de poesia de Yun Dong Ju.

No meu dormitório, enviei fotografias da casa-museu de Yun à minha mãe.
Respondeu-me, pouco depois: “Muito bem.”
Sorri, ao experimentar o prazer infantil de receber a aprovação da minha mãe. 
Mas, afinal de contas, se há uma verdade contida na poesia de Yun, é que nós - adultos - conservamos mais pensamentos, sonhos e comportamentos de criança do que julgamos.

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Blogs de Eduardo Baptista:

https://www.asiaunbounded.com/

http://lusoasiatico.com/

* Outras Crónicas de Eduardo Baptista disponíveis neste blog:
https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2018/08/cronica-de-pequim-arte-de-imitar-os.html https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2018/08/cronica-sino-coreana-parte-iii-eduardo.html https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2018/05/cronica-sino-coreana-por-eduardo.html


quarta-feira, 22 de agosto de 2018

CRÓNICA DE PEQUIM - A ARTE DE IMITAR OS SONS DA NATUREZA (POR EDUARDO BAPTISTA)

                      

Neste artigo em língua inglesa «Master of Mimicry» Eduardo Baptista apresenta-nos um expoente da arte chinesa de imitar os sons da natureza, apenas com a boca e as cordas vocais.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

CRÓNICA SINO-COREANA - PARTE III (EDUARDO BAPTISTA)

     
Na semana passada, explor​á​mos questões​ relativas ao​ povo Joseonjok de Yanji, com foco especial na relação que eles têm com a Coreia do Sul e com a China. Esta semana, desviamos o nosso olhar das duas grandes etnias da cidade de Yanji, coreana e ​h​an, para podermos concentrar-nos numa comunidade de imigrantes muito especial: os norte-coreanos de Yanji. Sim, para quem não saiba, há muitos norte-coreanos, vivendo tranquilamente fora das fronteiras do regime totalitário.

                            

Pessoalmente, acho irónico que só depois dos 20 anos é que tenha começado a aperceber-me como a Coreia do Norte é incorrectamente caracterizada por muita da média ​a​mericana, o que naturalmente influencia a média ​p​ortuguesa.
Antes, eu também fazia parte da distribuição de informação falsa ou exagerada sobre este regime. Ansioso ​por​ impressionar compatriotas portugueses, que nunca tinham conhecido um luso-coreano, muitas conversas decorriam desta maneira:
"Ah, não és chinês? Então esses olhos em bico vêm donde?" pergunta um bacano qualquer à frente do Bar 148, fornecedor das cervejas de meio-litro mais baratas do Bairro Alto. O tom dele é simpático, revela ignorância e ingenuidade, mas não tem conotação racista.
"É porque a minha mãe é coreana..."
"Do norte ou do sul?" responde ele com um sorriso malandro.
Eu respondo-lhe com outro sorriso, ainda maior. Tendo ouvido esta pergunta tantas vezes, a minha resposta já estava bem ensaiada; era uma que dava para puxar mais conversa.
"Mas estás maluco ou quê? Os do norte não podem sair do país, nem para viajar, quanto mais para emigrar."
"A sério? Mas então o que é que acontece se um deles tentar sair dali?" pergunta o meu ouvinte de boca aberta.
"Quase de certeza, vai ser apanhado, arrastado de volta para a Coreia do Norte, torturado e finalmente fuzilado. Ás vezes a sua família recebe o mesmo castigo!"
"É pá, isso nem a PIDE faria!"
E assim ​prosseguia​ a conversa, uma exageração após outra, até eu finalmente ​decidir alcançar os meus amigos que, entretanto se tinham distanciado,​ fartos da minha ​tagarelice​.
Proceder por generalizações, a torto e a direito,​ é marca da estupidez, enquanto a nuance é indício de maturidade e reflexão​. ​Espero ​afastar-me da primeira e aproximar-me da segunda​; ​espero que a história verídica de hoje vos motive​ a pesquisar mais acerca da Coreia da Norte, ​a ​questionar as narrativas da televisão … até mesmo​ a passar uma semana em Pyongyang. Tendo eu​ feito esta mesma viagem, garanto-vos que ela é perfeitamente segura, o passaporte português é visto lá com bons olhos.
                 

Em Yanji, o Hotel Ryugyong (류경호텔​   ​/ 柳京) não se esconde num qualquer beco. Não há nenhuma palavra-passe para entrar, ​ ​nem se vêm guardas armados​. Parece ​orgulhoso da sua identidade norte-coreana. ​ "Pyongyang" (평양/平) encontra-se​ em letras​ perfeitamente ​visíveis​ no letreiro.
Ao aproximar-me da porta giratória do hotel vejo, através do vidro, uma moça jovem a sorrir-me. Contente com esta recepção inicial, entro pela porta. A minha amigável anfitriã​, vestida de trajes tradicionais (​hanbok), cumprimenta-me​ em coreano e ​conduz-me​ para o segundo andar, onde se encontra o restaurante. A clientela parece ser composta quase inteiramente por norte-coreanos, nota-se apenas ​um casal chinês, uns turistas ​como eu.
A moça transfere-me para uma camareira alta, de olhar frio, que​ me​ ​conduz a uma mesa, rodeada por mesas onde estão instalados clientes norte-coreanos. Pergunto-lhe em coreano que especialidades me recomenda. Sem parecer preocupada, ou surpreendida com a minha pronúncia sul-coreana, responde-me: «massa de Pyongyang, tortilha​ coreana, carne de pato grelhada». Decidi-me pela opção mais barata e enquanto esperava, fui ouvindo os diálogos à minha volta, na minha língua materna: … Negócios com chineses e com josondjok, queixas sobre colegas, viagens de regresso a Pyongyang.
Estes norte-coreanos de Yanji parecem ter desprezo pelos​ chineses e falta de confiança no povo que partilha a mesma língua. Recordo ter ouvido uma conversa, aproximadamente assim​:
'Então, já fechaste o negócio com aquela companhia de Tumen (uma cidade que faz fronteira com a Coreia do Norte, a 50km de Yanji)?’ perguntou uma voz rouca, algo enfadada.
'Não sei o que está a acontecer, irmão, mas aqueles ​djosonjok ​[nome dado aos cidadãos chineses de etnia coreana] estão a demorar anos a finalizar o contrato...' respondeu de forma educada​ a​ outra voz, mais nervosa.
'É difícil confiar nessa gente...dizem que são coreanos, mas a verdade é que pensam como Han zu [a etnia ​maioritária​, constituindo 90% da população chinesa]; são matreiros, não penses por um segundo que eles ​nos veem​ como irmãos, ou ​o quer que seja​. Se eles não soubessem falar chinês, garanto-te que me mantinha bem afastado deles,' disse o mais idoso.
'Sim, precisamos deles mais do que eles precisam de nós. O que dava jeito era ter uma dessas tradutoras treinadas em Pyongyang para nos acompanhar nos negócios, estas miúdas daqui não aprendem nada, passam o dia inteiro a falar coreano e a servir pessoas como nós, o chinês que elas falam só dá para descrever os pratos e contar números,' desabafou o mais jovem.
'Nem sonhes com isso, as tradutoras são valiosas demais, o país precisa delas para o turismo, ou para ajudar na comunicação do partido com estrangeiros, Pyongyang não as iria desperdiç​ar em negócios pequenos, como o nosso;' o mais velho acendeu um cigarro, dando grandes bafos que passavam ​por cima das nossas cabeças​. ​Continuei de ​costas viradas, a ouvir, ocasionalmente ​fingindo ​que estava a falar ​em chinês​ ao telefone, para eles não suspeitarem ​de mim​.
'Se as cantoras lá de baixo pudessem passar uns anos a estudar chinês, talvez nem fosse preciso pedir ajuda a Pyongyang...' sugeriu o mais novo.
'Não sejas parvo! Achas que eles nos deixariam fazer isso? Essas raparigas são filhas de gente poderosa do partido,​ entendes? Achas que um general ou um ministro iria deixar a sua filha subordinar-se a um negociante? Nunca na vida!' ​exclamou​ o mais idoso, ​numa​ voz claramente ​enfadada​.
'Sim; mas, se calhar, até lhes fazia bem aprender chinês, pode ser útil no futuro, quem sabe...'
'Cala-te e não fales de gente que nos pode trazer problemas.' disse o mais idoso friamente, parando de falar durante alguns segundos, enquanto uma empregada de mesa passava por eles.
Acabada a refeição​ fiquei a pensar​: quem serão estas cantoras? Chamo a empregada, que me informa que todas as noites há um concerto, depois do jantar, ​em que atua​ um grupo de jovens muito belas, cheias de talento.
Pago a conta e desço, encontrando a moça do sorriso esplendoroso, que me leva até uma sala grande. Num palco iluminado por luzes holográficas fluorescentes, ​encontram-se quatro ​mulheres, das mais belas ​que já alguma vez vi.
Parecem ter saído de um conto de fadas; as suas saias são compridas, largas nas ancas, em tecido reluzente​ diferindo entre elas apenas na cor dos vestidos e nos instrumentos que cada uma toca. A de verde esmeralda empunha uma guitarra eléctrica, a de azul um saxofone, a de amarelo claro uma flauta, e a de cor-de-rosa um baixo eléctrico. As suas faces, perfeitamente maquilhadas, emitem um brilho pálido; suas expressões serenas ​dão uma certa solenidade à ocasião, como se isto não fosse meramente uma rotina diária, para ajudar à digestão do jantar de uns quantos turistas.
Pouso a minha mala no chão, com intenção​ de tirar a minha máquina fotográfica, mas reparo num cartaz ao lado do palco, onde está escrito em caracteres grandes: "Proibido tirar fotografias." Limito-me a aguardar o espectáculo sentado a uma das mesas vazias. No outro lado da sala, um grupo de turistas chineses ​parece estar entusiasmado​ com a actuação que se aproxima.
De repente, as luzes da sala escurecem e o quarteto dá um passo em frente. Uma faz o sinal de «O.K.» e a música de fundo começa a tocar.
A música não é nada parecida com a que se ouve nos canais de rádio do Ocidente. Os temas são clássicos e conservadores; as letras falam de paixão inocente entre dois amantes, de nostalgia pela terra natal, e de tristeza ​pelos pais envelhecerem​.
O fado português também se baseia nalguns destes temas, mas leva o sentimento de angústia até ao extremo, o que não é compatível com a placidez desta música. O descontrolo, que em doses​ pequenas, confere calor humano à música, é alheio totalmente aos valores éticos impostos pelo governo norte-coreano, ​​contrário​ a qualquer tipo de experimentalismo ou de libertação ​individual. Os versos falam sobre paixão sem introspecção, de tristeza sem que se considere jamais a autodestruição, ou duma nostalgia sem o pessimismo que a torna verosímil.​ Apesar de Yanji estar longe dos centros urbanos de Pequim e de Xangai, senti que estava a observar algo muito comercializado, ​como um anúncio muito bem produzido, mas que só consegue​​ aliciar os olhos do espectador, não o coração.


Todas elas possuem vozes de soprano, capazes de reproduzir o timbre de cantora de ópera. Mas não há ​teatralidade​ nesta atuação; elas não se deixam levar pelas emoções, mantendo sempre a mesma expressão serena e a coreografia sincronizada, um joelho alternando com o outro, a dobrar ligeiramente para dentro, de acordo com o ritmo da música. No fim de cada canção, elas trocam de posição no palco e de instrumento, mostrando-se​ capazes de executar peças ​com​ elevado grau de dificuldade.
Há uma perfeição mecânica na sua rotina bem oleada, ​de tal maneira que, ​de cada vez que um turista​ com ​um bouquet de flores sobe para o palco, obrigando uma delas a forçar um sorriso​ e a​ pegar no fardo perfumado e ​colocá-lo delicadamente num canto qualquer, o resto do grupo ajusta-se automaticamente, ou​ cantando​ mais alto para compensar, ou deixando a música de fundo tocar mais alguns segundos até​ ao​ próximo compasso, recomeçando então ao mesmo tempo, ​sem um piscar de olhos​ que seja. 
Entediado, olho para trás. Três empregadas de mesa, incluindo a moça do sorriso esplendoroso, estão sentadas numa mesa ao fundo, ocupadas a compor flores em bouquets para venda aos turistas. Ao lado delas, de pé, está o patrão do restaurante; um norte-coreano de calças pretas e camisa formal cinzenta, com os botões apertados até ao pescoço. Apesar dum corpo magro, a cara dele é larga e um pouco espalmada, algo realçado pelo seu corte de cabelo, rapado nos lados, com um bloco rectangular no topo. Observa a actuação de braços cruzados e sobrancelhas franzidas, um olhar de avaliador, em vez de apreciador.
Tendo decidido​ que tinha visto o suficiente, levanto-me e caminho em direcção à saída. O patrão vai ao meu encontro, substituindo o seu ar sério por um sorriso artificial de vendedor. Este matreiro, não sabendo falar chinês, só diz "​xie xie" ​mil vezes, ao mesmo tempo que gesticula com os dedos apontando as flores. Aceno ​com a​ mão (gesto que significa "não", em muitos países orientais) e faço cara de cansado, e ele afasta-se, retomando​ a sua pose de​ inspector.
Antes que eu ​chegue​ ás portas giratórias da saída do hotel, a moça de sorriso esplendoroso de repente aparece-me à frente. Parece estar preocupada com a minha saída.
"O patrão diz que parece não ter gostado do concerto; porqu​ê?" pergunta com exagerada curiosidade. Decido ser diplomático.
"Mas eu nunca disse isso! Adorei, achei as cantoras tão bonitas, cantam muito bem também," respondi, com um sorriso artificial, como o do patrão.
"Então porque é que não comprou flores?" perguntou ela num tom magoado, que parecia ser genuíno.
"Mulheres como aquelas quatro senhoras merecem que lhes ofereçam carros, não flores. Se eu não fosse apenas um pobre estudante estrangeiro, de certeza que lhes comprava um," respondi, na esperança que isto fosse ​dar uma conclusão à conversa.
A moça franziu a sobrancelha; não parece ter percebido o meu sentido do humor, mas aproveitei-me do seu estado de confusão para finalmente sair do hotel Ryugyoung.
Atravessei a rua, chamei um táxi usando a aplicação Didi e, ao fim de 2 minutos, um Audi A4 apareceu-me​ ​à​ frente. De dentro do carro, olhei uma última vez para as portas giratórias. A moça ainda lá estava, seguindo-me com os olhos, mas sem o sorriso esplendoroso ou a expressão amistosa, antes um olhar de desconfiança.
Reflectindo no que tinha feito, rapidamente tornou-se tudo muito óbvio​: o Hotel Ryugyong é um dos muitos estabelecimentos norte-coreanos na China vocacionados para gerar ​o maior lucro possível, para benefício do regime de Pyongyang​, que tem estado a sofrer por causa das sanções impostas pelo Ocidente.