Educação vocacional na China: a
peça-chave que falta
Na última década, a cobertura
da educação chinesa pela media concentrou-se quase exclusivamente
no Gaokao, o exame de admissão para
universidade na China. Sendo um dos dias mais importantes no calendário chinês,
é natural e correto que tal fenómeno
seja noticiado, ano após ano. Artigos escritos
por correspondentes de grandes jornais ocidentais têm-se focado muito na
pressão que tal sistema impõe à juventude chinesa. Contudo, é importante saber que há
alternativas em
discussão na China que, caso sejam desenvolvidas, poderão vir a tirar
um grande fardo das costas de milhões de jovens chineses da classe baixa.
"Quando se trata das regras do
Gaokao, o exame e as suas características, não estou minimamente interessado;
são apenas o sintoma de um problema mais amplo, a falta de opções do ensino
pós-secundário
para os jovens chineses”, disse Wang Shu Guang (王曙光), professor de economia da
Universidade de Pequim.
Wang tem estado na vanguarda de
discussões académicas sobre o desenvolvimento económico da China rural. Oriundo de uma pequena aldeia em Shandong,
uma província no nordeste da China, o Gaokao era a sua única saída. Tendo
conseguido entrar na prestigiada Universidade de Pequim, a primeira pessoa na
sua aldeia a realizar
tal feito, Wang nunca mais
sairia desta universidade, construindo uma carreira
respeitável.
A sua história de sucesso alimenta
a visão generalizada que a maioria do público chinês tem do Gaokao: como sendo a única oportunidade de um jovem chinês pobre "mudar o seu
destino" (改变 他 的 命运)。
De acordo com Wang, no entanto, as
premissas originais sobre as quais o Gaokao foi instituído já não se aplicam
hoje em dia. Durante os anos 80 e o
início dos anos 90, quando as taxas de entrada na universidade ainda estavam
abaixo de um em cada dois candidatos,
quando simplesmente entrar numa
universidade era um feito incrível aos
olhos de uma ampla gama de empregadores, qualquer jovem de estatuto social
baixo podia olhar para o Gaokao com esperança, pois havia uma alta
probabilidade de que o resultado desse ao jovem acesso a um lugar numa universidade nas grandes cidades, e por consequência, um emprego urbano com um salário muito mais alto do que o dos pais.
Hoje em dia, quando as taxas de ingresso na universidade excedem 80%,
entrar na universidade não é garantia de que os estudantes de baixo estatuto
social obtenham as habilitações
ou o prestígio de que
precisam para subir na escala social. De facto, os
estudiosos observaram que tem havido uma tendência crescente de graduados
universitários de segunda ou terceira linha, de famílias rurais, que não conseguem encontrar um emprego adequado,
forçando-os a voltar para a casa dos pais.
Universidades de prestígio como a
Universidade de Pequim, Tsinghua e meia dúzia doutras são as únicas excepções a
essa tendência. A garantia de um emprego bem remunerado depois de se formar
nessas universidades é suficientemente
alta para que a baixa probabilidade de entrar valha a
pena ser tentada.
De facto, para os jovens chineses rurais com boas notas, essas chances só os
tornam mais competitivos e ansiosos
nos seus últimos dois anos do ensino secundário.
Shao Xin (劭 鑫), de 25 anos, estudante de
Mestrado em Engenharia Elétrica na Universidade de Pequim, conhecida como
“Beida”, é um caso
exemplar. Oriundo duma aldeia rural
de Shanxi, ele afirma que, mesmo enquanto criança,
ele e muitos outros já estavam bem conscientes de que a mudança para as cidades
era o único objectivo de cada um, sendo a escola o meio para esse fim.
Nos seus últimos anos do ensino
secundário, especialmente no ano em que ele retomou o décimo
segundo por não ter conseguido
entrar na Beida nessa primeira vez, estava sob enorme pressão: do seu
pai, um cultivador de batata-doce que não conseguiu terminar o ensino
secundário, pressão também da sua escola, ansiosa por colher
os benefícios de ter um aluno em Beida e, acima de tudo, da sua própria pessoa, exigente e com baixa auto-estima.
"Eu sempre soube que minha
inteligência não era fora do normal, por isso dependia do meu esforço, ninguém
conseguia acompanhar o meu ritmo nessa altura", disse Shao. No fim, Shao
chegou à terra prometida e agora está a poucas semanas de começar seu novo
trabalho, muitíssimo bem pago, na Huawei, a rival chinesa da Apple.
Apesar do apelo romântico de tais
histórias, o fato é que casos como Shao Xin estão tornando-se cada vez mais raros. Até ao ano passado, quando o governo
introduziu cotas de entrada, a proporção de estudantes em Beida e Tsinghua
vindos de famílias rurais estava diminuindo anualmente, caindo para os 15% em
2016, uma estatística que muitos académicos viam como demonstrando a necessidade de reformar o
Gaokao. A realidade é que, para a
grande maioria dos jovens de zonas rurais, que nem são incrivelmente dotados, nem
capazes de trabalhar tão arduamente quanto Shao, o Gaokao e a escola secundária, em geral, não são tão atraentes como dantes.
É precisamente por causa disto que
estudiosos como Wang acreditam que mais atenção deve ser dada a outra
instituição educacional: as escolas vocacionais.
"A China carece de
trabalhadores com espírito de artesão" (gongjiang jingshen, 工匠 精神) precisamos de pessoas capazes de
construir belas canalizações, alguém que possa coser roupas, abrir pequenas lojas, ter iniciativas empreendedoras. Este é o futuro dos
chineses nas classes sociais médias e baixas, especialmente os agricultores”,
argumentou Wang, mencionando o sistema educacional de elite da Alemanha como um
modelo a ser seguido.
Muitos obstáculos sócio-culturais se perfilam no caminho para tal futuro. Ir para a universidade e receber uma educação académica traz prestígio social na China. O
Centro Nacional de Educação e Economia publicou um relatório em 2013 em que observava
que um dos maiores desafios enfrentados pelo sistema de ensino e aprendizagem vocacional da China era o baixo prestígio deste na mente do público.
"Olhar de cima para baixo o artesanato é uma consequência de preconceitos educacionais provenientes da China antiga. Naquela época, uma boa
educação era ler obras de literatura, não se dava valor a habilidades mais
práticas e manuais. Estes pensamentos fazem parte da filosofia confuciana chinesa que continua a impedir que os jovens chineses façam
escolhas práticas no início das suas vidas ”, observou Wang.
O outro lado da moeda é a continuação da
deificação de universidades de prestígio em Pequim e Xangai, tanto nos meios rurais como urbanos.
"A partir do momento em que o
meu irmão mais novo e eu nascemos, o meu pai tornou os nomes Beida e Tsinghua sagrados em nossa casa", relembra Shao Xin.
"Foi-me inculcando, desde a mais tenra idade, que eu
deveria procurar estudar numa universidade de primeira classe", disse Ge Xi Zheng (葛 煕 正),
um jovem de 18 anos duma família urbana de classe média, que fez os exames do Gaokao este ano.
"Mesmo que eu não queira fazer
isso no futuro, o facto
de estar numa universidade de
primeiro nível terá mais influência sobre mim do que estando numa faculdade vocacional.
As pessoas comportam-se de maneira diferente, tanto na
fala como no comportamento”, afirmou Ge.
No entanto, a qualidade geral do
ensino nas universidades chinesas tem diminuído recentemente. Os cursos excessivamente teóricos e com
pouca relação com o mercado de trabalho têm sido o principal motivo de
preocupação. De acordo com Wang, mesmo os diplomas técnicos em universidades
não fornecem as habilitações
necessárias para
desenvolver um “espírito artesanal”. Ele usou o exemplo da indústria, que teria sido promissora, dos artigos de laca na
cidade de Yangzhou, no sul do país.
"Os artigos de laca sempre foram uma
indústria dominada pelo Japão, mas há alguns anos o mercado chinês começou desenvolver-se em Yangzhou. A Universidade de Yangzhou ofereceu um curso popular centrado na construção de artigos de laca, mas não foi prático o suficiente. Os estudantes tornaram-se especialistas em fazer o design dos objectos em laca, mas não da sua
construção. Cada vez que precisavam de algo feito, iam directamente à fábrica e pediam a um trabalhador para fazer a peça, mas como o número de trabalhadores com esse tipo de habilidade
era muito pequeno, a oferta não acompanhou a procura e o
mercado murchou", observou Wang.
Ao mesmo tempo, os problemas do
sistema de educação profissional da China não são segredo para o Ocidente. No
referido relatório do NCEE, foi relatado que a maioria dos curricula das escolas profissionais da China
era "ultrapassada e irrelevante para as necessidades da indústria".
Em Pequim, no entanto, um instituto
vocacional tem vindo a ganhar o reconhecimento nacional há mais de
uma década. As origens da Universidade Bailie (培黎 职业 学院),
uma instituição privada, não são convencionais, segundo os padrões chineses.
Fundada em 1983 por um dos mais famosos apoiantes estrangeiros da China
comunista do século XX, o neozelandês Rewi Alley, o nome Bailie é em homenagem
ao amigo de Alley, Joseph Bailie, que iniciou um movimento educacional na China
nos anos 50 que enfatizava a integração da teoria à prática.
Elogiada
pelos líderes políticos da China, o maior feito da Bailie ocorreu no ano passado,
quando Xi Jinping escreveu uma carta formal à escola, dando-lhe os parabéns por ter criado trabalhadores altamente
qualificados, algo que terá de ser recriado em muitos outros lugares do país,
se Xi espera realizar a sua promessa de fazer com que a China chegue ao
estatuto de país “moderno”, de acordo com os patamares do Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, antes de
2050.
"Nós ocupamos o meio termo
entre as escolas vocacionais tradicionais que apenas ensinam aos seus alunos um determinado saber-fazer e as universidades como
Beida e Qinghua", disse o diretor de Peili, Wang Yu Lin (王 余 临).
"Houve um tempo em que tentámos lutar para alcançar a reputação académica
daquelas duas escolas, mas depois
percebemos que isso era impossível, o que nos obrigou a sermos mais pragmáticos em relação às competências dos nossos alunos. Afinal de
contas, não há muitas vagas no funcionalismo público,
temos que nos certificar de que nossos alunos seriam capazes de ter sucesso noutros cargos mais práticos”, continuou ele.
Assegurar que cada curso tem
conexões próximas com a indústria relevante tem sido a principal prioridade da
Peili, que manteve uma taxa de emprego pós-licenciatura acima 95% durante a última década. Mais importante ainda, é a
qualidade do emprego obtida pelos estudantes de Peili, que começa aproximar-se da
dos formandos de Beida e Tsinghua. Uma professora de ciências de computação,
que quis permanecer anónima, observou orgulhosamente que tinha alunos que conseguiram -
logo após a formatura - obter
empregos em que
ganhavam mensalmente 16.000 ou 19.000 RMB (outra designação do Yuan; Rem Min Bin = a moeda do povo).
"Se você olhar para
Zuckenberg, ele deixou a sua universidade de prestígio para fazer algo mais
prático e útil para a sociedade. Eu sinto que Peili me ajudou a amadurecer e tornar-me numa pessoa que poderá fazer
empreendedorismo no futuro ”, disse Rong Tong Tongde (荣 童童),
um estudante de 20 anos de ciências da computação na Peili.
Os estudantes universitários como Rong
beneficiam imenso por estarem situados em Pequim: eles vão regularmente a
Beida e a Tsinghua para assistir
a palestras. E numa cidade
tão grande como Pequim, que possui quase três vezes a população de
Portugal, as oportunidades de emprego são
numerosas.
No entanto, ainda não existe certeza de que mais escolas da qualidade de Peili possam vir a ser criadas, fora de Pequim e Xangai.
"Muitos agricultores gostariam que os seus filhos estudassem algo
de útil, mas o problema é que não há escolas", disse Wang Shu Guang.
"Acho que o sucesso de Peili se deve à extrema necessidade de que o sistema de ensino
profissional seja liberalizado, em todos os lugares", observou Wang Yulin.
O director realçou que, se não fosse pelo legado histórico e pela localização de Peili, teria sido impossível de alcançar a taxa de emprego de 95%.
Tanto Wang Shu Guang quanto Wang
Yulin estão cépticos quanto à possibilidade do
governo contribuir mais para o desenvolvimento das escolas vocacionais na
China.
"O governo cria programas de 5 a 10
dias que fornecem treino básico em competências técnicas,
como o uso de um computador, mas o custo destes é incomparável ao da construção
de um instituto vocacional. Um instituto destes é
mais barato que o duma universidade, mas os fundos fora
de Beiing e de Xangai ainda são escassos para tais projectos", observou Wang.
"Além da mercantilização, os empresários chineses, como Jack Ma e outros que seguem seus passos, são as pessoas com quem devemos contar para financiar o desenvolvimento e
a reforma das escolas vocacional na China", continuou Wang.
Embora a filantropia educacional de
Jack Ma ainda não se tenha alargado ao sistema educacional vocacional, Wang está convencido
de que se, a China quiser fazer uma transição
de economia abaixo dos Estados Unidos, na escala global de valores, para uma sociedade de inovação
altamente qualificada, terá de investir pesadamente no sector
vocacional, seja de que maneira for.
"Recorde as minhas palavras: As escolas profissionais na China vão crescer exponencialmente no futuro",
diz Wang.