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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

[PEPE ESCOBAR] Mar do Sul da China: o cerne da questão

                            Footage from a PLA landing drill in June. The Chinese military is reportedly planning another large-scale simulated invasion exercise this month. Photo: Handout
                             exército Popular da China faz exercícios em Junho deste ano 

Texto de Pepe Escobar para o Blog do Saker, postado originalmente no site Asia Times
Tradução de btpsilveira

Quando os grupos de ataque dos porta aviões Ronald Reagan e Nimitz envolveram-se recentemente em operações no Mar do Sul da China, muitos cínicos notaram que a Frota do Pacífico dos Estados Unidos está fazendo o seu melhor para tornar a teoria infantil da Armadilha de Tucídides numa profecia autorrealizável.

A ideia oficial pro forma, expressada pelo contra almirante Jim Kirk, comandante do Nimitz, é que as operações foram lançadas para “reforçar nosso compromisso com a liberdade da região do Indo/Pacífico, com a ordem internacional baseada em normas e com nossos aliados e parceiros”. 

Esses clichês não chamam a atenção de ninguém, desde que a mensagem verdadeira foi dada por um agente da CIA que posa como diplomata, o Secretário de Estado Mike “nós mentimos, nós enganamos, nós roubamos” Pompeo: “a República Popular da China não tem bases legais para impor unilateralmente sua vontade na região” referindo-se à Linha de Nove Traços. Para o Departamento de Estado, Pequim emprega nada menos que “táticas de gangsters” no Mar do Sul da China.

Repito: ninguém presta atenção porque a realidade no mar é dura. Qualquer coisa que se mova no Mar do Sul da China – artéria marítima crucial para o comércio da China – está à mercê do PLA (People’s Liberation Army – Exército da Libertação Popular [ELP] - NT) chinês, que decide quando e se empregar seus mísseis mortais DF-21D e DF-26 “matadores de porta aviões”. Absolutamente não há qualquer maneira da Frota do Pacífico vencer uma guerra aberta no Mar do Sul da China.

Bloqueados eletronicamente

Não referido nem citado pela mídia ocidental, um relatório chinês crucial traduzido por Thomas Wing Polin, analista residente em Hong Kong, é essencial para entender o contexto.

O relatório se refere aos aviões de guerra “Boeing EW Growler” dos EUA que acabaram totalmente fora de controle através de aparelhos de bloqueio eletrônico postados nas ilhas e recifes do Mar do Sul da China. 

De acordo com o relatório, “depois do acidente os Estados Unidos negociaram com a China exigindo que esta desmantelasse os equipamentos eletrônicos imediatamente, mas foram rejeitados. Tais aparelhos eletrônicos são parte importante da defesa marítima do país e não armas ofensivas. Portanto, o pedido do exército dos Estados Unidos para retirá-los não faz sentido.”

Fica ainda melhor: “No mesmo dia, Scott Swift, antigo comandante da Frota do Pacífico finalmente reconheceu que o exército dos EUA chegou tarde demais para controlar o Mar do Sul da China. Ele acredita que a China instalou grande número de mísseis de defesa aérea Hongqi 9, bombardeiros H-6K e sistemas de bloqueio eletrônico em ilhas e recifes. O aparato de defesa pode ser chamado de sólido. Caso os jatos de combate dos Estados Unidos se precipitarem sobre o Mar do Sul da China provavelmente encontrarão ali seu ‘Waterloo’”.

A questão é que Pequim considera esses sistemas – entre eles o bloqueio eletrônico – instalados nas ilhas e recifes no Mar do Sul da China pelo ELP cobrindo mais da metade da superfície total, como parte de seu sistema nacional de defesa.

Coloquei anteriormente em detalhes o que o Almirante Philip Davidson disse ao Senado quando ele ainda era um candidato a liderar o Comando do Pacífico para os Estados Unidos. Suas três principais conclusões foram:

1) “A China está buscando recursos avançados (por exemplo, mísseis hipersônicos) para os quais os EUA ainda não têm capacidade de defesa. Na medida em que a China conseguir estes sistemas de armamentos avançados, as forças dos Estados Unidos no Indo-Pacífico estão em risco cada vez mais elevado.”

2) “A China está minando a legalidade da ordem internacional.”

3) “Atualmente, a China é capaz de manter o controle sobre o Mar do Sul da China em qualquer cenário a não ser uma guerra contra os Estados Unidos.”

Implícito nessas declarações está o “segredo” da estratégia dos EUA para o Indo-Pacífico: na melhor das hipóteses trata-se de tentativa de contenção, dado que a China continua a solidificar sua Rota da Seda Marítima, ligando o Mar do Sul da China ao Oceano Índico.

Lembrem-se de Nusantao

O Mar do Sul da China é e continuará sendo um dos principais pontos críticos do jovem século 21, onde grande parte do equilíbrio do poder entre Leste e Oeste será questionado.

Já toquei no assunto anteriormente em alguns detalhes, mas, mais uma vez, um breve pano de fundo histórico é absolutamente essencial para entender as circunstâncias atuais que fazem o Mar do Sul da China parecer e sentir-se como um lago chinês.

Comecemos em 1890, quando Alfred Mahan, então presidente do Colégio Naval dos Estados Unidos escreveu seu livro seminal The influence of Sea Power Upon History, 1660-1783 (Influência do poder marítimo no curso da história, 1660-1783 – NT). A tese de Mahan era que os Estado Unidos poderiam pesquisar por novos mercados para comerciar globalmente, e protegê-los através de uma rede de bases navais.

Foi o embrião do Império de Bases (norte)americano – o qual ainda está ativo.

Foi o colonialismo das potências ocidentais (Europa e América) que engendrou a maioria das fronteiras terrestres e marítimas dos Estados limítrofes ao Mar do Sul da China: Filipinas, Indonésia, Malásia e Vietnã.

Estamos falando de fronteiras entre possessões coloniais diferentes – que desde o início disparavam problemas insolúveis que foram herdados pelas nações pós coloniais.

Essa história tem sido sempre completamente sui generis. O melhor estudo antropológico sobre a questão (Bill Solheim’s, por exemplo) define as comunidades quase nômadas que desde tempos imemoriais viajavam e comerciavam através do Mar do Sul da China de Nusantao – uma palavra Austronésia composta para “ilha do sul” e “gente”.

Os Nusantao não eram um grupo étnico definido. Eram parte de uma rede marítima. Por séculos tinham pivôs importantes desde a costa do Vietnã central e Hong Kong por todo o caminho até o delta do Rio Mekong. Não eram ligados a nenhum “estado”. A noção ocidental de “fronteiras” sequer existia. Em meados dos anos 1990, tive o privilégio de encontrar alguns de seus descendentes na Indonésia e no Vietnã.

Assim, foi apenas no final do séc. 19 que o sistema Westfaliano manobrou para congelar o Mar do sul da China dentro de um contexto inamovível.

O que nos leva de volta ao ponto crucial do motivo da sensibilidade chinesa com suas fronteiras: isso está ligado diretamente ao “século da humilhação” – quando a corrupção interna e a fraqueza chinesa permitiram aos “bárbaros” ocidentais tomarem posse de território chinês.

Um lago japonês

A linha dos nove traços é um problema extremamente complexo. Foi criado pelo eminente geógrafo chinês Bai Meichu, nacionalista ferrenho, em 1936, inicialmente como parte do “mapa da Humilhação Nacional Chinesa” traçado como uma linha em forma de “U”, englobando o Mar do Sul da China em todo o caminho até o Baixio James, que está 1500 km ao sul da China, mas apenas a 100 km de Bornéu.

Desde o início, a Linha dos Nove Traços foi promovida pelo governo chinês – lembrem-se, àquele tempo, ainda não comunista – como letra da Lei em termos de reclamações “históricas” da China sobre ilhas no Mar do Sul da China.

Um ano depois, o Japão invadiu a China. Ocupara Taiwan já em 1895. O Japão ocupou as Filipinas em 1942. Isso quer dizer que toda a linha costeira do Mar do Sul da China estava no controle de apenas um império pela primeira vez na história. O mar tornou-se um lago japonês.

Bem, isso durou apenas até 1945. Os japoneses ocuparam as Ilhas Woody nas Paracels e Itu Aba (atualmente Taiping) nas Spratlys. Depois do final da Segunda Guerra Mundial e com os Estados Unidos lançando bombas atômicas contra o Japão, as Filipinas tornaram-se independentes e as Spratlys foram imediatamente declaradas como território Filipino.

Em 1947, todas as ilhas receberam nomes chineses e em dezembro de 1947 todas as ilhas foram colocadas sob controle de Hainan (também uma ilha no Sul da China). Novos mapas foram desenvolvidos a seguir, porém agora com nomes chineses para as ilhas (ou recifes, ou baixios). Só que havia um grande problema: ninguém explicou o significado daqueles traços (que originalmente eram onze).

Em junho de 1947 a República da China reclamou para si tudo dentro daquelas linhas – afirmando estar, ao mesmo tempo, aberta a negociações para definir fronteiras marítimas com outras nações a posteriori. Mas momentaneamente não havia fronteiras.

Todo o acima preparou o cenário para uma “ambiguidade estratégica” do Mar do Sul da China que continua até hoje – e permite ao Departamento de Estado acusar Pequim de “táticas de gangsters”. O clímax de uma transição milenar da “rede marítima” de povos seminômades para o sistema Westfaliano só rendeu problemas.

Chega o COC

E quanto as noções (norte)americanas de “liberdade de navegação”?

Em termos imperiais “liberdade de navegação” das costas ocidentais dos Estados Unidos para a Ásia – através do Pacífico, Mar do Sul da China, Estreito de Malaca e Oceano Índico – é questão restrita à estratégia militar.

Ocorre que a Marinha dos EUA simplesmente não pode conceber ter que lidar com zonas de exclusão no mar ou ter que obter uma “autorização” a cada vez que tiver que cruzá-las. Se assim fosse, o Império de Bases perderia o acesso a estas.

Isso combina com a marca registrada da paranoia do Pentágono, lidar com uma situação onde um “poder hostil” – nomeadamente a China – decide bloquear o comércio global. Em si mesma, a premissa é ridícula, porque o Mar do Sul da China é a principal, a artéria marítima vital para a economia globalizada chinesa.

Daí que não há justificativa racional para algo como o programa Liberdade de Navegação (LdN). Para todos os efeitos práticos, esses porta aviões como o Ronald Reagan e o Nimitz se exibindo para lá e para cá equivalem a uma espécie de “diplomacia da canhoneira” do século 21. Pequim não parece impressionada.

Até onde tem a ver com os 10 membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN na sigla em inglês – NT), o que importa neste momento é construir um Código de Conduta (CdC) para resolver os conflitos entre Filipinas, Vietnã, Malásia, Brunei e China.

Ano que vem ASEAN e China celebrarão 30 anos de relações bilaterais robustas. Há boa possibilidade de que fortalecerão o status para “parceria estratégica ampla”.

A COVID-19 fez todos os atores adiarem negociações para a leitura do segundo projeto único do CdC. Pequim gostaria que fossem feitos face a face – porque o documento é muito sensível e, até o momento, secreto. Porém acabaram por concordar em negociações online – através de textos detalhados.

Será trabalho duro, porque como a ASEAN tornou claro em encontro virtual no final de Junho, tudo haverá de ser em acordo com as Leis Internacionais, entre elas a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla em inglês – NT)

Se eles conseguirem concordar em um Código de Conduta até o final de 2020, um acordo final pode ser aprovado pela ASEAN em meados de 2021. A palavra “Histórico” é fraca até para começar a descrever isso – porque esta negociação está em andamento por não menos que duas décadas. Não se deixe de mencionar que um Código de Conduta invalida quaisquer pretensões dos Estados Unidos em assegurar “Liberdade de Navegação” em área onde a navegação já seria livre.

É que “liberdade” jamais teve nada a ver. Na terminologia imperial, “liberdade” significa que a China deve obedecer e manter o Mar do Sul da China aberto para a Marinha dos Estados Unidos. Bem, isso é possível, desde que você se comporte. Chegará o dia em que o Mar do Sul da China será “negado” para a Marinha dos EUA. E você nem precisa ser um Mahan para saber que isso será o fim do domínio imperial sobre os sete mares.


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

CHINA, EUA E GEOPOLÍTICA DO LÍTIO [F. William Engdahl]

                       


Nos últimos anos, desde o avanço global para desenvolver Veículos Eléctricos (VEs) numa escala massiva, o elemento Lítio tem vindo a ser considerado um metal estratégico. A procura é enorme na China, nos EUA, na UE, no presente; a garantia do controlo do fornecimento de lítio desenvolve-se numa luta geopolítica própria, o que não deixa de evocar a do controlo do petróleo.





A China Joga para Assegurar Fornecimento



Para a China, que estabeleceu entre os principais objectivos tornar-se o principal produtor mundial de VEs, desenvolver os materiais das baterias a lítio é uma prioridade para o 13º Plano Quinquenal (2016-20). Embora a China possua as suas próprias reservas de lítio, a capacidade de recuperação é limitada, levando-a a assegurar direitos de mineração de lítio no estrangeiro.


Na Austrália, a companhia Chinesa Talison Lithium, controlada por Tianqi, faz mineração e possui as reservas maiores do mundo e de maior teor em Greenbushes, na Austrália Oeste, perto de Perth.


O maior produtor primário de lítio mundial é a Talison Lithium Inc. A mina de Greenbushes na Austrália, produz hoje cerca de 75% do consumo chinês em lítio e cerca de 40% do consumo mundial. Isto, assim como outras matérias-primas australianas, fez com que as relações com a Austrália, um aliado firme dos EUA, assumissem importância estratégia para Pequim. Igualmente, a China tornou-se o maior parceiro comercial da Austrália.


No entanto, a influência crescente da China na economia do Pacífico, em torno da Austrália, levou o primeiro-ministro Scott Morrison a enviar uma mensagem de aviso no sentido da China não se imiscuir nesta região estratégica para a Austrália. Em finais de 2017, a Austrália, crescentemente preocupada com a expansão chinesa na região, retomou a cooperação com aquilo que se designa informalmente o «Quad», com os EUA, a Índia e o Japão, ressuscitando uma tentativa anterior de pôr em cheque a influência da China no Pacífico Sul. A Austrália, também recentemente, avançou com empréstimos a nações insulares do Pacífico para contrabalançar os empréstimos da China. Tudo isto torna claro o imperativo da China em ir à procura globalmente doutras fontes para assegurar abastecimento em lítio, de modo a se tornar o agente principal da economia emergente dos VE, na próxima década.


Assim que o desenvolvimento dos veículos eléctricos se tornou uma prioridade na planificação económica chinesa, a procura de fonte segura de lítio levou-a a virar-se para o Chile, outra das principais fontes de lítio. Aqui, a empresa chinesa Tianqi é detentora duma participação importante da Sociedad Quimica Y Minera (SQM) chilena, um dos maiores produtores mundiais de lítio. Se a empresa chinesa Tianqi conseguir ganhar o controlo da SQM, isso irá mudar a geopolítica do controlo do lítio, segundo as notícias da indústria mineira.

O fornecimento global de metais de lítio, uma componente estratégica das baterias a iões lítio utilizadas para os veículos eléctricos (VEs), está concentrado em muito poucos países.

Para se ter uma ideia da procura potencial de lítio, a bateria para o Modelo S da Tesla, requer 63 quilogramas de carbonato de lítio, o suficiente para cerca de 10 000 baterias de telefones celulares. Numa notícia recente, o banco Goldman Sachs designou o carbonato de lítio como a nova gasolina. Apenas 1 por cento de aumento na produção de veículos eléctricos, poderia aumentar a procura de lítio em mais de 40% da produção global actual, de acordo com Goldman Sachs. Com tantos governos a exigir menores emissões de CO2, a indústria automóvel global está a expandir os seus planos para produção em massa de VEs na próxima década, o que torna o lítio potencialmente tão estratégico como hoje o petróleo. 

Qual é a «Arábia Saudita» do Lítio?

A Bolívia, cujo lítio é de longe mais complicado de se extrair, também tem sido alvo de interesse de Pequim, nos anos mais recentes. Algumas estimativas geológicas consideram a Bolívia como a detentora das maiores reservas mundiais. Apenas nos depósitos salinos de Salar de Uyuni, estima-se que haja nove milhões de toneladas de lítio.


Desde 2015, a companhia mineira chinesa CAMC Engineering Company, tem vindo a operar uma grande fábrica na Bolívia, para produzir Cloreto de Potássio como fertilizante. A CAMC é discreta quanto ao facto de que, sob o cloreto de potássio, se encontram as maiores reservas de lítio conhecidas no mundo, nos depósitos salinos de Salar de Uyuni, um dos 22 depósitos salinos da Bolívia. A empresa chinesa Linyi Dake Trade em 2014 construiu uma fábrica piloto de baterias de lítio, nesta mesma localização.


Depois disso, em Fevereiro de 2019, o governo de Morales assinou outro acordo de exploração do lítio, desta vez com o grupo chinês do Xinjiang, TBEA Group Co Ltd, que terá uma posição de 49% de participação na companhia estatal boliviana YLB. Este acordo destina-se a produzir lítio e outros materiais, a partir das salinas de Coipasa e de Pastos Grandes, com um custo estimado em 2,3 biliões de dólares.


Em termos de lítio, a China está actualmente a dominar o Novo Grande Jogo global pelo controlo de recursos. As entidades chinesas controlam agora quase metade da produção de lítio mundial e 60% da capacidade de produção de baterias eléctricas a lítio. Dentro duma década, prediz a Goldman Sachs, a China poderia fornecer 60% das baterias para os VEs no mundo inteiro. Em resumo, o lítio é uma prioridade estratégica para Pequim.


EUA/China Rivalidade pelo Lítio?


O outro actor principal no mundo da mineração do lítio, hoje, é os EUA. A companhia Albemarle, de Charlotte, Carolina do Norte, com um impressionante conselho de directores, tem participações mineiras principais na Austrália e no Chile, nomeadamente, tal como tem a China. Em 2015 a Albemarle tornou-se um factor dominante no mundo da mineração do lítio, quando comprou a companhia dos EUA, Rockwood Holdings. Significativamente, a Rockwood Lithium estava operando no Chile, no Salar de Atacama e na acima citada mina de Greenbushes da Austrália, onde o grupo industrial chinês Tianqi possui 51%. Isto dava a Albemarle 49% de participação no vasto projecto de lítio australiano, em parceria com a China.


O que começa a tornar-se claro é que as tensões sino-americanas no plano económico, também incluem provavelmente a contenção da influência chinesa no controlo das reservas estratégicas de lítio. O recente golpe militar que forçou Evo Morales a ir para o exílio  no México mostrou, desde logo, as impressões digitais de Washington. A entrada da presidente interina Jeanine Áñez, uma cristã direitista e do milionário direitista, Luis Fernando Camacho, assinalam um nefasto virar à direita, no futuro político deste país, com um claro apoio de Washington. Será crucial, entre outras questões, verificar se um futuro governo irá anular os acordos de mineração de lítio com as companhias chinesas.


Igualmente, a anulação do encontro da APEC de 16 de Novembro no Chile, que iria ser palco duma cimeira sobre comércio, entre Trump e Xi Jinping, adquire outro significado. O encontro também seria ocasião para concluir acordos de comércio entre a China e o Chile, de acordo com o «South China Morning Post». A delegação prevista do lado de Xi, incluía 150 chefes de empresa e tinha planos para assinar acordos económicos importantes, aumentando ainda mais os laços económicos China-Chile, algo que os EUA recentemente desaconselharam.


A erupção de protestos de massas em todo o Chile, opondo-se ao aumento dos bilhetes de transportes públicos, mostra sinais semelhantes a outras causas económicas desencadeando distúrbios, no início de Revoluções Coloridas. Os protestos tiveram o efeito de cancelar a cimeira da APEC no Chile. O papel activo de ONGs financiadas pelos EUA nos protestos do Chile, não foi confirmado, mas as relações económicas crescentes entre o Chile e a China, realmente não podem ser vistas como positivas por Washington. A exploração de lítio no Chile pela China é, neste ponto, um factor estratégico e geopolítico pouco discutido, e que poderia ser alvo das intervenções de Washington, apesar do presente governo chileno ter uma orientação económica de mercado livre.

Nesta confluência, torna-se clara a existência de uma batalha global pela dominação do mercado de baterias de VEs, onde o controlo do lítio tem um lugar central.

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F. William Engdahl é um consultor de risco estratégico e conferencista, possui um diploma em política da universidade de Princeton; é um autor de «best-sellers» sobre petróleo e geopolítica; o artigo acima foi primeiro publicado em inglês no magazine online “New Eastern Outlook.”

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

PORQUÊ OS EUA SAÍRAM DO TRATADO INF?

Aquilo que não vos dizem






O secretário dos EUA da Defesa, Mark Esper, numa tournée em vários países da região Ásia-Pacífico afirmou que a principal prioridade para o Pentágono é a China:



“Os nossos competidores estratégicos são a China e a Rússia, principalmente e por esta ordem,” Esper recentemente declarou.


Nós somos mantidos no escuro em relação ao tratado INF* e às razões pelas quais os EUA realmente desejaram terminar com ele. Não devemos cair na propaganda da NATO afirmando que os russos violaram o referido tratado, em várias ocasiões. Pelo contrário, os americanos e vários países europeus da NATO o fizeram, como sabemos, está comprovado. Mas, então qual a vantagem estratégica do Pentágono em propulsionar a nova corrida aos armamentos e tornar possível a colocação no terreno de armas nucleares «tácticas»?
- A razão principal é a China. Numa postura prudente de construção de suas capacidades de defesa, a China, não constrangida pelo tratado INF, tem vindo a desenvolver sistemas de mísseis de médio alcance. Estes mísseis podem possuir uma carga convencional, mas também podem servir para transportar uma carga nuclear.
Perante estes mísseis, a marinha poderosa dos EUA com os seus destroyers e porta-aviões (cruzando próximo das costas da China), fica completamente exposta. Com efeito, não poderá retaliar a um ataque com mísseis chineses, sendo estes lançados bem do interior da China em direcção à frota americana do Pacífico. Os chineses e os americanos, assim como todos os peritos militares sabem disso há muito tempo. Recentemente, uma alta patente chinesa teve um «deslize», ao afirmar isso mesmo, coisa que realmente deixou os neocons e os militares do Pentagono com os «cornos a arder». 
Os EUA, na prática, assumem o papel de potência tutelar das nações do Indo-pacífico, sendo isso mesmo que «obriga» a presença permanente de uma frota americana bem perto das costas da China. Tal como a alegação da «ameaça» russa, ao mesmo tempo que estacionam tropas e mais tropas da NATO junto das fronteiras russas, igualmente consideram que a China está a ameaçar a liberdade de navegação (sic!), por defender as suas costas e águas territoriais.
 No quadro mais geral do projecto hegemónico, a escolha da China como prioridade (como inimigo principal), faz todo o sentido. O projecto - em si mesmo - é que não faz, o de manter todo o planeta sob controlo do império dos EUA.
A China está a conquistar o primeiro lugar,em termos económicos, se não é que o seu primeiro lugar já está realizado. Com efeito, em paridade de poder de compra, os chineses subiram imenso em duas décadas, enquanto a população dos EUA está cada vez mais pobre, apesar da propaganda em contrário. O índice de inflação está falsificado, para fazer crer na manutenção dum poder aquisitivo das famílias pobres e da classe média dos EUA. Os índices de desemprego são completamente manipulados, o que se vê pela enorme taxa de pessoas em idade de trabalhar que não está empregada; querem fazer crer que a taxa de desemprego nos EUA é muito baixa, porém os números reais são contraditórios com isso. John Williams do site shadowstats.com tem acompanhado estes índices e outros, no pressuposto de quais seriam seus valores, caso os critérios fossem os mesmos que nos anos 80. Isso é apenas uma parte da realidade. Outra parte, é a miséria da epidemia opióides, que afecta imensas pessoas, desde veteranos das guerras, até a pessoas viciadas em resultado de tratamentos do cancro. Muitos índices relativos ao bem-estar humano, na educação, na saúde, na esperança de vida, etc. estão mais próximos dos países «em desenvolvimento», do que dos países «desenvolvidos». A tragédia da incapacidade de muita população nos EUA ter um tratamento decente, por não possuir cobertura adequada de saúde, continua. Muitos milhões (último censo indicava mais de 30 milhões!) de americanos dependem de «food stamps», ou seja, de senhas para comprar géneros alimentícios no supermercado, para sobreviver.
A guerra comercial com a China está a prejudicar mais a agricultura e o pequeno comércio americanos do que tem efeito inibidor na indústria da China. Neste período de «guerra comercial», o facto é que a China exportou MAIS, sendo evidente que as tarifas, por mais que escondam isso ao povo americano, são encarecedoras para ELES, que compram os produtos importados da China, acelerando portanto artificialmente a inflação e diminuindo ainda mais o seu poder de compra.
Não admira que Wall Street e, portanto, todo o mundo da finança dentro e fora dos EUA, compreenda que a política oficial de Washington encaminhe os EUA e o mundo para uma recessão. A entrada num período de recessão está muito claramente a ser equacionada, a prova disso é a inversão de tendência das bolsas americanas e mundiais, com a subida vertiginosa dos metais preciosos, em especial, o ouro.
A crise do dólar prossegue, visto que o presidente Trump decidiu responder à descida do Yuan, pela contra-medida da descida do dólar: assim, a guerra comercial alarga-se a guerra monetária.
Todos estes factores económicos e financeiros, tanto internos aos EUA como mundiais, levam a que a tentação dos dirigentes - megalomaníacos e muito mal aconselhados - seja a da guerra com tiros.

A tensão provocada com as constantes provocações militares , seja nas fronteiras russas, seja nas águas territoriais do Irão ou ainda da China, cada vez mais se parecem com uma louca corrida para o abismo, visto que todos sabem como uma determinada guerra começa, mas ninguém sabe, ao certo, como essa guerra acaba.

(*tratado INF: acordo alcançado por Reagan e Gorbatchov, no âmbito de uma redução geral das tensões na Europa. Ele proíbe a pesquisa, produção e colocação de mísseis de alcance intermédio. Este tratado implicava verificações de lado a lado, para garantir que não haveria este tipo de armas no continente europeu)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

[SKWEALTHACADEMY] A MAIOR TEORIA DA CONSPIRAÇÃO JAMAIS PRODUZIDA?

A MAIOR TEORIA DA CONSPIRAÇÃO JAMAIS PRODUZIDA? 
(com algumas pistas sobre os actuais «lockdowns»)
Tradução de parte de um artigo de SKWEALTHACADEMY (ler em inglês, na íntegra, na hiperligação): 
                

[...] 

Vamos agora discutir a mais incrível execução dos confinamentos (lockdowns) que irá fazer ferver mesmo os mais ávidos fãs de teorias de conspiração. E, embora seja pura especulação (extraída porém de factos históricos), não ficaria surpreendido que - no futuro, em 2050 - viéssemos a reconhecer que minha teoria especulativa estava correcta. A dicotomia entre o Ocidente (os EUA, Reino Unido e Austrália também), e a China foi sempre uma completa fabricação para nos distrair da realidade. O mesmo ditado estafado «Dividir para Reinar» permanece tão válido hoje em dia, porque na realidade, muito poucos de nós sabem a História real das nações, tal como ela é (não como nos ensinam nas escolas e universidades).

A realidade é que muitos ocidentais estiveram sempre conspirando com a China para levar a cabo objectivos realmente globais. Os promotores da Nova Ordem Mundial, como o WEF (Fórum Económico Mundial) e os que planeiam as políticas que orientam as economias globais em Davos na Suíça, todos os anos, foram sempre uma mistura de ocidentais e de orientais, então a crença de uma dicotomia nos objectivos financeiros/económicos que residissem nos extremos opostos do espectro ideológico é uma crença reservada em larga medida para os não analistas, os não-intelectuais deste mundo.

Por exemplo, considere a foto abaixo de Sidney Rittenberg, um cidadão americano que ascendeu a uma posição influente no interior do partido comunista chinês na época de Mao Tse Tung. Como melhor argumento para fundamentar este ponto de vista, encorajo o leitor a fazer a sua própria pesquisa para confirmar os factos: podeis pesquisar o tópico seguinte: «Ocidentais que ocuparam postos de poder no Partido Comunista ». Tal investigação irá levar à descoberta de outros estrangeiros que obtiveram posições elevadas no governo, na história do Partido Comunista da China. Saiba, porém, que ao pesquisar este tópico, irá dar com lixo anti-semita, simplesmente porque um par de não-chineses, que subiram a posições de influência na história da China comunista, eram judeus. Imagine como seria insólito nos EUA ou no Reino Unido, se alguém de nacionalidade chinesa fosse jamais nomeado como Secretário do Tesouro nos EUA, ou Ministro das Finanças britânico?

                

Para se afastar facilmente a visão anti-semita e ideológica acima referida, só precisamos de nos debruçar sobre a história de um dos bancos mais influentes na China de hoje, o famoso «Hong Kong Shanghai Banking Corporation» (conhecido por HSBC), um banco que foi fundado e que continua a ser controlado por britânicos. O facto de que o HSBC continua a exercer muito poder na China, devia alertá-lo de que a dicotomia entre a China e o Ocidente é uma fabricação completa. Os membros mais ricos dos países ocidentais têm uma longa história de trabalharem amigavelmente com a China, para dirigir a finança global por detrás do palco, embora apresentem ao público uma fachada de inimizade e discórdia. Embora o HSBC tenha sido fundado pelos oligarcas britânicos inicialmente para lavagem do dinheiro do ópio, obtido pelo comércio britânico em Hong Kong e na China continental, e certamente esta era uma actividade vista pelos oligarcas chineses como hostil, inimiga e extremamente exploradora, o facto de que o banco HSBC continua a ser um dos bancos mais poderosos na China e nunca deixou de ser plenamente controlado pelos britânicos, é muito mais revelador.
Uma tal situação seria análoga à dum adúltero que tivesse uma ligação com a esposa de alguém e tivesse permissão do marido daquela para dormir debaixo do mesmo tecto, todas as noites. 
O facto do HSBC continuar a operar na China, pese embora a sua horrível origem de exploração, mostra que os oligarcas britânicos mantêm uma espécie de acordo com os oligarcas chineses, em que ambos os lados trabalham em conjunto para os mesmos objectivos. Consegue imaginar que o «Bank of China» tivesse um passado de lavagem de dinheiro do ópio, em todo o Reino Unido, usando o porto de Londres como porta de entrada para vender ópio chinês e destruir a economia britânica? Pensa que, neste caso, haveria um «cubo de gelo no inferno» de probabilidade de que o mesmo Bank of China continuasse, hoje, a operar no Reino Unido, como um dos principais bancos?

Se isto não chega para o convencer de que existem muito bem estabelecidas e profundas parcerias económicas entre americanos, britânicos e chineses, de que os oligarcas ocidentais o facto de andarem constantemente a pintar os oligarcas chineses como a «maior ameaça» à estabilidade global,  é apenas teatro, então conheça a longa e documentada amizade entre os políticos americanos do topo e os dirigentes políticos chineses. A família presidencial Bush tem tantos investimentos na China que, após a visita de 2004, o vice-primeiro ministro Deng Xiaoping disse a George Bush Sr. (Pai de George W. Bush): “Vós sois nossos velhos amigos. Sois bem-vindos e podereis voltar sempre que quiserdes". Embora a citação seja muito conhecida, a expressão «velhos amigos» tem sido pouco apreciada ou ignorada, interpretada como Deng Xiaoping estando a oferecer a sua política de portas abertas a Bush Sr. em 2004. Lembre-se que Bush Sr. foi presidente dos EUA de 1981 a 1989, o que torna provável - durante o seu reinado como presidente dos EUA- que, apesar de qualquer animosidade apresentada em público, o relacionamento entre os oligarcas chineses e dos EUA fosse extremamente amigável. Em 16 anos, um longo relacionamento estabelecido entre oligarcas com poder global não azeda assim tão depressa, ao contrário da narrativa que tem sido apresentada ao público de hoje.

O conselheiro presidencial de longa data, Henry Kissinger, um lobo com pele de cordeiro da oligarquia global, é muito responsável pela narrativa de que “a China é a maior ameaça à estabilidade global” . No entanto, o lapso da língua «viperina» de Henry Kissinger neste vídeo de 2008, onde afirma que o recém-eleito presidente Barack Obama tem a «tarefa de desenvolver uma estratégia abrangente para a América... quando realmente uma Nova Ordem Mundial possa ser criada», talvez mostre Kissinger como alguém cujo comentário acerca de política internacional nunca deva ser tomado como sincero. A propósito, o slogan da «Nova Ordem Mundial» não desapareceu. Apenas lhe foi dado o nome de «The Great Reset» (O Grande Reiniciar). A afirmação mais reveladora no curto vídeo acima, é a de que Kissinger via a então crise económica global (em 2008) como «oportunidade» para que Barack Obama fosse usado para implementar aspectos chave da Nova Ordem Mundial.

Soa-lhe familiar? Pois não surpreende, visto que o oportunismo durante as crises fez sempre parte do manual dos oligarcas. Recordemos o projecto conservador e militarista de Washington, «Projecto para Um Novo Século Americano» (PNAC) e o seu relatório, que afirmava que levar a cabo a desejada mudança de estrutura de poder no Médio Oriente seria um longo e penoso processo, caso não «houvesse um acontecimento catastrófico e catalisador, como um novo Pearl Harbor”. Em retrospectiva, sabemos que menos de um ano passado sobre a publicação de tal relatório, o trágico acontecimento do tipo de «Pearl Harbour», o ataque terrorista do 11 de Setembro, ocorreu. Isto leva-me, neste jogo de sombras de conectar os pontos, a um comentário pelo economista dos EUA, Milton Friedman: “Somente a crise - efectiva ou percebida como tal - produz uma mudança real. Quando tal crise acontece, as acções que são tomadas dependem das ideias que estejam em circulação. Acredito que seja essa a nossa função primária: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantendo-as vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível se torne no politicamente inevitável."

Então, eis aqui a teoria da conspiração que vai, com certeza, causar-lhe um choque, sobre os lockdowns (confinamentos) em curso. Sabemos que a longa história de laços financeiros estreitos e relações económicas operacionais, que existem entre o Ocidente de a China, não se contam por décadas, mas por séculos (os exemplos acima mencionados, são apenas a ponta do iceberg de todas as relações factuais e numerosas, tanto políticas como económicas seculares). Deixe-me questionar o seguinte:               

Poderia a pandemia viral, que inspirou lockdowns do tipo de Wuhan em todo o Mundo, causando a destruição dos meios de subsistência económica de centenas de milhões de pessoas, ter sido uma crise artificial, manufacturada por oligarquias, coligadas entre Ocidente/Oriente, para desencadear políticas globais, especificamente concebidas para estimular a rápida digitalização da economia global, o que teria sido um processo longo e árduo,  sem esta crise, fabricada ou real, mas apreendida como real por quase toda a gente, no mundo inteiro? De facto, para servir o seu propósito, era melhor a «crise» ser na China, em vez da Lombardia (Itália), ou em Nova Iorque, nos EUA. 

Para ser sumamente claro sobre a questão que coloquei acima, não estou a postular que o vírus não seja real. Existe evidência científica indubitável, que se pode encontrar no meu canal de YouTube e no meu site de notícias. Porém, e após aturada investigação, alguma dela vinda do próprio CDC (clicar aqui e ler isto, s.f.f.), constata-se que o vírus não é - nem de longe - tão perigoso como a percepção que tem sido criada pelos lockdowns estritos e sucessivos, decretados ao nível global.

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Nota de Manuel Banet: O autor desta peça tem razão ao apontar que H. Kissinger tem uma posição de grande ambiguidade em relação à China. Embora apareça como sendo o que proporcionou a abertura dos EUA à China e desta ao Mundo, e tendo aconselhado sucessivos presidentes dos EUA a este respeito, também é verdade que ele sempre raciocinou em termos da teoria geopolítica do «Continente-Terra» de Mackinder: O seu conceito é de que é preciso colocar uma «cunha» a separar os dois gigantes euro-asiáticos, Rússia e China, para os EUA manterem a hegemonia mundial. 
O autor deste artigo insinua que - directa ou indirectamente - Kissinger foi o inspirador da viragem estratégica «pivot to Asia», do presidente Obama.

domingo, 6 de setembro de 2020

[Pepe Escobar] Índia implode a própria Nova Rota da Seda

                          

3/9/2020, Pepe Escobar, Asia Times, aqui traduzido* ao português do Brasil, com permissão do autor. Trad. btpsilveira, da Vila Mandinga

Houve época em que a Índia vendia orgulhosamente a noção de que estabelecia uma Nova Rota da Seda só dela – a qual, partindo do Golfo de Omã para a intersecção da Ásia Central e do Sul, permitiria acesso de Irã, Afeganistão e Ásia Central ao Mar da Arábia – competindo com a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) da China. 

Hoje, é como se a Índia se autoesfaqueasse pelas costas.

Teerã e Nova Delhi assinaram acordo em 2016 para construir ferrovia de 628 quilômetros, do estratégico porto iraniano de Chabahar até a cidade de Zahedan, no interior, muito perto da fronteira afegã, com uma extensão crucial para Zaranj, no Afeganistão, e adiante.

Estavam envolvidas nas negociações as companhias Iranian Railways e Indian Railway Constructions Ltd. Mas nada aconteceu, devido à morosidade indiana. Assim, Teerã resolveu construir a ferrovia, fosse como fosse, com $400 milhões de dólares de seus próprios fundos e conclusão marcada para março de 2022.

Previa-se que a ferrovia viesse a ser o principal corredor de transporte ligado a substanciais investimentos indianos em Chabahar, seu porto de entrada para o Golfo de Omã, como Nova Rota da Seda alternativa, para o Afeganistão e Ásia Central.

A modernização de infraestrutura das ferrovias e estradas a partir do Afeganistão para seus vizinhos Tajiquistão e Uzbequistão seria o próximo passo.

Toda a operação estava inscrita num acordo trilateral Índia-Irã-Afeganistão assinado em 2016 em Teerã pelo Primeiro Ministro Narendra Modi, o Presidente iraniano Hassan Rouhani e o então Presidente afegão Ashraf Ghani.

As desculpas não oficiais de Nova Delhi giram em torno do medo de que o projeto fosse atacado pelos EUA, com sanções. Nova Delhi conseguiu que o governo Trump suspendesse as sanções contra Chabahar e contra a ferrovia até Zahedan. O problema foi convencer uma gama de investidores parceiros, todos aterrorizados pelo risco de sofrerem sanções.

A verdade é que toda a saga tem mais a ver com o pensamento desejante de Modi, que conta com receber tratamento preferencial, nos termos da estratégia do governo Trump para o Indo-Pacífico, que se baseia de fato num Quad (“Quarteto”) – EUA, Índia, Austrália e Japão, estrutura destinada a conter a China. Esta é a causa de Nova Deli ter decidido cortar as importações de petróleo do Irã.

Assim, para todos os efeitos práticos, a Índia jogou o Irã debaixo do ônibus. Não é de admirar que o Irã tenha resolvido avançar por conta própria, especialmente agora que está escorado pelo “Plano Abrangente de Parceria Estratégica entre a República Islâmica do Irã e a República Popular da China” (ingl. Comprehensive Strategic Partnership between I.R. Iran, P.R. China), acordo de $400 bilhões de dólares e duração de 25 anos, e que sela a parceria estratégica entre China e Irã.

Neste caso, podem ficar sob o controle chinês duas “pérolas” estratégicas no Oceano Índico, a apenas 80 quilômetros de distância uma da outra: Gwadar, no Paquistão, entroncamento chave do Corredor Econômico China-Paquistão (ing. China-Pakistan Economic Corridor, CPEC) de $60 bilhões de dólares; e Chabahar.

Até agora, Teerã nega que o porto de Chabahar venha a ser arrendado a Pequim. Mas há possibilidade real, além dos investimentos chineses numa refinaria de petróleo perto de Chabahar, e, mesmo, no longo prazo, no próprio porto, de uma ligação operacional entre Gwadar e Chabahar. Essa ligação seria complementada pelos chineses que operariam o porto de Bandar-e-Jask, no Golfo de Omã, 350 quilômetros a oeste de Chabahar e muito perto do hiperestratégico Estreito de Ormuz.

Corredores são sempre atraentes

Nem alguma divindade indiana em surto de ressaca conseguiria imaginar “estratégia” mais contraproducente para os interesses indianos, caso Nova Delhi realmente recue da decisão de cooperar com Teerã.

Consideremos o essencial: Teerã e Pequim estarão trabalhando no que, de fato, é expansão massiva do Corredor Econômico China Paquistão, com Chabahar conectado a Gwadar e a seguir à Ásia Central e ao Mar Cáspio, pelas ferrovias iranianas. Estará também ligado à Turquia e ao Mediterrâneo Oriental, via Iraque e Síria, diretamente até a União Europeia.

Esta progressão capaz de mudar o jogo acontecerá no coração de todo o processo de integração da Eurásia – unindo China, Paquistão, Irã, Turquia e, claro, a Rússia, que já está ligada ao Irã pelo Corredor de Transporte Internacional Norte-Sul (ing. International North-South Transport Corridor).

Por enquanto, dadas as reverberações potentes em múltiplas áreas – melhoramento da infraestrutura energética, reformas de portos e refinarias, construção de um corredor de conectividade, investimentos na indústria manufatureira e suprimento pesado de petróleo e gás (questão de segurança nacional para a China) – não há dúvidas de que o acordo Irã-China está mesmo, no momento, sendo minimizado por ambos os lados.

Legenda: Vista aérea do porto iraniano de Chabahar que pode mudar de patrocinador: da Índia para a China.

As razões são autoevidentes – evitar que a ira da administração Trump suba a níveis ainda mais incandescentes, dado que ambos os atores são considerados pelos EUA como “ameaças existenciais”. Mesmo assim, Mahmoud Vezi, chefe de gabinete do Presidente Rouhani, garante que o acordo final Irã-China será assinado em março de 2021.

Enquanto isso, o Corredor Econômico China-Paquistão vai de vento em popa. O que Chabahar supostamente faria para a Índia, já está a pleno vapor em Gwadar. O trânsito comercial para o Afeganistão começou há dias, com cargas a granel vindas dos Emirados Árabes Unidos. Gwadar já começou a estabelecer-se como entroncamento chave no trânsito para o Afeganistão, muito adiante de Chabahar.

O fator estratégico é essencial para Cabul. O país depende de rotas por terra a partir do Paquistão – e algumas podem ser muito inseguras – assim como de Karachi e Porto Qasim. Especialmente para o sul do Afeganistão, a ligação por terra desde Gwadar, cruzando o Baluquistão é muito mais curta e segura.

O fator estratégico é ainda mais vital para Pequim. Para a China, Chabahar não seria prioridade, porque o acesso para o Afeganistão é mais fácil via Tadjiquistão, por exemplo.

Mas a história muda completamente, quando se trata de Gwadar – que se vai convertendo, lenta, mas firmemente, no principal entroncamento da Rota da Seda Marítima, conectando a China e o Mar da Arábia, o Oriente Médio e a África. Islamabad já está recolhendo recursos robustos, em impostos e taxas de passagem.

Resumindo, é jogo de ganha-ganha, mas sempre considerando que desafios e protestos a partir do Baluquistão não vão simplesmente desaparecer, e exigem de Pequim e Islamabad gestão muito cuidadosa.

Para a Índia, o caso de Chabahar-Zahedan não é o único retrocesso recente. O Ministro de Relações Exteriores indiano admitiu recentemente que o Irã desenvolverá “sozinho” o enorme campo de gás Farzad-B no Golfo Pérsico; e que a Índia pode vir a juntar-se à República Islâmica “de forma apropriada em estágio posterior”. O mesmo tipo de “estágio posterior” aplicado por Nova Delhi para Chabahar-Zahedan.

Os direitos de produção e exploração de Farzad-B já foram garantidos há anos para a empresa estatal indiana ONGC Videsh Limitada. Mas aí, mais uma vez, nada acontece, por efeito do proverbial fantasma das sanções.

Vale lembrar que essas sanções já estavam ativadas no governo de Barack Obama. Mesmo assim, naquela época Índia e Irã pelo menos comerciavam bens por petróleo. Projetava-se que Farzad-B voltaria a operar depois da assinatura do JCPOA (chamado “Acordo do Irã”) em 2015. Mas então as sanções de Trump, outra vez, tudo congelaram.

Não é preciso ser mestre e doutor em Ciência Política para saber quem pode acabar por tomar Farzad-B: a China, especialmente depois que, ano que vem, for assinado o acordo de parceria para os próximos 25 anos. 

Contra seus próprios interesses energéticos e geoestratégicos, a Índia na realidade ficou reduzida ao status de mero refém da administração Trump. O objetivo verdadeiro dessa política de dividir para reinar aplicada contra Irã e Índia é impedir que os dois países comerciem usando as respectivas moedas, deixando o EUA-dólar fora do processo, especialmente nos negócios de energia.

O grande quadro, no entanto, sempre tem a ver com o avanço da Nova Rota da Seda através da Eurásia. Com evidências crescentes de integração cada vez mais forte entre China, Irã e Paquistão, o que se vê claramente é que a Índia só permanece integrada com as próprias inconsistências.
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*Grato a Luísa Vasconcellos pelo envio deste artigo traduzido.
MB

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

SOBRE A GUERRA HÍBRIDA


A guerra híbrida levada a cabo pelos EUA contra a China, com a assistência de seus mais próximos vassalos, Reino Unido, Canadá, Austrália... é um caso bem estabelecido em como uma potência em declínio, está a fazer tudo para travar e - se possível - inverter a ascensão de outra potência a primeiro lugar mundial. 

Embora a China seja uma antiquíssima civilização que já foi, em tempos, o mais poderoso império sobre a Terra, um século de opressão colonial e devastações terríveis antes e durante a IIª Guerra Mundial, deixaram uma pesada herança. 
O estado de pobreza e fraqueza levaram que a República Popular da China (proclamada em 1949) não fosse considerada o principal objectivo estratégico dos EUA e da NATO, durante a guerra fria, mas sim a União Soviética.
Quando se desmoronou a URSS e a Rússia foi transformada em repasto para os apetites das multinacionais (sobretudo do petróleo) durante o governo fraco e corrupto de Yeltsin, parecia efectivamente que - quer se gostasse, ou não - se iria assistir a «um século americano», conforme afirmado num célebre manifesto (PNAS) tornado público por um grupo de «neocons», pouco tempo antes da viragem do milénio. 

A Rússia de Putin encarregou-se de destruir as veleidades de omnipotência das forças mais agressivas do imperialismo americano. 
Mas, igualmente, jogaram dois outros factores:
-A forte resistência encontrada pelos americanos e seus aliados da NATO no Afeganistão e no Iraque, 
-A ascensão da China ao lugar de gigante económico, com a sua iniciativa das Novas Rotas da Seda. Este desenvolvimento é lógico e corresponde a uma filosofia - intrinsecamente liberal - de respeito pelos parceiros comerciais e de vantagens mútuas. 
É preciso não esquecer que isto vem na sequência da tarefa que lhe foi proporcionada e favorecida pelos próprios grandes capitalistas ocidentais: a de tornar-se a «fábrica do mundo». 
É, portanto, particularmente desesperante, numa observação das relações internacionais e políticas no Ocidente, verificar que os ditos dirigentes apenas orientaram a barca ao sabor da corrente maior de dinheiro. 
Assim foi com todos os presidentes dos EUA, desde Bill Clinton, especialmente com Barack Obama, que fez acreditar que haveria uma real viragem da política dos EUA devido à cor de sua pele, mas que foi o instigador da política de «pivot to Asia» /«viragem para a Ásia», o que em claro significa viragem para fazer o cerco à China, unificando contra ela uma coligação de forças (estados vassalos) e aumentando os dispositivos bélicos, desde as bases militares, às frotas que a cercam em permanência.
Assim, os EUA cliente primeiro dos produtos industriais fabricados na China (muitos dos quais sob licença de firmas americanas), começaram a objectar contra a suposta «injustiça» da grande disparidade na balança comercial EUA-China, tendo a administração Trump passado a sancionar alguns bens importados com tarifas, já em 2018. 
Esta política de pressão sobre a China foi subitamente agravada, em Dezembro desse ano, com o aprisionamento da vice-presidente executiva da Huawei - quando ela se encontrava em trânsito em Vancouver, Canadá - sob pretexto desta firma ter «violado as sanções» contra o Irão, sanções ilegais e unilaterais e que não podiam obrigar cidadãos e empresas estrangeiros, comerciando fora das fronteiras dos EUA.
Xi Jin Pin e altos dirigentes chineses levaram a cabo conversações, com vista a minorar e - se possível - eliminar as situações de conflito comercial. Enquanto a administração Trump foi para conversações com outro espírito: insistia em queixas relacionadas com patentes, mas sem de facto chegar a algo concreto, que permitisse uma base negocial. As conversações capotaram e as tarifas decretadas por Trump entraram em vigor. Como retaliação, a China deixou de importar produtos agrícolas dos EUA (sobretudo soja, produzida pelos agricultores do Midwest, sólida base de apoio eleitoral de Trump).
As forças da propaganda, comandadas pela CIA e outras agências, intensificaram a propaganda contra o alegado mau registo de direitos humanos da China, nomeadamente na região mais ocidental do Xinjiang onde existem populações de etnias minoritárias, muçulmanas. Entre eles, a CIA conseguiu infiltrar elementos radicais islâmicos, muitos tendo experiência de combate nas fileiras de grupos djihadistas na Síria. Pelo que, as medidas de contenção - de «contra-guerrilha» - de Pequim, podem ser consideradas demasiado duras, porém têm de ser contextualizadas, coisa que a imprensa ocidental não faz, em 99% dos casos.

Agora, a pretexto de uma lei de extradição que estava em discussão na Assembleia Legislativa de Hong-Kong, elementos radicalizados procuram desencadear a repressão do exército, sendo que Pequim não irá permitir que a violência e o caos sejam semeados impunemente no território de Hong-Kong. 
Este território sempre fez parte da China; esteve sob ocupação britânica desde as guerras do ópio e foi restaurada a soberania chinesa em 1997, através do processo de devolução, negociado com o Reino Unido. Este processo reconhece a soberania chinesa ao mesmo tempo que institui uma zona administrativa especial. A situação económica do território de Hong-Kong é especial, na medida em que as leis socialistas não se aplicam nele; ou seja, a propriedade dos meios de produção continua a ser privada até 2047. 
A revolta estudantil, apesar de ter inicialmente uma relativa legitimidade, está a tomar uma feição cada vez mais violenta e não se compreende quais as motivações políticas concretas, pois o território de Hong-Kong está firmemente na China. As bandeiras do Reino Unido ou dos EUA, agitadas por alguns manifestantes - mais do que exprimirem uma influência directa destes países na revolta - é apenas uma maneira de fazer valer uma adesão primária ao Ocidente, no desespero de causarem simpatia na opinião pública e nos poderes ocidentais. É escusado dizer que eles estão completamente equivocados a esse respeito.
O «Ocidente», que está sempre pronto a criticar a China, ou outros, na ONU e noutros aéropagos, tem feito muito mais e muito pior, em relação a manifestações semelhantes, nos seus próprios países. Mas, sobretudo, a China é demasiado importante para o comércio e as relações económicas mundiais para ser decretado um embargo comercial. Os EUA e seus aliados bem gostariam de o fazer, mas simplesmente não podem, devido à dependência estrutural do seu aparelho produtivo e de aprovisionamento em produtos de consumo, das importações chinesas. 
Um mundo em que os produtos chineses deixassem de fluir, simplesmente parava, num espaço de tempo relativamente curto. Imagino que bastariam semanas, não meses... pois tudo rapidamente começaria a falhar, ao não haver peças intermédias no fabrico, como micro-processadores, e outras. 

Talvez, a única coisa positiva que nos trouxe a globalização capitalista, seja a impossibilidade de uma guerra total, apenas possibilitando uma série de provocações bélicas, desestabilizações, subversões ... tudo o que cabe dentro do conceito de «guerra híbrida».