Se o século XVII teve alguns génios em pintura, Velasquez é certamente um deles. Tentarei explicar porquê.
A arte, nos reinos europeus, no período que vai do Renascimento até meados do século XVII, é toda ela figurativa e simbólica. O cânon era dado pela civilização greco-romana, considerada o pináculo inultrapassável de elevação estética.
A própria estética estava imbrincada com o sentido moral, visto como muito mais elevado que o saber técnico. Este, o saber técnico, seria elemento fundamental para alcançar a maestria, mas não o único pois, necessariamente, a elevação moral tinha de perpassar nas obras. Elas tinham de ter uma componente exemplar.
As grandes obras tinham de ser modelos, não apenas estéticos, como de conduta. O tema duma obra como «Las Meninas» era imediatamente compreendido pelos contemporâneos. Retratava a família real e a corte, em torno da infanta, a única descendente sobrevivente.
O génio do pintor está no arranjo da cena: Aparentemente, capta um momento do seu trabalho, enquanto pintava o retrato do casal real. O espelho no fundo reflete a imagem desfocada, mas perfeitamente identificável, do rei e da rainha, que estariam no plano donde nós observamos o quadro.
A chave deste quadro está encerrada na cena, ela própria.
Poucas pessoas se perguntam porque razão este quadro foi intitulado «Las Meninas», ou seja, as aias da princesa. Não seria mais apropriado designá-lo como «A infanta visitando Velasquez, enquanto pintava o casal real»? - Sim e não.
O nome «Las Meninas» é apropriado, porque elas estão realmente no primeiro plano e descrevem uma espécie de anel protetor em torno da infanta. Elas próprias estão rodeadas pelas figuras do anão e da anã, com o cão, o mastim pachorrento e, mais atrás, dois vultos; uma mulher, com hábito de religiosa e um homem.
No umbral da porta aberta, uma silhueta de homem austero, criado ou nobre, junto ao espelho refletindo o casal real.
Tudo está arranjado para dar a impressão de espontâneo, mas encerra um significado e simbolismo discretos. A própria ambiguidade dos planos em que está construída a obra, a sensação espacial que daí se desprende, traz complexidade, tanto na leitura da ótica física da cena, como de sua ótica simbólica, do «recado implícito» que transmite. Nem uma, nem outra são simples: A obra está estruturada com grande maestria técnica, mas não é o exercício de virtuosismo gratuito que muitos descrevem.
A tela transporta uma imagem fulcral, a de Velasquez que, ao se auto retratar, quis demonstrar algo. Ele, que estava ao serviço do monarca Filipe IV, implicitamente colocava-se ao serviço da herdeira do trono e fazia-o como alguém orgulhoso de servir.
Não é por acaso que ostenta no gibão a Cruz de Cavaleiro da Ordem de Santiago: Está a dizer que seu trabalho é o de um Cavaleiro, não de mero prático, de artesão afortunado, premiado pelo seu rei. Com sua presença, está a afirmar seu dever e compromisso de servir a infanta, tal como as duas «Meninas» o fazem, mas de outro modo.
Este quadro fez correr «rios de tinta» e fará correr muitos mais, estou convencido. Afinal, esta obra realiza, de um modo que Velasquez nunca sonhou, a perpetuação da memória do tempo em que a Espanha era governada pela monarquia dos Habsburgo.
Impressiona-me pensar que posso ver as figuras do rei, da rainha, da infanta, dos nobres, etc. na sua «palpável humanidade». Mas, ao mesmo tempo, penso como eram figuras tão poderosas. Detinham uma fortuna quase impossível de avaliar, dominavam metade do planeta, com seus povos e nações. Não é estranho que sua aparência no quotidiano chegue até nós, como se estivéssemos no palácio real?
Velasquez era um génio. Como todos os génios, transcendeu as circunstâncias históricas de sua época. Por isso hoje, também, suas obras podem iluminar (no sentido de educar) as pessoas.
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Nota: Possuem interessante informação, estes dois vídeos sobre o quadro.