A escrita é uma disciplina do espírito: Este, perante a página branca, pode hesitar porque tanta coisa está encerrada no coração e na mente que só tem embaraço na escolha. Esta página em branco, é como o silêncio em relação à música: Está na mesma relação.
Entre fileiras das linhas, as interrupções são como pausas musicais, são formas de destacar ou de isolar as ideias e os sons associados. A música também é feita de silêncios. A poesia está presente no aspecto gráfico. Na realidade, uma página de poesia é uma partitura implícita.
A originalidade do escritor ou do poeta reside na forma como molda a matéria. Essa matéria é a palavra, antes de mais; é mais a emoção da música que se desprende de uma frase, de uma estrofe, de uma peça, do que a emissão de um conceito ou sentimento. Pois o conceptual, o filosófico, o analítico são de outro domínio do discurso.
Quanto à poesia que integre aspectos filosóficos, ou até científicos, estes serão antes um ingrediente para a criação de uma atmosfera poética. Aliás, a «poesia racional», é quase sempre medíocre. Note-se que o discurso poético é dirigido à emoção. Se o objetivo do autor dum poema é veícular demonstrações racionais, o seu âmbito fica demasiado restricto, reduzido (auto-reprimido), porque a sua intenção primeira é outra: ele quer expor um conceito, ou uma moral, ou um ideário...
A verdadeira poesia pode estar patente num texto que não se apresenta enquanto poema, mas que dá largas ao sentimento e à musicalidade e que nos guiam na sua leitura. Os termos descritivos, racionais, ou lógicos, quando presentes, não constituem a trama do poema. São como a utilização de tais elementos durante o sonho. No sonho, as imagens e as ações são simbólicas.
Neste sentido, a poesia, tal como o sonho, é pessoal e intrasmissível. Muito do que se consome como sendo poesia não o será, verdadeiramente. Tem muito pouco a ver com as características que descrevi acima. Não existe poesia verdadeira, que não seja uma porta aberta para o subconsciente, para o sonho. Resta ela encontrar o leitor capaz de a decifrar. Não é um «desporto de massas». O que não a invalida, nem a diminui.
Tive ocasião de ler várias obras descritas como «poemas» ou «versos» que são apenas um artifício, mais ou menos conseguido. Mas a poesia precisa de verdade. Pode ser uma verdade interior, como em modo de confissão ou de introspeção. Para eu sentir o sopro poético numa obra, tenho de sentir que existe nela vibração e que esta vibração em mim ressoa.
Pode tentar-se descrever ou analisar criticamente as emoções associadas ao poema. Pode-se conseguir analisar, sem o sentir. Mas isto não significa que o texto, em si mesmo, não possua teor poético. É que a poesia resulta de ligação especial entre o emissor e o recetor. Talvez a poesia esteja sobretudo na cabeça do recetor (auditor, leitor). Talvez a emoção suscitada, seja afinidade fortuita entre o leitor e o texto poético.
Contrariamente aos textos destinados a convencer, a persuadir, a verdadeira poesia apenas suscita uma adesão emocional, é um fenómeno da ordem da sedução. Podemos analisar um texto poético com muita profundidade e inteligência, mas este exercício não é a fruição poética, em si mesma. Embora a análise possa existir, ela é posterior, ela sucede ao enamoramento inicial, que suscita tal ou tal obra.
Mesmo assim, existe um certo número de características gerais, próprias de obras-primas poéticas: A sua abertura, polissemia, ambiguidade, a adequação da forma ao conteúdo, as imagens mentais que suscita, a originalidade sem artifício, a beleza musical da linguagem utilizada, o rítmo, etc. Não é o facto de se espartilhar a obra numa fórmula (o soneto, a canção, o rondel...) que nos seduz; isso é o artifício técnico.
O que é construído deve aparentar ser como um improviso, como algo espontâneo. O artifício que não se vê, é a arte poética mais consumada. Arte subtil, que escapa a grande número de pessoas. Só algumas pessoas poderão captar esta criatividade diante dos seus olhos ou ouvidos. Em geral, poucas o fazem: terão de ser - também elas - poetas e com total disponibilidade para acolher a criatividade de outrém.
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