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domingo, 29 de dezembro de 2024

OPUS. VOL. III, 33: SOBRE A ARTE POÉTICA

Parede, 29/12/2024




A escrita é uma disciplina do espírito: Este, perante a página branca, pode hesitar porque tanta coisa está encerrada no coração e na mente que só tem embaraço na escolha. Esta página em branco, é como o silêncio em relação à música: Está na mesma relação.

Entre fileiras das linhas, as interrupções são como pausas musicais, são formas de destacar ou de isolar as ideias e os sons associados. A música também é feita de silêncios. A poesia está presente no aspecto gráfico. Na realidade, uma página de poesia é uma partitura implícita.

A originalidade do escritor ou do poeta reside na forma como molda a matéria. Essa matéria é a palavra, antes de mais; é mais a emoção da música que se desprende de uma frase, de uma estrofe, de uma peça, do que a emissão de um conceito ou sentimento. Pois o conceptual, o filosófico, o analítico são de outro domínio do discurso.

Quanto à poesia que integre aspectos filosóficos, ou até científicos, estes serão antes um ingrediente para a criação de uma atmosfera poética. Aliás, a «poesia racional», é quase sempre medíocre. Note-se que o discurso poético é dirigido à emoção. Se o objetivo do autor dum poema é veícular demonstrações racionais, o seu âmbito fica demasiado restricto, reduzido (auto-reprimido), porque a sua intenção primeira é outra: ele quer expor um conceito, ou uma moral, ou um ideário...

A verdadeira poesia pode estar patente num texto que não se apresenta enquanto poema, mas que dá largas ao sentimento e à musicalidade e que nos guiam na sua leitura. Os termos descritivos, racionais, ou lógicos, quando presentes, não constituem a trama do poema. São como a utilização de tais elementos durante o sonho. No sonho, as imagens e as ações são simbólicas.

Neste sentido, a poesia, tal como o sonho, é pessoal e intrasmissível. Muito do que se consome como sendo poesia não o será, verdadeiramente. Tem muito pouco a ver com as características que descrevi acima. Não existe poesia verdadeira, que não seja uma porta aberta para o subconsciente, para o sonho. Resta ela encontrar o leitor capaz de a decifrar. Não é um «desporto de massas». O que não a invalida, nem a diminui.

Tive ocasião de ler várias obras descritas como «poemas» ou «versos» que são apenas um artifício, mais ou menos conseguido. Mas a poesia precisa de verdade. Pode ser uma verdade interior, como em modo de confissão ou de introspeção. Para eu sentir o sopro poético numa obra, tenho de sentir que existe nela vibração e que esta vibração em mim ressoa.

Pode tentar-se descrever ou analisar criticamente as emoções associadas ao poema. Pode-se conseguir analisar, sem o sentir. Mas isto não significa que o texto, em si mesmo, não possua teor poético. É que a poesia resulta de ligação especial entre o emissor e o recetor. Talvez a poesia esteja sobretudo na cabeça do recetor (auditor, leitor). Talvez a emoção suscitada, seja afinidade fortuita entre o leitor e o texto poético.

Contrariamente aos textos destinados a convencer, a persuadir, a verdadeira poesia apenas suscita uma adesão emocional, é um fenómeno da ordem da sedução. Podemos analisar um texto poético com muita profundidade e inteligência, mas este exercício não é a fruição poética, em si mesma. Embora a análise possa existir, ela é posterior, ela sucede ao enamoramento inicial, que suscita tal ou tal obra.

Mesmo assim, existe um certo número de características gerais, próprias de obras-primas poéticas: A sua abertura, polissemia, ambiguidade, a adequação da forma ao conteúdo, as imagens mentais que suscita, a originalidade sem artifício, a beleza musical da linguagem utilizada, o rítmo, etc. Não é o facto de se espartilhar a obra numa fórmula (o soneto, a canção, o rondel...) que nos seduz; isso é o artifício técnico.

O que é construído deve aparentar ser como um improviso, como algo espontâneo. O artifício que não se vê, é a arte poética mais consumada. Arte subtil, que escapa a grande número de pessoas. Só algumas pessoas poderão captar esta criatividade diante dos seus olhos ou ouvidos. Em geral, poucas o fazem: terão de ser - também elas - poetas e com total disponibilidade para acolher a criatividade de outrém.

[P.S. , AS PALAVRAS POÉTICAS E SUA INTERPRETAÇÃO]


POESIA E JOGO


 Na continuidade da pesquisa sobre aquilo que faz com que algo seja considerado poesia ou não, há uma característica que não é demais enfatizar: O efeito do inesperado. 

Um poema pode ser muito bem construído, harmonioso, etc, mas não estimular a atenção do auditor/leitor. Essa coisa que falta, chama-se imprevisto, aleatório, surpresa... Uma quebra no discurso, assim como nos acontecimentos descritos. O imprevisto é fundamental,  tanto em poesia como em música. E a poesia é, no fundo, uma forma de música. 

Outra circunstância esclarecedora em relação à importância do acaso em poesia, é o mecanismo do riso. Certas histórias são engraçadas,  desencadeiam o riso: Reconhecemos-lhes qualidade humorística, enquanto outras, não. Aquilo que torna uma história humorística,  é possuir elementos completamente imprevisíveis, mas da ordem do verosímil. Temos aqui uma componente poética frequente em narrativas em prosa, o conto ou o romance. 

Afinal, nem o conteúdo,  nem a forma, nos permitem concluir da qualidade poética duma produção. O "tour de force" poético, consiste na formulação, em apenas um verso ou estrofe, de algo complexo ou subtil, que precisaria de mil palavras para ser descrito analiticamente. Neste último caso, haveria perda total do  encanto poético. 

É por isso que, embora seja possível traduzir automaticamente através de algoritmos, uns pedaços de prosa, tal é impossível com poesia verdadeira: Nesta forma mais elevada de literatura, quase nao sera possivel uma tradução. Só por analogia ou semelhança, mas não literalmente, poderá a obra-prima poética ser traduzida.  Mesmo que a tarefa seja levada a cabo por alguém com profundo conhecimento de ambas as línguas; a língua original e a da tradução. 

Empiricamente, podemos confrontar uma tradução realizada por «robot», com a de um humano, tradutor  qualificado: Se o texto poético traduzido for «pesadão», sem as subtilezas do texto original, podemos apostar que é produto de um algorítmo; se não colar exatamente ao texto original, mas  transmitir a atmosfera poética deste,  então terá «mão humana».  Uma boa tradução  é também um ato de criação literária. 



POESIA E INTERPRETAÇÃO

Há que diferenciar entre interpretação e adaptação: 

- É uma diferença muito evidente em música: Pode haver fidelidade à obra musical, com a sua execução noutros instrumentos, que não aqueles para os quais o compositor ideou a partitura. No domínio musical, fala-se então duma adaptação

A interpretação de uma peça musical, refere-se a algo muito diferente: Será a forma de traduzir em discurso musical  o que está na partitura; a interpretação pode servir bem a  ideia do compositor, ou pode afastar-se, ao ponto de deturpar a peça em causa. Por isso, ao estudar-se música antiga, é indispensável conhecermos  as convenções interpretativas, as regras implícitas de uma dada época. 

Na poesia declamada, deve procurar-se a inteligibilidade imediata do texto. Nos textos antigos, é lícita a atualização de certos termos, assim como da fonética. O poema tem de ser inteligível. Deve dar-se prioridade à articulação  da palavra, em relação aos efeitos expressivos. Nos textos cantados, porém, esta prioridade pode não existir, em certos casos: Por exemplo, em cantos litúrgicos com textos em latim, as palavras podem ser incompreensíveis, devido às  complexidades da polifonia. Nas óperas, a compreensão  imediata das palavras não  é  essencial,  pois supõe-se que o público conheça o enredo e que vai ao espectáculo mais pelo seu lado musical, do que pelo teatral.