sexta-feira, 20 de abril de 2018

[OBRAS DE MANUEL BANET] EXCERTOS DE «ARQUEOLOGIA»*


[*Recolha de poemas inéditos de 1987 a 2016]

1- A Revolta dos Anjos


- Quem somos nós? Quem sou eu, quem és tu?
Somos instantes perdidos na imensidão do tempo
Somos transitórios como a carne
Somos menos estáveis que um grão de areia
Somos somente um elo duma cadeia que se estende desde um ser vivo primitivo…
… Sou tudo isso e temos a vaidade de reclamar a imortalidade!

- Segui estrada fora… conheço-lhe os prazeres e os perigos…
… Toda a verdadeira caminhada é solitária
Que este pensamento não sofra contestação
… Bem louco seria aquele que emprestasse os pés em vez das botas!




   2- Quando…


… Todas as profecias se gastaram no vão desejo do amanhã
… As bocas se calaram no súbito ruir da noite em tom de incêndio
… As fontes secaram fechando as gargantas sedentas de cristal
… A Terra foi a enterrar no espaço sideral





          3-  Tudo…


                     … Nasce, cresce e morre;
Se transforma,
Se vai escoando, se vai esvaindo
Se vai crescendo, se vai desenvolvendo
Se vai… …
… E tu, pra onde vais?
Tu, alma desvalida
Feres onde, vida?
Vives onde, ferida?
Do chão até às nuvens
Clamam vidas
Em seus quatro sentidos
Na água também,
Que é túmulo e fonte de Ti,
- Ó Vida!

quarta-feira, 18 de abril de 2018

[OBRAS DE MANUEL BANET] excertos de «UM CORPO MERECE SEMPRE VIVER»*


* poemas da colectânea inédita intitulada «Um Corpo Merece Sempre Viver»
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SÃO HORAS

São horas de fumar o presente
E arrumar o passado num baú
Com versos em tons de malva
Só colhidos nas horas mortas
Em postais ilustrados, com beijos muitos,
Xicorações e lenços de seda antiga,
Amarelecida como folhas de um outono
Vindouro; cada frase desbotando no vão
Do portal escancarado, sob chuva de março,
Irrigando os senteiros entre rochas
                         E troncos retorcidos...

|São horas de fumar o presente
São horas de perder as horas
São horas de contemplar o umbigo
São horas de ouvir os pêlos da barba crescer
São horas de afogar o cansaço no regaço
De uma noite onde se esconde teu rosto
E se empresta um tempo ao silêncio
E se goza a tragos ansiosos a estupidez
De nos preocuparmos com coisas vãs
São horas de fechar o livro
São horas de sonhar...




GNOSE

Via surgir esses rochedos do mar
Se retirando em oração rouca;
Eram modelo da Verdade pouca
Que aos olhos é dado contemplar.

Os olhos cerrou, que assim guardavam
Melhor a visão, analogicamente
Certeira, do combate que a mente
E a matéria entre si travavam.

Mergulhado em meditação ousada,
Atravessou oceanos, atmosferas,
Espaços estelares, até ao Nada

Dilatando sua visão das esferas
Ao Todo Universal, a razão empolgada
Descobriu por fim que Tu eras!





ÉS O MENINO QUE SE INTERROGA

És o menino que se interroga sobre os campos submersos – as misteriosas profundezas oceânicas- revolvendo na praia as conchas, os búzios, essas frágeis concreções que juncam a areia, trazidas pela paciência coleccionadora da maré...

Assim o saber que ao Homem se oferece:
Lá está exposto, qual carapaça fóssil
De um ser no Universo...

Mas quando poderão novos Newton, Darwin ou Jacques Monod,
Reconstruir do fundo oceano da nossa memória genética, o “Homo”
Ainda não “sapiens”,
Mas já menino
Interrogando as conchas e seixos rolados
Até à praia pela força
Das marés?





JAZZ

Gemido, sofrido, no mato
Carne pisada na roça
Dor, humilhação na choça
Rasgão, sangue pisado no corpo



UM CORPO MERECE SEMPRE VIVER


Um corpo merece sempre viver
Será este o meu derradeiro
Grito quando moribundo ‘stiver.


segunda-feira, 16 de abril de 2018

[OBRAS DE MANUEL BANET] ODE À RIBEIRA*


*Da recolha inédita «Lábios do Vento» (1979-1982). A «Ribeira» corresponde à zona do Mercado e do Cais da Ribeira, em Lisboa, locais de trabalho árduo e de vida boémia.  



ODE À RIBEIRA


Cais onde desaguam verduras mil
Sinfonia de cores, odores e gritos
Mulheres de olhar experiente
Observam o seu cliente
Gritando os seus pregões
Homens de sacas às costas
Atravessando um mar de alfaces
De couves lombardas, de aipos
De cenouras, de cravos
De todas as cores

Sob a luz iridescente
Dos candeeiros, os boémios
Sorvem o café, olhar vago,
Madeixa desgrenhada
E ao balcão de esmalte
O rapaz mexe o açúcar nos galões

Vendedeiras com batas pretas
Sobre as saias de roda
Seios abundantes arfando
Faces coradas como pimentões

As últimas prostitutas
Põem rímel e bâton
Nas suas máscaras como na tragédia antiga

Uma algazarra de buzinas
Faz levantar voo a um cortejo de gaivotas
Que debanda para os bordos dos navios
Mastodontes atracados
De onde saem cascatas de peixe prateado

E nisto, o céu começa a clarear
E lá ao longe um rubro clarão de fogueira
Abrasa o fino rendilhado do casario
E as nuvens, róseos animais que o vento deforma
Este vento fresco que sopra de manhã
Trazendo o odor a maresia, a cio e a suor

As negras em filas
Vão carregando canastas de peixe
Que se acumula nos camiões frigoríficos

Os trabalhadores, de cara tisnada, olhar cansado
Mordem o pão, bebem um gole
De vinho do Ti Zé
Aquecendo-se a um braseiro
Puxando umas passas do cigarro

Um zumbido de azáfama
Invade o campo auditivo
E nesta orgia de cores,
Cheiros e sons o espírito levanta voo

Ó homens da noite,
Rudes, sulcados de rugas,
Mãos sempre prontas a afagar as coxas abertas
De alguma sereia nocturna presa no vosso cordame

O chão está juncado de escarros, de beatas e de papéis
Oferece uma consistência mole ao andar
Os tamancos, as rodas dos carros carregando caixotes
A abarrotar de pescada luzente,
Com os seus guinchos estridentes, o seu raspar
O surdo tropel da cavalgada nocturna

E o rio sempre mansamente ondeando
Palpando o cais de seus dedos aveludados
Vai deixando alguns cacilheiros, luzes tremeluzentes
Deslizar suavemente sob o olhar fixo das gaivotas,
Sentinelas sempre alerta
Sobre o cimo dos mastros dos barcos
Balouçando ao ritmo da canção do vento

As alforrecas melancólicas dizem adeus
No meio das ondas aquelas jovens virgens
Que derramam a sua frescura sobre a amurada

No caminho do mar
O navio vai convidando do seu casco amarelo
Os marujos a subirem ao som das sirenes

As escadas de pedra carcomida vão dar
A uma mole de frutas de odor capitoso
Que nos envolve, nos lança um pregão,
Que nos recorda os passos daquela varina
Descendo a calçada, ancas dengosas, as saias alevantando-se
E deixando entrever as pernas rijas

Bebei este Mundo
Penetrai neste grande arraial nocturno de olhos cerrados
Para melhor sentir o cheiro que vos sobe às narinas