A personalidade deste poeta português foi tão escrutinada, tão classificada, tão psicanalisada, que é perfeitamente inútil acrescentar ao rol de opiniões que têm desfilado, ao longo das décadas que sucederam ao seu «redescobrimento», sobretudo (nos anos 60 e depois a nível mais internacional a partir dos anos 80). Com efeito, ele viveu numa semiobscuridade, produzindo de forma prolixa, sobretudo textos poéticos, mas também esboços de romances, de ensaios e uma abundante correspondência.
Aqui, irei remeter os leitores para as várias intervenções (1) feitas pelo «fantasma» Pessoa, frequentando o meu blog. Tem sido visitante infrequente, mas amistoso.
Eu confesso que o meu substrato de «Filosofia Natural» deve muito ao poeta filósofo. Porventura, foi o mais profundo de todos os poetas que Portugal teve, esta república dos poetas. Foi Pessoa que escreveu 'a minha pátria é a língua portuguesa'. Existem muitas outras citações dele, que se foram banalizando; muita gente nem suspeita terem sido cunhadas por ele.
O que é válido para Pessoa, não se aplica aos que tentaram, de uma forma ou de outra, seguir-lhe no encalço : Isto, porque a maioria não possuía a centelha de génio que pudesse incendiar a imaginação, como o fez o Mestre.
A poesia pessoana está na intercessão entre o paradoxo, o esoterismo, o classicismo, o modernismo, a procura do ideal, a exploração sistemática dos recursos linguísticos, e possui muitos aspetos contraditórios: racional-irracional, natural-artificial, espontâneo-elaborado.
A complexidade e a diversidade dos estilos, derivam de sua própria personalidade pluri-facetada, que ele conscientemente assume. Por isso, não pode ser assimilado a uma qualquer forma de «esquizofrenia», porque o doente esquizofrénico não está consciente; é joguete do seu mundo interior perturbado. Aliás, não conheço obras de qualidade por esquizofrénicos; muitos doentes deste tipo rapidamente descem a um estado de profunda degradação mental. Pelo contrário, Pessoa encarna, de forma deliberada, cada faceta da sua personalidade complexa através de personagens fictícios (os heterónimos) que acabam por atingir uma espécie de vida «semi autónoma».
Dos muitos heterónimos que se encontram em sua obra manuscrita (o mítico «baú» com as obras deixadas inéditas), sobressaem alguns, quer pelo volume produzido, quer pela celebridade atingida, depois de falecido o autor.
Pessoalmente, na «leitura-descoberta» da obra pessoana durante a minha adolescência (anos 1970), o heterónimo que mais me impressionou foi o de «Alberto Caeiro».
O «Guardador de Rebanhos» é uma série de poemas que podem ser lidos como um longo poema. O próprio Pessoa afirma - terá sido a fingir, ou verdade? - que os escreveu todos de uma vez.
Para mim, estes poemas são um ponto alto inegável de poesia na língua portuguesa e de reflexão filosófica, tomando a forma de verso.
Alberto Caeiro
XXI - Se eu pudesse trincar a terra toda
XXI
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
7-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.
- 45.
-------------
1) Abaixo, algumas publicações do blog onde são referidas obras de Fernando Pessoa: