Lembro-me de ter visto um pedinte, com as pernas gravemente incapacidadas, que se arrastava pelo chão do acesso a uma estação de comboio, algures no centro da China. Ele pedia esmola, erguendo um copo, à caridade dos transeutes que passavam sem lhe prestar atenção. Esta cena deixou-me perturbado, não que não tivesse visto coisas semelhantes do Ocidente e no meu próprio país, mas justamente porque este tipo de estendal de miséria não era próprio de um país que se considera praticando uma moral comunista, um país do socialismo da abundância, ou seja, o tal «socialismo com características chinesas».
Não foi caso único, também encontrei um sem-domicílio enrolado numa manta numa passagem subterrânea duma grande avenida de Pequim. Não julguem que eu estava à procura desses casos, nada disso: Eu estava inserido num grupo de turistas, todos portugueses, que visitavam a China.
Numa noite em que jantámos num célebre restaurante de Pequim, deparei-me com uma mulher idosa a pedir na rua, onde estacionavam os carros, fazendo gestos de «levar comida à boca». Fez-me pena, embora tais cenas estejam igualmente presentes em capitais de países ocidentais e das mais opulentas.
Mas eu acreditava, ingenuamente, que tais manifestações de miséria eram impossíveis num país dito socialista e orgulhoso das suas façanhas económicas e em ter arrancado da miséria uma grande fatia da sua população. Mas, o pior de tudo era que tais exemplos concretos de miséria, recebiam apenas indiferença da população.
As pessoas são iguais em Pequim, Toronto, Londres, ou Madrid: quanto mais afluentes, menos se preocupam com as pessoas destituídas. Esta também é uma lição para confrontar a realidade com a propaganda de um «socialismo» com «rosto capitalista». Pode ser socialista na condução geral da economia, mas as pessoas concretas não «comem o PIB», nem se vestem com «estatísticas da produção».
Martin Armstrong é capitalista e favorável ao tipo de regime (dito de «democracia liberal») que vigora nos países ocidentais. No entanto, como pessoa inteligente e pragmática que também é, tanto apresenta os lados positivos como negativos do regime chinês. A bem da verdade, tenho de confirmar que ele tem razão em vários pontos de um artigo seu, abaixo (*).
O prof. Michael Hudson, que tem trabalhado em universidades chinesas, como professor convidado de economia, caracteriza a China como um sistema misto. Ele é globalmente favorável ao regime aí implantado, porém reconhece que foi a abertura à iniciativa privada, no tempo de Deng Xiao Ping, que permitiu o arranque para o desenvolvimento neste imenso país.
A China foi ficando para trás, após a implantação da RPC em 1949, durante mais de 20 anos de comunismo radical sob a batuta autoritária do partido e do seu «timoneiro» Mao Tsé Tung. Continua oficialmente o regime, continua a ditadura «proletária» do partido, mas o regime foi-se transformando profundamente por dentro.
As pessoas esperam que, no futuro, tal como no passado recente, o seu nível de vida vá melhorar ainda mais. As pessoas na China são iguais às pessoas noutro ponto qualquer do globo. Querem viver com o mínimo de decência e dignidade, não precisando de se dobrar perante cada «apparatchik» que lhes apareça.
Será «virtuoso» enriquecer, como dizia a propaganda no tempo de Deng? - Sim, na medida em que este enriquecimento provenha do trabalho e do reconhecimento social por esse mesmo trabalho. Este princípio pode e deve existir numa sociedade socialista, ao contrário do que a propaganda propala de que o socialismo é igualizador, de que mata toda a criatividade, etc. Aliá, esta propaganda é afinal auto-destruidora, pois ela não explica como o desenvolvimento técnico e científico, assim como a excelência nas artes, se desenvolveram na URSS, na China e em muitos países «socialistas» durante a Guerra-Fria.
Se as pessoas fossem condicionadas a pensarem rotineiramente, nem cientístas, nem engenheiros, nem artistas em todas as artes, poderiam ter surgido. Dirão que são uns poucos que escaparam a um condicionamento radical; pois, a ser assim, estes que se notabilizavam seriam logo esmagados por hierarcas e pelos seus iguais. Algo de semelhante a isso começou - como um vento destruidor - na China durante a «revolução cultural»: Nesta altura foram destruídos imensos monumentos e sobretudo criminosamente enxovalhadas, castigadas e humilhadas centenas de milhares de pessoas, intelectuais na maioria. Muitos indivíduos que deram o melhor de si próprios, nos anos anteriores, foram alvos preferidos dos «guardas vermelhos» da China.
Deng Xiao Ping foi uma vítima, assim como o pai de Xi Jin Pin e o próprio Xi. Se a «revolução cultural», iniciada com o pleno acordo e estímulo de Mao e continuada pelos seus mais chegados aliados, fosse coroada de sucesso, hoje a China seria um país miserável.
Para mim, que aceito de bom grado os objetivos últimos do comunismo, mas não os desmandos que foram cometidos em seu nome (numa grande parte do século XX, sobretudo), não tenho qualquer complexo de superioridade em relação ao povo chinês. Antes, fico maravilhado pela sua capacidade de «endurance», de trabalho árduo, de solidariedade familiar, de auto-disciplina, de espírito coletivista. Devo dizer, no entanto, que estas propriedades não se desenvolveram a partir da China «comunista». Foram, durante milénios, o produto das experiências, dos fracassos mais sangrentos aos períodos mais aúreos, do povo chinês.
Para mim, o trato com um chinês é o mais natural, pois eu tenho muito respeito pela sua civilização e procuro naturalmente pontes para me relacionar com ele. Os chineses que eu encontrei ao longo da minha vida, muitas vezes foram cordiais, nada distantes. Pois, eles intuíam que eu não tinha qualquer complexo racista, de ser produto duma «civilização superior».
Por isso, amo as pessoas, compreendo que todos somos uma raça única, temos todos as mesmas necessidades fundamentais e legitimidade para nos afirmar dentro da sociedade, dando o melhor de nós próprios e recebendo - em troca - a justa recompenasa.
Só não acredito que um sistema ferreamente hierárquico, mesmo que tal ocorra apenas numa fase de transição histórica, possa conduzir-nos a um comunismo verdadeiro, aquele em que as pessoas têm igualdade de direitos e deveres, um poder largamente distribuido por todos, uma liberdade de expressão e criação em todos os domínios .
É como se me quisessem convencer que a melhor maneira de ir de Lisboa ao Porto, é tomar a estrada em sentido contrário, a que vai de Lisboa a Setúbal. Por que razão toda a gente veria isto como loucura, mas uma parte das pessoas convenceu-se que a «ditadura do proletariado» (do partido, na verdade) era, não apenas o melhor mas o «único» caminho para o socialismo e comunismo?
- Eu chamo a isso alucinação, mais que endoutrinamento, porque muitas pessoas - minhas conhecidas - adoptaram esse ponto de vista e não eram estúpidas, eram inteligentes e pareciam-me sinceras.
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« The Chinese Communist Party is not “communist.” China permits private ownership and corporations. Consumerism and capitalism are alive and well. Forbes reported in April 2021 that a new billionaire was created worldwide every 17 hours, with the majority of newfound wealth coming from China.
The USA may be the billionaire capital of the world, with between 813 and 902 billionaires recorded, but China has seen a significant rise in the top wealth bracket in recent years. Mainland China currently has around 450 billionaires with a combined wealth of $1.7 trillion. China also hosts over 1,400 people with fortunes above $700 million. Billionaires do not exist in communist nations.
Karl Marx’s communism involved seizing the means of production. The government owns land, infrastructure, factories, and corporations under the premise that the ruling class could be eliminated by surrendering ownership to the state. Citizens may not accumulate wealth, as no one may have more than another, and certainly not more than the state. Everyone must be equal in poverty.
Under communism, the incentive for innovation is null and void. China has become a pioneer in innovative technologies and discoveries in every sector. Entrepreneurs are abundant in China, and investment and international trade are encouraged. The China of today is one of the leading players in the global economy, driven by modernization and competitiveness. The China of the past may have been communist, but the government is not going to take down statues of Mao or announce past wrongdoings.
China quietly moved away from communism decades ago. They saw it wasn’t working and made a change without a public declaration. Yes, the CCP is certainly authoritarian to some degree, but it is a fallacy to call China a communist nation.»