From Comment section in https://www.moonofalabama.org/2024/03/deterrence-by-savagery.html#more

The savagery is a losing card. By playing it the US and the West are undercutting every ideological, normative and institutional modality of legitimacy and influence. It is a sign that they couldn't even win militarily, as Hamas, Ansarallah and Hezbollah have won by surviving and waging strategies of denial and guerilla warfare. Israeli objectives have not been realized, and the US looks more isolated and extreme than ever. It won't be forgotten and there are now alternatives.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A GRANDE ILUSÃO

 Abaixo, um texto meu de 2013 (publicado nos «Cadernos Selvagens», Nº1)

                          «A Grande Ilusão»*

                                   
A Ilusão da Política

Num terreiro de santo, durante uma cerimónia de Candomblé, as pessoas participantes assumem um comportamento em consonância com a situação. Todos os gestos, danças, palavras, cânticos, estão fortemente ancorados numa tradição, significam algo, são um rito, no sentido mais forte do termo. Os intervenientes, no auge do rito, começam a estrebuchar e atingem um êxtase «histérico», possuídos pela divindade invocada. 
Para adeptos da religião sincrética afro-americana, estes rituais são plenos de sentido, são o sentido verdadeiro, revelado, de suas vidas. Elas recorrem ao pensamento mágico, o qual funciona plenamente, na medida em que a sociedade o compartilha, dá um aval permanente, possui uma «teoria do mundo» completa, auto-satisfatória, auto-referente.
A nossa soberba, apenas, nos faz desprezar estas formas de actuar em comunidade, como destituídas de «racionalidade». O facto profundo, não pode, porém ser negado: as pessoas dentro destas comunidades têm uma integração de sua individualidade, são seres de uma «família espiritual», quer sejam ou não membros de uma mesma família genética ou legal. 
Começo por me referir a estas comunidades e a estes rituais, com o propósito de fazer ressaltar que o bem-pensante, supostamente «superior», «cheio de saber», de «cultura», ficou – porém - muito longe da capacidade dos mais «primitivos» em integrar o indivíduo na comunidade, tendo abafado os meios mais poderosos de identificação e de expressão de identidades colectivas, construídas com base em tradições, usando narrativas de origem, capazes de fornecer uma explicação globalmente satisfatória do cosmos.
Chamar o candomblé para o início do capítulo «A Ilusão da Política», pareceu-me lógico e luminoso: a política é uma actividade integradora do indivíduo numa comunidade, assim como – a um nível diferente, embora – a religião, os rituais e cerimónias do candomblé.
A «verdade» da política de todos os seus actos, de toda a sua retórica, pode parecer racional e transparente a quem nela participe por dentro; porém, não deixa de ser curiosa e estranha para quem a observa do exterior. Este estranhamento do observador externo, tal como perante o ritual de uma qualquer religião, mantém-se e até se reforça, quando ele está sobejamente informado da teoria/teologia que enforma os actos políticos.
Se tivesse de explicar a situação a uma inteligência vinda do espaço exterior, diria que a política é coisa inventada há alguns milhares de anos e actualizada sucessivas vezes, como o meio habilidoso de subjugar pessoas, os súbditos ou cidadãos, que têm de se adaptar a viver sob um soberano.
A artimanha de dizer que o povo é «o soberano» já não engana ninguém, nem sequer o mais ingénuo. Foi, porém, proclamando tal credo ou convicção e em nome do povo «soberano» que se desfraldaram bandeiras revolucionárias, se fizeram e aplicaram leis, mesmo as mais iníquas. Hoje, continua o lamentável espetáculo da política, sem a mínima consideração pela cidadania.
 Como se molda um cidadão para que ele, subjugado não seja capaz de equacionar os seus verdadeiros interesses? Para que não comece a pensar pela sua própria cabeça?
Uma panóplia considerável de meios tem vindo a ser desenvolvida: nas idades mais precoces, a criança é confrontada com uma série de proibições, de interditos, para os quais não existe qualquer «razão», senão a vontade dos adultos. No sistema escolar, obrigam a criança a efectuar múltiplas tarefas, a decorar coisas estúpidas e sem sentido, a papaguear as respostas que lhe ensinaram, abafando qualquer curiosidade legítima em indagar como são realmente as coisas. Dizem-lhe que tem de estudar isto e aquilo, para ser a melhor e mais competente, não obstante nenhum dos educadores saber realmente justificar a bondade e utilidade de tais saberes. Na realidade, é a própria autoridade, a submissão ao poder que estão a inculcar-lhe desde tenra idade.
A justificação de que os «bons» alunos sempre alcançam uma posição social correspondente ao esforço e mérito da sua aprendizagem, é uma falácia de todo o tamanho, mas repetida por todos, desde professores aos próprios pais, quer acreditem ou não nela. Cedo a juventude se apercebe de que a riqueza e a origem social são tão ou mais decisivos na ascensão profissional e social do que o mero êxito académico. Mas, na grande maioria dos casos, permanecem incapazes de contrapor outro modelo, outra forma de ver o mundo. Nem sequer têm outra noção de justiça, pois a visão ideológica dominante – que nunca se afirma como tal, sempre apresentada como «natural» - insinua-se a cada momento da sua vida.
A visão que impregna tanto os discursos dos mais eruditos, como o quotidiano mais banal é a de que apenas a organização hierárquica é racional e natural, de que ela apenas corresponde a uma arrumação «justa» das pessoas, segundo o seu mérito. É assim que se torna «natural» a visão meritocrática que lhe está associada. Este mecanismo, de justificação circular, permite manter a ilusão nas pessoas: - Os que obtiveram satisfação e sucesso na escala hierárquica, julgam-se investidos de mérito, o qual terá sido – segundo eles - decisivo para alcançarem a referida situação.
- Os insatisfeitos, os frustrados, estão convictos de que não se lhes fez justiça, de que não se lhes reconheceu o verdadeiro mérito. Costumam refugiar-se na esperança numa «vingança», individual ou social (uma mudança de regime, uma revolução), segundo a qual, finalmente, lhes será dado o devido mérito, enquanto os atuais privilegiados ficarão relegados para o fundo da pirâmide social. Entre estes dois extremos, a maioria acaba por se conformar, num grau maior ou menor. Os fracassos ou vitórias de sua existência medíocre devem-se exclusivamente àquilo que fizeram ou deixaram de fazer individualmente, com referência a uma escala convencional de mérito social, segundo a qual têm «aquilo que merecem».


Ciência política?

Edward Bernays, autor do livro «Propaganda» (1928), está para a psicologia Public Relations (PR), como seu tio Freud para a psicanálise. Bernays sabia que se podiam controlar as «massas» de forma tão eficaz como os generais comandam as suas tropas. Não apenas sabia isso, como forneceu «receitas» para fazê-lo eficazmente; a partir de seus trabalhos, foram desenvolvidas as técnicas de sofisticado controlo social.
Não será por acaso que esta ciência aplicada - resultante, em grande parte, da sua leitura redutora do freudismo - se revelou e teve um enorme sucesso no momento de persuadir os cidadãos dos EUA que o país devia entrar na Iº Guerra Mundial, embora inicialmente o povo fosse maioritariamente contrário a isso. Tamanho sucesso fez com que a «ciência» da propaganda fosse universalmente copiada, desde então, inclusive aplicada por regimes com as ideologias políticas mais diversas, como o soviético, ou o nazi. Segundo Goebbels, ministro de Hitler: «uma mentira repetida um milhar de vezes, passa a valer como verdade».
O combate ideológico-propagandístico foi de tal modo intenso e decisivo entre as duas guerras, que o termo «propaganda», inicialmente neutro, começou então a adquirir uma conotação pejorativa. Ficou associado ao clima de instabilidade, de guerra civil, que conduziu à IIª Guerra Mundial. Foi a partir desta data que a aplicação de várias disciplinas científicas - da psicologia social à psicanálise, da sociologia à estatística - deixou de se chamar «propaganda», tendo sido rebatizada como «public relations» ou PR. Tornou-se um instrumento indispensável aos governos, na medida em que eles já não podiam contar meramente com a força bruta e o medo, como forma exclusiva ou principal de manutenção da ordem.
Desde então, as guerras são antecedidas e acompanhadas pela artilharia pesada do condicionamento maciço, do terrorismo psicológico: «numa guerra, a primeira baixa é a verdade». Isto ficou bem patente no condicionamento das massas levado a cabo pela casta dirigente dos EUA, nas vésperas da guerra contra o Iraque em 2003. *
Mas a sua utilização não se limita a tais momentos; não é exclusiva de prelúdios de guerras, nem de outros momentos de crise. Tem sido um instrumento fundamental de dominação quotidiana; a aplicação dos princípios de Bernays está totalmente banalizada, tendo entrado nos costumes, não apenas da política, como de todas as atividades económicas, com suas campanhas de «marketing» e de publicidade.
O condicionamento das massas recorre à panóplia de técnicas da psicologia e dispõe de poderosíssimos meios, mediáticos, financeiros e outros. Hoje, estamos a viver numa sociedade como a descrita por Orwell no seu romance «1984», de ficção científica e sociológica.
O uso de técnicas de condicionamento tem vindo a assumir um peso cada vez mais importante. O elemento psicológico tornou-se o instrumento de controlo e domínio preferido. Os poderosos já não podem recorrer ao controlo das pessoas, como no passado, simplesmente instilando medo físico, ameaça física direta e brutal. O medo tem de ser difuso, tanto mais aterrorizador quanto mais vago e nebuloso. Esse sentimento de insegurança é difundido de forma subtil, sem que o cidadão se aperceba, condição sine qua non para que a manipulação surta efeito. Obviamente, esta mudança – condicionamento das massas, em vez da força bruta - não foi obra de mentes generosas, imbuídas de humanismo. Tornou-se inevitável, sendo mesmo exigida pelas mudanças nos próprios processos de produção.
Hoje, vivemos na época da «sociedade – fábrica» global: a sociedade, no seu conjunto, realiza as infinitas tarefas da produção material e de serviços, num mundo globalizado. O produtor desta era «tardo industrial» já não é o operário taylorista do princípio do século XX, automatizado a uma monótona repetição de tarefas e muito menos o operário-artesão, do século XIX, capaz de conceber, moldar e aperfeiçoar um objeto, expressão de sua arte. O típico operário – precarizado do século XXI nascente, é um indivíduo com vastos conhecimentos generalistas (podendo ou não ter um curso universitário) e capaz de se adaptar, de se vergar melhor dizendo, a quaisquer exigências patronais. Sempre disponível, sempre servidor do processo produtivo, caracteriza-se pela total flexibilidade; ele tem de estar ao serviço quando e onde, for necessário.
O processo produtivo, cada vez mais sofisticado, exige uma cidadania instruída. Mas os oprimidos não podem tomar consciência plena de sua opressão. Nasceria neles o desejo - e, portanto, potencialmente seriam capazes - de se libertar do estado de escravidão presente. Por isso, têm de ser constantemente seduzidos, cooptados, sua vaidade tem de ser permanentemente alimentada. Assim, generalizou-se a governação recorrendo à fabricação do consenso, em paralelo com a expansão dum modelo de economia onde o motor é o permanente desejo de consumir, a criação de necessidades artificiais.
 Como seria de esperar, surgem reações à imposição de uma falsa escolha entre um capitalismo de Estado, todo-poderoso e garantindo proteção total ao sujeito, regime designado erroneamente por «comunismo» ou «socialismo» e uma governação de facto submissa aos ditames das grandes corporações multinacionais, seguindo uma teologia de mercado, o neoliberalismo.
Existem muitas correntes, com génese e desenvolvimento diversos, que procuram afastar-se das dicotomias abafantes da guerra fria: a crítica radical da «sociedade do espetáculo» (Guy Debord em França e outros no movimento situacionista, que antecederam e «deram o tom» ao «Maio de 68»), a defesa dos consumidores e do ambiente, com diversificada expressão cívica (movimentos de consumidores e ambientalistas), o novo feminismo - não já centrado na afirmação duma mera igualdade política (direito de voto, etc.) - mas antes numa libertação da sexualidade e na igualdade de género. Talvez o que une esses movimentos sociais tão diversos entre si é a afirmação da dimensão ética, sua desconfiança ou mesmo rejeição, nalguns casos, da dimensão política, pelo menos da política institucionalizada.
O crescimento dos movimentos sociais na multidão tem sido contrariado por campanhas permanentes de calúnia, ocultação, deturpação e recuperação. Veja-se o caso da criminalização da dissidência, nomeadamente dos movimentos anarquistas e altermundistas, no virar do milénio. Mas, quando apesar de tudo, numa fração do público jovem se mantém ou mesmo cresce a simpatia por tais movimentos, as campanhas publicitárias vão revestir-se das aparências de «contestação» e «rebeldia». Tais campanhas vão revestir o contorno exterior, o símbolo, para melhor se apossarem do potencial de «sonho e rebeldia» que esses movimentos transportam, canalizando os desejos de saciar a frustração através do consumo. Não importa que se manipule um símbolo revolucionário, ou antissistema, mas que esse símbolo se «venda bem» e - com ele- a imagem de marcas associadas à simbologia. Isto tem sido patente na publicidade dirigida aos jovens, para consumirem produtos que lhes são destinados. Estas operações mobilizam exércitos de «criativos», «gráficos», «testadores», «vendedores», etc. Mobilizam uma parte substancial dos lucros; a publicidade absorve uma parte variável das despesas. Ela representa, em muitos casos, uma fatia tão ou mais elevada que a produção em si do objeto (ou serviço) a vender. Os «gurus» do marketing dedicam-se a transpor as conclusões de estudos científicos para adequarem a estratégia das marcas, para melhor condicionar os consumidores e/ou os votantes.
Face a esse aparelho e aos meios poderosos, quase sem limites, de que dispõe será difícil, para não dizer impossível, conseguir-se que a maioria das pessoas tome consciência plena da manipulação e, sobretudo, que um número significativo delas se oponha de forma ativa às novas formas de opressão. A solidez aparente do funcionamento político-ideológico que se esconde sob as roupagens do marketing advém desta dificuldade do desmascaramento numa larga escala, face à ubiquidade do condicionamento coletivo.
Nas sociedades atuais, o controlo não implica supressão das pessoas contrárias ao sistema; faz-se antes pela subtil marginalização da dissidência, pela discriminação das obras iconoclastas, pelo relegar as ideias originais para fora dos parâmetros do sistema, pela omnipresença do pensamento único na média. Trata-se de genocídio cultural permanente, de atentado constante à inteligência das pessoas, dum empobrecimento cultural. O preço pago pela sociedade é, além da continuidade e do reforço das práticas de exploração e de alienação, a perda de diversidade. Esta perda, analogamente as sistemas biológicos, tem como efeito a fragilização, o empobrecimento permanente do ecossistema social. As espécies que se extinguem, não são substituíveis em termos eficazes num ecossistema natural empobrecido. Igualmente, os criadores, os inconformistas, os visionários, são espécies sociais minoritárias, mas cuja função é essencial para que as sociedades se transformem, se adaptem e modifiquem, numa palavra, para a evolução social. 


 A gestão pelo medo

Na sociedade que se desenha no calor da mais recente crise, parece irremediável a impossibilidade dum indivíduo isolado ou mesmo imerso em grandes «massas», de fazer algo de concreto e eficaz pela eliminação do mal que o atormenta. Mesmo quando o indivíduo está ciente de que na raiz de todos os males contemporâneos se encontra o sistema capitalista de exploração, mesmo assim, não tem a lucidez mental para procurar o que realmente tem de ser atacado para derrubar o gigante que o atormenta. O indivíduo foi condicionado a pensar de modo não problemático para o sistema. Assim, mesmo os indivíduos «antissistema», têm uma completa incapacidade de alterar o estado de coisas presente. Ao existirem como uma curiosidade, um fenómeno, uma extravagância, eles funcionam como validação da «bondade» do sistema, pois a sua existência não é diretamente posta em causa, nas sociedades ditas «ocidentais». Eles são reprimidos, mas não do modo físico mais cru, mais óbvio. Podem negar-lhes – na prática- os meios de subsistência, mas sem qualquer aparente perseguição, tudo na maior legalidade e boa-consciência. Mesmo no país mais «democrático», eles permanecem largamente ignorados pela média. Nesta, a representação do mundo transformou-se num segundo mundo, o mundo «espetáculo» / «espelho» pelo qual a realidade tem de passar para ser admitida como existente. A média provoca «a morte» de tudo o que vier perturbar o pensamento único, sem ser necessário matar ou prender os potenciais perturbadores. A reação violenta das pessoas comuns torna-se assim a revolta que nunca atinge o grau suficiente para se transmutar em revolução.
Muito sofrimento irá continuar do lado dos milhões, triturados pela recente crise, exatamente como se fossem números, como se não fossem, afinal, humanos. A contradição demasiado aparente é a de que a sociedade existe, funciona, se organiza, produz graças a eles, mas não para eles. Vivemos neste estranho mundo, em que a perda de milhares de postos de trabalho por dia não emociona dirigentes políticos e empresariais, em que a humanidade do trabalho se perdeu completamente, se tornou numa variável de ajustamento, apenas, uma «coisa», uma «mercadoria». A crise contemporânea mostra como é bem real a afirmação de Marx segundo o qual se dá, com o advento do capitalismo, a transformação do trabalho em mera mercadoria.
Porém, as teorias de vanguardas iluminadas para tomar o poder são meros «panos de cena» que escondem dos incautos a enorme sede de poder de alguns, autodesignados como «revolucionários». A negação «radical» de todo o sistema, da sua política, suas instituições, seu funcionamento económico, apenas a um nível discursivo, sem tirar consequências táticas e estratégicas, é uma tentação de adolescente (mesmo quando os que a preconizam sejam velhos). A maturidade revolucionária só pode surgir quando se tornar clara para todos a necessidade de transformar o pensamento em ação e de fazer um retorno constante da ação para o pensamento, ou seja a fertilização da teoria pela prática. Mas esta visão falha nos líderes dos nossos dias. Pelo contrário, os que deveriam ter esse papel, parecem deleitar-se com visões ideológicas ultrapassadas da História e somente para sua autojustificação. Incapazes de visão estratégica, ficam-se pelas generalidades ocas dos slogans e pelos «efeitos de palco», numa tragicomédia grotesca.


Por que razão não se constrói uma teoria revolucionária que seja adequada ao tempo presente? Um caminho da emancipação verdadeira, não dum novo totalitarismo?
A razão desta impossibilidade é simples de se compreender: É apenas possível «agarrar» os problemas que temos ao alcance solucionar. Estes e somente estes. Os outros, ou são ignorados, ou vistos de modo tão parcial, tão incipiente, que não estamos em condição de os colocar em equação. Isto é válido em todos os domínios, desde a ciência física, à sociologia. A realidade do mundo está sempre muito para lá das teorias instituídas para explicação desta mesma realidade. Há um lapso de tempo, geralmente longo, entre o fenómeno histórico e a construção duma teoria satisfatória para a sua interpretação.
Dois efeitos se conjugam para tornar muito difícil a construção de teoria sobre acontecimentos históricos. Tais efeitos são tanto mais intensos, quanto mais próximo o nosso próprio tempo de vida for do tempo dos referidos acontecimentos:  
O «efeito retrospetivo»: as consequências dos acontecimentos que se pretende analisar não eram nenhuma fatalidade para os contemporâneos dos mesmos, que, na maior parte dos casos, nem de longe anteviram essas mesmas consequências. Muitas vezes, pensa-se precisamente o contrário, o que é absurdo, como se os contemporâneos devessem ter conhecimento do que seria a futura «marcha da História». Pior ainda, atribui-se uma fatalidade ao desenrolar dos acontecimentos, interpretando o que se passou num dado momento em função do que ocorreu posteriormente, como se o futuro determinasse o passado.
O «efeito subjetivo»: o ponto de vista pessoal do historiador é projetado – de modo não consciente, muitas vezes - nos factos; seleciona o que acha relevante, rejeita aquilo que vai contra as suas teses, enfatiza o que parece corroborar as suas teorias, omite ou distorce até à caricatura pontos de vista antagónicos aos dele. Transforma assim, de forma descarada ou subtil, a História: deixa de ser uma procura desapaixonada, científica da verdade, passa a ser narrativa ideológica, destinada a fornecer argumentos a favor das suas ideias.
Ninguém consegue manter uma total imunidade, face a estes dois escolhos recorrentes na atividade de investigação em História. Um teórico que tenha enormes cuidados metodológicos poderá – no melhor dos casos - fazer uma «teoria de revoluções passadas». Porém, essa teoria não se deveria projetar para os dias de hoje, nem para o futuro. Pois a realidade é que poderá guiar a teoria e não o inverso. Verdade evidente, mas que merece ser enunciada, porque há muitas pessoas sérias que «se esquecem» dela e pensam/agem como se tal não fosse assim!
Não existe nenhuma fatalidade no devir histórico. O sonho de Laplace de ter o futuro completamente conhecido pela descrição minuciosa de todas as massas e forças do Universo é falso -até mesmo em teoria: o princípio de incerteza de Heisenberg mostra a impossibilidade de tal ocorrer (quanto maior precisão tivermos para medir a energia de um corpo, menor precisão obtemos na medição do seu movimento e vice-versa).
O determinismo social é totalmente falso. O efeito conjugado das inúmeras ações humanas é impossível de modelizar. Com efeito, para cada situação histórica concreta seria necessário ter a capacidade medir e ponderar de forma operacional as inúmeras forças e ações recíprocas que ocorrem e se refletem nos vários níveis do real social.
A tendência para uma narrativa teleológica é antiga, tem raízes muito fundas, inscritas nos livros sagrados das religiões. No século XIX, foi laicizada por Hegel e por Marx. Muitos contemporâneos copiaram inconscientemente o modelo de «materialismo histórico» de Marx ou seja, vêm a História como a realização de um devir necessário da humanidade. Somente, a finalidade última deixou de ser a sociedade comunista; em vez desta, Fukuyama, por exemplo, profetiza o «fim da História» ou seja uma democracia de mercado, emanação última dum capitalismo aperfeiçoado, purificado.
As teorias totalizantes que pretendem dar conta da História passada, presente e futura, são meras construções ideológicas que apenas laicizam as narrativas míticas das diversas religiões. São como as das religiões, mas sem deuses!

A ilusão económica

A natureza caótica da atividade humana está sempre a ser reduzida pela pseudociência chamada «economia». Trata-se de uma crença religiosa, propalada (acriticamente) pela média, pelos políticos de todos os quadrantes e pela generalidade dos cidadãos.
A crítica da economia, ciência fictícia que nos assola e ainda torna mais graves os desequilíbrios causados pelas atividades humanas, tem sido feita por alguns, de forma completa e profunda, não irei aqui retomar os seus argumentos.  
Apenas vou referir o mito do PIB (Produto Interno Bruto), suposto medir o conjunto da atividade económica dum país, num ano. Muitas das decisões políticas, muitas avaliações ao nível dos mercados, têm em conta esse valor. O que significa que lhe é atribuído um papel de primeira importância monitorização da economia de um país.
Nesta contabilidade estão inscritas como «positivas», atividades que muito justamente se considera que não são produtivas, como sejam a recolha de impostos ou os pagamentos de capitais e juros de empréstimos junto de entidades externas, mas cujo aumento provoca um aumento correlativo do PIB.
Também são contabilizados e vão fazer crescer o PIB, o fabrico de armas e munições ou até a sinistralidade rodoviária, cujos efeitos são «benéficos» para esse «crescimento»: desde a reparação automóvel à indústria da sucata, desde os serviços de urgência até aos cuidados de saúde subsequentes e mesmo os serviços das agências funerárias, resultantes da morte dos sinistrados! Claro que nem a guerra (destruição), nem a preparação da mesma (acumulação de instrumentos de destruição) são atividades que produzem real riqueza, em termos humanos. Igualmente, os acidentes rodoviários são causadores de imenso sofrimento humano, além de uma perda económica considerável. Quer a guerra, quer acidentes rodoviários, porém, têm efeitos positivos no PIB.
É bastante trágico que não se adote uma visão mais realista e sensata, tanto neste como em muitos outros casos, tendo em conta que uma medição errada vai conduzir a diagnósticos falsos e a medidas tragicamente inadequadas.
Certamente os monopolizadores do discurso e do poder sabem isto muito bem. Mas, quer o governo, quer os grandes detentores de riqueza, ao falarem «economês», estão essencialmente a produzir um discurso para convencimento do cidadão/consumidor/votante. Este discurso não tem da cientificidade, senão os adornos mais exteriores. Alguns cientistas ou académicos põem o seu brilhantismo intelectual ao serviço dos poderes supra citados para fazer passar como válida a pseudociência da economia, que apenas é discurso de poder disfarçado. Num nível mais abaixo, numa escala muito maior, um exército de «técnicos- formigas», seguindo os cânones da ortodoxia, produz e interpreta constantemente gráficos e tabelas, para que as restantes formigas sigam pelo carreiro, façam sempre aquilo que é suposto fazerem!
A realidade social de hoje é apenas compreensível se tivermos presente o condicionamento maciço e universal. Ele assume uma forma totalitária, não visível, mas dissimulada. Conseguiram inventar «feromonas» perfeitas para o controlo do formigueiro humano.
Não deveríamos nos surpreender pelo facto dos modelos económicos serem tão incapazes de fazer previsões credíveis. Por muitas garantias que os economistas nos deem, de relações do tipo causa e efeito, isso não passa de gabarolice. Estão completamente destituídos de verdadeiros instrumentos de conhecimento, quando traçam as suas curvas, onde os fatores humanos reais ficam de fora. Ninguém de bom senso deveria se deixar guiar por modelos de previsões financeiras. Isto porque quem os inventa, simplesmente, recorre às suas próprias previsões ou intuições primeiro e constrói um modelo em seguida, para fazer coincidir tais previsões com as realidades de hoje. Todos deveriam compreender a diferença entre um modelo e a realidade: ninguém deveria estranhar que umas equações sejam incapazes de modelizar corretamente a evolução do comportamento das pessoas e dos mercados. Muitas pessoas, mesmo com um grau notável de cultura científica, deixam-se seduzir pela aparente cientificidade dos modelos em economia, não questionando a metodologia que os subjaz. Perpetua-se assim o mito do economista como uma espécie de sábio, de perito universal, um oráculo consultado pelos poderosos, tanto no governo como nas empresas.

A Ilusão Globalista

Por volta de 1998 o mundo mediático celebrava a vinda de um novo milénio com otimismo. Todos -ou quase- cantavam laudas ao triunfo, sem mácula, da «generosa e benevolente» democracia ocidental. Havia algumas «arestas» a arredondar, porém, nomeadamente nos Balcãs. Com a nova doutrina da intervenção humanitária, a força da NATO desencadeou a primeira guerra no solo europeu desde 1945! Num crime de guerra perpetrado para «defender» os direitos humanos, face a uns maus que -neste caso- eram as forças sérvias, numa guerra civil contra um «exército de libertação» da Albânia Kosovar. Esses paladinos da liberdade e dos direitos humanos, financiados, protegidos, treinados, enquadrados pelo ocidente, não eram mais afinal que um grupo terrorista, usando métodos odiosos, contra civis etnicamente sérvios, atribuindo depois as valas comuns ao lado contrário. Não foram poucos os combatentes do UÇK que receberam instrução e treino militar, no Afeganistão dos Taliban, com os quais partilhavam a mesma ideologia “jihadista”. Mas nada disso importava, pois se tratava de «salvar os pobres kosovares» indefesos perante os «selvagens nacionalistas sérvios».
Vem isto a propósito da memória curtíssima das pessoas, sujeitas a constantes lavagens ao cérebro. De tal maneira são eficazes, que boa parte do público passou a considerar, não apenas aceitável moralmente como até um «dever de civilização» as aventuras militares (elas sim, bárbaras e genocidas), dos EUA e seus aliados da NATO e outros vassalos locais, numa sucessão macabra: Jugoslávia, Somália, Afeganistão, Iraque, Iémen, Líbia, Síria (e Irão ?).
O globalismo não é responsável diretamente pelos crimes perpetrados pelos «grandes» deste mundo. Mas esta ideologia serve para lhes dar cobertura, para tornar aceitável o inaceitável, junto duma opinião pública cobarde, racista, saudosa da era colonial, nos países que foram grandes potências nos dois séculos anteriores. É necessário que ela fique anestesiada, passiva perante o horror. Ou que trema, diante de horrores falsos ou verdadeiros, apresentados como vindos do inimigo, o tal que ninguém é capaz de identificar: «o terrorismo»*.
Note-se que, durante muitos anos após o fim da segunda guerra mundial, o horror dos campos de concentração e de todo o período nazi foi ocultado das pessoas. Poucas pessoas souberam ou suspeitaram da escala e extensão completa da máquina industrial de morte do nazismo, não apenas no decurso da sua vigência, como mesmo alguns anos depois da derrota do nazismo. Agora parece que há maior interesse em desenterrar esse passado (já não tão) recente horripilante. Será para que as pessoas, por ilógico que pareça, deixem de ver o que se passa agora como essencialmente o mesmo, apesar de estar «diante dos seus olhos»? Há todo um processo de negação ilusória, de denegação, em relação aos horrores presentes, perpetrados pela ordem imperial global.
Há uns cerca de 50 anos, alguns intelectuais corajosos souberam denunciar a barbárie, mostra-la sem disfarce: Simone Weil, Sartre, Camus, Hannah Arendt, e outros… Nos dias de hoje, poucas vozes se levantam: dois nomes de intelectuais norte americanos - Noam Chomsky e Naomi Klein- vêm-me logo à cabeça, mas tenho dificuldade em encontrar nomes célebres, do lado de cá do Atlântico: onde estão os intelectuais europeus de grande valor, destemidos, corajosos, que recusam fazer a reverência ao poder, seja em que circunstância for? Não são fáceis de identificar, embora existam. Isto deve-se, não a serem de «fraca estatura intelectual», mas pela sua eficaz neutralização (blackout mediático). Não é por acaso ou capricho que o complexo mediático contemporâneo se encontra associado ao poder, mas porque partilha o interesse básico em manter o «Status quo». Sabe fazê-lo em conivência total com os poderosos, mas de forma camuflada, para iludir o público incauto.
O espetáculo das grandes cimeiras, das conferências internacionais, é apenas um «Theatrum Mundi», no qual os altermundistas representam um «folclore» de dissidência, pelas manifestações que as acompanham e que «justificam» a mobilização de forças de polícia armadas até aos dentes, numa exibição de poder, de intimidação, que não deixa nenhuma dúvida sobre quem são os «senhores» e os súbditos. 
Uns, os «dirigentes», estão a representar a tragicomédia grotesca do poder, em salões alcatifados, nos jantares com iguarias requintadas, aperaltados em trajes de cerimónia, ou em roupa desportiva, conforme a ocasião. Outros, «os populares», estão a ser reprimidos com bastões elétricos, com a roupa encharcada por canhões de água, no meio de nuvens de gás-pimenta. Obviamente, os primeiros não são os «representantes legítimos» dos segundos. Porém, de que legitimidade se reclamam? Eles são apenas os mandatários das grandes corporações, da grande finança e sabem-no bem. Em nenhuma circunstância se esquecem do seu papel, pois a sua ascensão à elite e manutenção nesta mesma, depende inteiramente da sua fidelidade canina. Dizem-se representantes dos votantes ordeiros das nações que os elegeram. Isso não é problema para «os senhores», pois esses tais votantes ordeiros ficam quietinhos diante dos seus televisores a ver o grande espetáculo da política. Ou seja, os representados não se atreverão nunca ou sonharão jamais pedir contas e esclarecimento cabal do que fizeram os seus representantes! 
Mas este espetáculo político das grandes cimeiras (G7,G8, G20, ONU, NATO, UE, FMI, OMC, etc.) não pode durar muito, para não enfastiar o «eleitor médio»! Então, é preciso alguma diversão: o «desporto», outro monstruoso circo planetário, é servido copiosamente. Torna-se mesmo o causador de ruína dos países que albergam estes eventos: veja-se o que aconteceu à Grécia após as olimpíadas de Atenas de 2004, a Portugal após o Euro 2004 e o que está a acontecer, nestes dias (escrevo em 22/06/2013), no Brasil, que se prepara para o Mundial de futebol
Os poderes dizem sempre, mentindo, que o evento se paga a si próprio com as receitas do turismo, as royalties das transmissões, as somas pagas pelos patrocinadores e grandes empresas, as promoções, etc. Porém, o que acontece fatalmente é que são os contribuintes desses países a ter de pagar a fatura, sem qualquer benefício de longo prazo (Os estádios construídos em Portugal para o Euro 2004, não servem para nada, dão prejuízo, ao ponto de as câmaras já pensarem implodi-los para ao menos dar finalidade útil a estes espaços!)
Se eu pudesse renascer daqui a 500 anos, admitindo que a civilização humana tivesse sobrevivido, não ficava admirado se os humanos dessa época futura olhassem estes últimos 20 anos (1993-2013) como início duma nova «idade das trevas».
A ideologia globalista (com retórica de esquerda ou de direita, tanto faz), tem legitimado esta descida aos infernos, sempre em nome de valores «humanistas», de religiões, etc. com um desprezo absoluto pelos humanos reais, contrariando a essência de toda e qualquer espiritualidade da qual se reclamem, seja ela de tradição cristã, muçulmana, budista, etc…
Tem de se reconhecer que os «reflexos identitários», as derivas xenófobas, são a outra face da deriva «globalista»: a outra face, não a alternativa. Podem ambas coexistir e é fatal que coexistam, pois estamos num jogo circular, onde a imensa maioria é composta por figurantes inconscientes, manipulados, alguns porém com a aparência de serem «ativos», pois estão imbuídos das certezas fanáticas dos «crentes». 

A origem da ideologia globalista deve ser procurada nas Luzes, na filosofia do Iluminismo. Pode ser considerada como uma das suas filhas prediletas. A sua irmã gémea, o «progressismo», muito em voga no século XIX e mesmo numa boa parte do século XX, está aparentemente a sofrer um grande revés. Porém, genericamente, tanto o progressismo, como o humanitarismo, ou ainda o internacionalismo, são nomes sinónimos do globalismo. Note-se que esta ideologia foi muito naturalmente assumida e revindicada quer pelo capitalista, quer pelo anticapitalista. Prova, a meu ver, da sua tendência totalizante, com muito natural deslize para justificar ideologias diversas, incluindo as totalitárias.

O nascimento e crescimento da ONU e das entidades supranacionais ou internacionais (a NATO, o extinto «Pacto de Varsóvia», a CEE, depois EU, a NAFTA, a OUA, a OCDE, ASEAN, etc.) ao longo da segunda metade do século passado, foi acompanhado pela sua tendência para se imiscuírem em assuntos internos dos diversos países. Revestindo-se de uma falaciosa legitimidade, chegam ao ponto de arrogar-se o direito de intervenção armada, bombardeando e destruindo com o propósito explícito de derrubar o poder vigente nesses países. Estas intervenções catastróficas e criminosas são invariavelmente «justificadas» com a defesa dos valores humanitários, da liberdade, da democracia, etc. 
A ideia estúpida e criminosa de que os valores «progressistas» ou «democráticos» têm de ser impostos pela força aos povos que não se sentem nada inclinados a venerá-los, tem sido a responsável pela justificação de crimes hediondos, que não podem senão desencantar qualquer pessoa que assuma realmente os valores do Iluminismo, de Voltaire, Rousseau, Locke, Franklin, etc…



A Ilusão da Comunicação Global


Na incapacidade (criada e nutrida) de intervenção cidadã por parte do «indivíduo comum», desviado por «n» fatores para coisas completamente acessórias e irrelevantes, uma das maiores ilusões é a dele poder influenciar destinos coletivos, dos países e mesmo do Mundo, através das redes eletrónicas de comunicação global. Esta inflação do ego é mantida e acarinhada pelos mentores da casta política, qual clero moderno, cultivando a versão atualizada da ilusão universalista, que tão bem serve a causa da globalização.

Voltaire dizia: «Il faut bien cultiver notre jardin» (É preciso cultivar bem o nosso jardim).
Neste lema encontra-se o fundamento dum posicionamento cada vez mais fértil. Com efeito, muitas vezes, é quando 99,999% das pessoas desprezam uma ideia, um objeto, um saber, etc., que isso tem maior valor real e merece ser acarinhado.
Seguindo este princípio, a comunicação direta e pessoal surge de novo como a verdadeira riqueza da comunicação humana, permitindo autenticidade e requinte, valores que não se baseiam no quantitativo, mas no qualitativo: é rico, aquele que sabe - em si mesmo e no seu entorno - encontrar a beleza e o prazer e deles disfrutar. É pobre aquele que precisa sempre de mais e mais para saciar a sua gula de sensações e de poder, num afã de consumo.
A sociedade atual, como se pode verificar a todo o momento, é feita de pessoas pobres, mas empobrecidas pela sua estupidez.


Reflexão sobre pensamento-ação

A máxima de Voltaire «É preciso cultivar bem o seu jardim» parece-me ser cada vez mais atual. Ela vem contradizer muitos dos escritos, inclusive dele, de pendor universalista, característicos do iluminismo. Sabemos que aí reside boa parte da raiz filosófica do internacionalismo ou globalismo atuais.
Ele reconheceu - e bem, a meu ver- que tinha errado, que o importante era fazer-se bem aquilo que estava ao nosso alcance transformar.

No fundo, isto não é muito diferente do princípio de ação direta: Está nas nossas mãos fazer algo; então, vamos fazê-lo diretamente, sem pedir intervenção dum intermediário, dum representante, dum eleito, para agir em nosso nome. O representante acaba por distorcer ou mesmo anular a nossa vontade, pela lógica inerente à natureza representativa, não por maldade ou perversidade da sua personalidade.
O princípio do localismo (“cultivar o nosso jardim”) parece-me confluir harmoniosamente com o princípio da ação direta. Ambos são complementares e definidores de uma ética da ação.
Quando na esfera pública (ou política), somos colocados perante o dilema seguinte:
A) Não podemos ter uma atitude constante de abstenção, de alheamento, pois há coisas muito importantes em jogo;
B) Ao agirmos, sabemos que irão surgir muitos parâmetros escondidos que apenas a ação faz revelar. A consequência dos nossos atos é sempre algo distante da nossa intenção primeira, por vezes até, exatamente oposta ao que foi desejado por nós.
Sempre tal dilema acontecerá, num grau maior ou menor, ao agirmos na complexidade do social. Porém, na esfera privada ou semi-pública, podemos intervir com maior autocontrolo, autodeterminação: mais vale focalizar o nosso esforço naquilo que realmente se pode influenciar. Agir no seio da família, do círculo de amigos, no emprego, na vizinhança etc., deve ser mais eficaz, por princípio e portanto preferido, em relação a uma intervenção política no sentido convencional. Uma ação é eficaz, na medida em que transforma efetivamente; mas a intervenção política típica ocorre ao nível do discurso, do simbólico, não se traduz em mudança real.
O recentramento não se deve colocar apenas no agir, mas também no pensar. Devemos repensar as relações entre pessoas (e agir sobre o nosso modo de intervir na esfera interpessoal).
O mesmo se aplica em relação a nós próprios. Como nos situamos relativamente a uma série de conceitos, de princípios ou de ideias? Muitos foram-nos inoculados: a moral é sempre um efeito do social sobre o individual.
Este recentramento que proponho tem como consequência desejável - perante pirâmides de conceitos e pré-conceitos que nos atulham a mente- o varrer de tudo o que seja falsa consciência (alienação) para se chegar ao núcleo da nossa reflexão-ação.
A nossa intervenção esclarecida e controlada será tanto mais poderosa quanto for coerente com o mencionado núcleo de reflexão-ação. Isto, obviamente, sem esquecer que a realidade - tanto exterior, como também interna, a psique - nos irá colocar incontáveis obstáculos.

No momento em que a sociedade se esgota com falsas lutas, apenas apoiadas nos egoísmos, mesmo e quando invoca uma vontade coletiva, que se deve fazer?
Pelo que me toca, tenho tentado não intervir, pois me iria apenas confrontar com vaidades diversas. Isso seria esgotante e não traria nenhum resultado positivo.
Não desisti realmente de ter intervenção social; mas procuro determinar onde essa ação social possa eficazmente desenrolar-se.
Embora tenha muitas dúvidas sobre intervenções políticas, existem – felizmente - outras esferas fecundas de ação social. Tenho vindo a cultivar o jardim dos vários saberes e saber-fazer, ao longo da vida: pedagogia, biologia, arte. Isto acaba por ter um reflexo na sociedade, se houver qualidade nos seus «frutos e flores» e pelo efeito de emulação, de exemplo, num círculo mais próximo de amizades.

Não é uma postura de fechamento, de indiferença face aos outros. Pelo contrário, pois trata de fazer o melhor possível, neste mundo, com a plena noção da realidade, com a consciência de como os entornos naturais e sociais são complexos e a nossa ação limitadíssima.
Este «jardim» ganha em ser cultivado em interação com os outros: pensemos na troca de boas sementes, ou de informações sobre as boas práticas de cultivo.
De que serve um belo jardim, se é somente para dele se ficar prisioneiro? Deve ser um local de fruição e partilha com os outros.
Devemos cultivar o nosso jardim e convidar os outros, para aí connosco passear e cultivá-lo.


* Manuel Banet Baptista (2013)

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