sábado, 3 de junho de 2017

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS - 13

[Extraído do livro «Exercícos Espirituais, 1985, Ed. MIC (Estoril)]

LÁBIO A LÁBIO

  

Todos nós vivemos na solidão
Todos nós precisamos de Deus
Todos nós precisamos de amor
Mas, sabendo amar para além
Da clausura de nós próprios
Até pelas mãos dos proxenetas
Nos podemos redimir.

A troco de quê me confinam
Aquém do paraíso dos loucos,
Do asilo psiquiátrico?
Mísero pão, sabor a cinza
Mísero coito, frenesim postiço
Mísero espírito, chalaça de mau gosto
Mísero saber, arroto de escárnio…

Ah, viver o sonho de apenas ser
Testemunho das coisas belas
- Atravessar o fogo para ver
As chamas por dentro
Ah, não temer a tortura,
a privação, a dor, o orgulho,
Por apenas vegetar numa cela
Lendo, sonhando, dormindo
Sem calendário, sem dever
Que não seja o de reproduzir
O ritual quotidiano com se…
O Mundo dependesse do seu gesto

Vamos entrar na zona em que o sonho
Sobe à superfície, como pequena bolha
De gás metano num pântano tranquilo

…    …   …

«Estou dentro do sonho…
Há cavalos que nunca trotam,  só
Galopam, são selvagens!!»
Nas gruas e nos guindastes se vê
(Quem no-la diria?) a canção de gesta
Do meu rio, antes sonhado que
                                                        vivido
                       antes lavrado que
                                                       fendido
Canção, canção, sempiterna ronda
Do berço à cova
Não te faltam sequer as lágrimas
Para ajeitares o verso
Ao choradinho das violas…
Não lamento ter encalhado aqui
Por vezes, o silêncio vale um verso
Mas se te queres aventurar
Por serras bravias,
Pensa duas vezes antes de compores
O farnel: não valerá uma bolota,
Um livro de orações?

- Pró resto, ficam as vetustas amarras
Dos Hilotas e dos Guaranis
O que, bem vistas as coisas, não destoa
No ciclo de lendas dos Bosquímanos

E depois, que querem?!
De «tempestades iracundas» já está
O vento farto. E gastas as
Covas onde se poderiam  esconder
As nossas carpideiras!

Nas falhas de … memória está a salvação
Ó delicioso vazio, amnésia benfazeja…

-Porquê, porquê, digam-me se souberem,
Porque razão é mais fácil esquecer
O prazer do que a dor?
… Um dia, vi uma velha ser
Atropelada e seu crânio romper-se
Como uma casca de noz
Nas pedras da calçada
Os restos de miolos…
Os olhos exorbitados…
Vi, juro, esta cena e porque
A inventaria se me irrita
Confessar que ainda me causa arrepios?!


Exibimos para exorcizar:
Não sabemos afastar o medo

Dos lobos, senão imitando-lhes
O uivar.
Nos contos de fadas há tanta
ou mais sabedoria
Que nos tratados de Freud, Lacan
                   & companhia!

A forma dura, se dura;
Não se deforma e perdura
Nos sinetes dos diáconos
Podes ler na moldura
A frase «Soli Deo Gloriam»
Com a qual assinam
Cheios de candura
Decretos de investidura
Onde se legitima a tortura
Quando esgotadas as formas
Paternais de brandura.

Sonho sabido de cor, mas sempre novo;
Depois do Cosmos, o Átomo
Depois do Átomo, o Cosmos
O pulsar galáctico
A vibração molecular
Sonhar sem rede, se jamais
Me perdi, não o devo a qualquer
Virtude, mas apenas à necessidade
De reproduzir na íntegra…
A Génese…
(Bom, inda não cheguei ao fim)

A solidão é necessária,
Como necessária é a virtude
De amar para além dos muros
Que enclausuram nossos Deuses.





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