Quando falamos de Cassandra, estamos a falar de um mito, independentemente de ter existido, ou não, uma princesa em Troia com tal nome.
A história contemporânea não reconhece a Ilíada como um escrito histórico, que sobreviveu miraculosamente, primeiro oralmente, depois por escrito, relatando a guerra das cidades-estado do Peloponeso contra Troia. Porém, a constante utilização do longo poema pelas artes, poesia e literatura nos séculos após os supostos acontecimentos, tem criado a ilusão de que os episódios da obra atribuída a Homero seriam, senão historicamente exatos, pelo menos, verosímeis.
De facto, o que se sabe seguramente pela arqueologia, é que Troia existiu, mas que houve uma sucessão de cidades, umas sobre as outras. Além disso, não houve uma única guerra de Troia, mas sim várias. O relato de Homero (ou atribuído a Homero) poderia ter condensado, numa única narração, o longo período de guerras de Troia contra exércitos coligados das cidades-Estados gregas.
Podemos - portanto - considerar que Cassandra, tal como está descrita na Ilíada, releva do mito, mais do que da História mitificada.
Eu vejo a história de Cassandra (*) como simbólica dos comportamentos das sociedades, em relação às pessoas com maior visão, mais sábias, corajosas, e sabendo que estão a ir contra a corrente mas - ainda assim - dizendo a verdade, custe o que custar, face aos poderosos e ao povo.
A obra de Luís de Camões contém uma «atualização» de Cassandra, na figura do «Velho do Restelo». Este desempenha, no poema épico «Os Lusíadas», a mesma função que Cassandra, na Ilíada: Profetizar perigos e desgraças que ocorrerão a Portugal e aos portugueses, em consequência do lançamento das ambiciosas e aventureiras viagens marítimas, a partir dos finais do século XV.
Uma caraterística comum nas «Cassandras» que se nos deparam ao longo da História, é que seus vaticínios, embora pareçam sensatos quando são lidos após os acontecimentos, foram descartados como fantasias, sintomas de loucura, palavras vãs, pelos indivíduos que, contemporaneamente, ouviram ou leram tais profecias.
Figura: Aquando da queda de Troia, Cassandra, que se refugiara no templo de Atena, é violada e depois feita escrava.
No mito, Cassandra é abençoada com um dom, que consiste na capacidade de ver o futuro e, em simultâneo, é amaldiçoada com a impossibilidade de que suas palavras sejam tomadas a sério por seus concidadãos, incluindo a sua própria família.
Na nossa época, as «Cassandras» avisaram com detalhe e antecedência e, como na lenda, não foram ouvidas. No âmbito económico, mas com grande repercussão política, a chamada «crise das sub-prime» (2008), levou ao quase desmoronamento do castelo de cartas da economia financeirizada. Esta crise foi prevista - com antecedência - por mais do que um analista dos mercados, incluindo figuras célebres do mundo financeiro.
Mais recentemente, autores de várias escolas de pensamento económico, têm feito avisos muito enfáticos sobre a iminência de um colapso muito superior, em magnitude, ao de 2008. Os avisos são dirigidos ao poder financeiro nos bancos centrais e ministros da economia e finanças dos governos. Estes preocupantes alarmes têm sido também publicados na media, ao alcance do mais amplo público.
Estes avisos, como os das outras «Cassandras» da História, estão a ser completamente ignorados, por quase todos: Desde pequenos especuladores, a gestores de Wall Street e doutros centros financeiros, a políticos - tanto no poder, como na oposição. Para mim, esta situação não só ilustra a enorme miopia dos poderes, especialmente após o quase colapso de 2008, como parece ser uma enésima atualização da história de Cassandra da Ilíada.
As multidões costumam ignorar, escarnecer, ou mesmo, violentamente atentar contra pessoas que vêm contrariar preconceitos e medos obsessivos. A fúria das multidões é estimulada por ditadores e demagogos, que assim defletem a ira e a frustração popular para que, perante as consequências de suas decisões aventureiras e fatais, nunca lhes sejam atribuídas responsabilidades, mas ao «bode expiatório».
As pessoas com lucidez e juízo, nestes tempos conturbados, devem ser discretas. Não se devem expor, pois seriam «arrastadas na lama», ou ostracizadas, no mínimo. Devem preservar-se, pois de nada serve tentar convencer uma multidão fanatizada ou hipnotizda.
Estas tentativas vãs apenas irão exacerbar a vontade de vingança das massas enganadas, que julgam que «o mensageiro das desgraças» é o causador das mesmas. O mensageiro é castigado em vez do tirano, que afinal de contas, é o causador das más notícias trazidas pelo primeiro.
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O «sonho premonitório» continua a ser objeto de controvérsia. O próprio processo pelo qual nosso cérebro produz imagens e sequências de acontecimentos permanece misterioso. Existe uma teoria segundo a qual o sonho é fruto de atividade desordenada das várias partes do cérebro, evocando imagens estocadas na memória: O dispositivo «racionalizador» encarrega-se de extrair um sentido. O processo de «fazer sentido» de imagens em sequências mais ou menos aleatórias seria elaboração do cérebro que sonha. Havendo impossibilidade de alguém relatar um sonho senão misturando a sua interpretação subjetiva do mesmo, é provável que os sonhos «premonitórios» sejam fruto duma interpretação subconsciente de elementos do sonho, em função das intuições profundas que podem relacionar factos, sem que atinjam o nível do pensamento racional do indivíduo.
ResponderEliminarÉ sempre desafiante ler os textos de Manuel Banet, produtos de uma cultura requintada. Homero existiu e é um prodigioso autor, um momento chave das realizações humanas. O extaordinário André Bonnard - mestre de grandeza máxima perseguido por ser, vejam lá, consequente intelectual de Esquerda e, depois, homenageado - escreveu o insuperável ensaio "Civilização Grega", do qual me lembrei ao ler as observações clarividentes de Manuel Banet. Leiam Bonnard e continuem a subscrever o blogue banetiano. Faz bem à saúde. Maximiano Gonçalves
ResponderEliminarObrigado, Max.
ResponderEliminarEu desejaria sublinhar que o certo é que a mitologia é uma construção coletiva de um povo. Tanto a mitologia grega, como a mitologia de qualquer outro povo, são obra de incontáveis gerações que transmitem uma tradição oral. No caso de que Homero tenha existido, hipótese que eu nunca excluí, não há dúvida que as narrativas da Ilíada e Odisseia são herdeiras de longa tradição oral, de gestas heroicas e moldando a alma coletiva de um povo.