A obra de Fernando Lopes Graça é impar. Mas, é-o por direito próprio. Não por ter tomado posições corajosas contra o regime de Salazar. Na verdade, ele foi severa e injustamente castigado por não se ter conformado à mediocridade e hipocrisia nacionais, durante cerca de meio século. Eu louvo isso!
«Ronda», com letra de João José Cochofel, do primeiro álbum de canções heroicas editado pouco depois do 25 de Abril
As «Canções Heroicas», foram compostas em colaboração com grandes nomes da poesia portuguesa e utilizando textos com claras conotações antifascistas, na maior parte. Mas, elas têm uma rara qualidade em si mesmas, enquanto textos poéticos e composições musicais. Digam o que disserem, é um marco impossível de menosprezar na nossa herança cultural.
Lamentavelmente, eu não sou a pessoa adequada para fazer a análise aprofundada das suas composições para conjuntos instrumentais. Sei que ele foi um ímpar executante do violoncelo e que produziu abundante obra para orquestra, ou conjuntos de câmara.
Mas, o que posso realçar aqui, é o seu contributo, juntamente com outros (nomeadamente, de Michel Giacometti), para a recolha, o registo em fita magnética e a harmonização de cantares do povo, do Norte a Sul, de Leste a Oeste.
Lopes Graça e Giacometti fizeram-no num período - principalmente, nas décadas de 40 a 60 do século passado - em que as tradições musicais rurais ainda estavam vivas, faziam parte do quotidiano dos trabalhos agrícolas, mas também de momentos especiais da vida comunitária (O Natal, as Janeiras, o Carnaval, a Semana Santa e a Páscoa, etc): Eram tais momentos da vida comunitária acompanhados por cânticos de transmissão oral. Inspirando-se diretamente nas formas corais populares, Lopes Graça compôs peças de agreste beleza. É o caso do Esconjuro * interpretado pelo Coro de Câmara de Lisboa:
As harmonias recorrem a métodos arcaicos de polifonia, como o fabordão, a sucessão de quintas paralelas, ou duas vozes que evoluem em intervalos de terças ou de quartas. As melodias apresentam frequentemente formas melismáticas, originárias da tradição árabe ou judaica, por via dos marranos.
O folclore de raiz, em Portugal, sofreu muito com a difusão da rádio nos meios rurais: muitas melodias supostamente «populares», resultavam afinal da cópia ou transposição de canções de «revistas»: Os espetáculos do Parque Mayer, onde se apresentavam comédias musicais. A estas, os camponeses certamente não tinham oportunidade de assistir. Mas, eram transmitidos excertos pela rádio, com as passagens de maior sucesso.
Também a tradição do canto religioso diminuiu de qualidade com a incultura dos membros do clero, que deixaram de ter, em muitos casos, formação em canto litúrgico digna desse nome.
Desde o 25 de Abril de 74, alguns grupos, formados por jovens urbanos, mas com interesse em revisitar as raízes rurais, têm feito reviver este rico património. Oxalá que exista um renovo de interesse pela música folclórica genuína.
Lembro igualmente os cantores/autores impulsionadores da redescoberta desse riquíssimo património: José Afonso, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira e outros. São exemplos notáveis de apropriação construtiva dos tesouros da música tradicional portuguesa.
No fim de contas, a herança deixada pelo Mestre Fernando Lopes Graça perdura e estende-se muito para além da música erudita: Boa parte da música popular portuguesa inspirou-se no seu trabalho etnográfico e de divulgação do folclore autêntico de Portugal.
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* Letras dos três esconjuros, postos em música por Lopes Graça.
3 esconjuros
contra os maus encontros
vamos embora à alvinha do dia
a deus me encomendo e à virgem maria
e à santa bela cruz
que me guarde de cão danado
e por danar
de homem vivo, inimigo
de homem morto, mau encontro
de águas correntes, fogos ardentes
nosso senhor nos livre das bocas de má gente
contra os maridos transviados
deus te guarde sol divino
que corres o mundo inteiro
viste lá o meu marido?
se tu viste não mo negues!
não mo negues! não negues não!
que esses raios que vais deitando
ao seu nascimento
sejam dores e facadas
que atravessem o seu coração
que ele por mim endoideça
não possa comer
nem beber
nem andar
nem com outra mulher falar
nem em casa particular
que todas as mulheres
que ele veja
lhe pareçam cabras velhas
e bichas feias!
só eu lhe pareça bem no meio delas
contra as trovoadas
santa bárbara de alevantou
se vestiu e se calçou
suas santas mãos lavou
e o caminho do céu andou
lá no meio do caminho
a jesus cristo encontrou
-para onde vais? bárbara vais?
eu não vou nem quero ir,
mas ao céu quero subir
- vou arramar aquela trovoada
que lá anda, lá anda armada
arrama-a bem arramada
lá prós lados do marão
no alto cerro maninho
onde não há vinho nem pão
nem bafo de menino
nem berrar de cordeirinho
só há uma serpente
com 25 filhas
que lhes dá água de trovão
e leite de maldição
vamos embora à alvinha do dia
a deus me encomendo e à virgem maria
e à santa bela cruz
que me guarde de cão danado
e por danar
de homem vivo, inimigo
de homem morto, mau encontro
de águas correntes, fogos ardentes
nosso senhor nos livre das bocas de má gente
contra os maridos transviados
deus te guarde sol divino
que corres o mundo inteiro
viste lá o meu marido?
se tu viste não mo negues!
não mo negues! não negues não!
que esses raios que vais deitando
ao seu nascimento
sejam dores e facadas
que atravessem o seu coração
que ele por mim endoideça
não possa comer
nem beber
nem andar
nem com outra mulher falar
nem em casa particular
que todas as mulheres
que ele veja
lhe pareçam cabras velhas
e bichas feias!
só eu lhe pareça bem no meio delas
contra as trovoadas
santa bárbara de alevantou
se vestiu e se calçou
suas santas mãos lavou
e o caminho do céu andou
lá no meio do caminho
a jesus cristo encontrou
-para onde vais? bárbara vais?
eu não vou nem quero ir,
mas ao céu quero subir
- vou arramar aquela trovoada
que lá anda, lá anda armada
arrama-a bem arramada
lá prós lados do marão
no alto cerro maninho
onde não há vinho nem pão
nem bafo de menino
nem berrar de cordeirinho
só há uma serpente
com 25 filhas
que lhes dá água de trovão
e leite de maldição
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