Muitas pessoas devem ter sofrido quando se interrogaram
sobre o propósito de sua vida, tal como eu me interroguei, durante décadas…
Uma pergunta aparentemente tão simples, mas capaz de confundir
as pessoas porque elas teriam de esmiuçar tudo o que pode ser relevante numa
resposta exaustiva, ou, pelo contrário, apenas encontrar uma palavra, um
conceito mágico, que exprima a essência do que seria o propósito da sua vida.
Mas eu libertei-me dessa questão, não me deixarei jamais encerrar
na armadilha retórica.
Talvez este problema não vos afete, de modo nenhum,
leitor. Neste caso, apenas tereis de ler este texto como algo curioso que
descreve fenómenos psíquicos noutros seres humanos. Tenho de felicitá-lo pelo
feito, porém.
Até agora, todas as pessoas que tenho tido oportunidade de
conhecer a um nível mais profundo que o superficial, sentem-se incompletas, sentem-se
não realizadas, sentem que haverá algo como uma misteriosa missão que devem
cumprir para ficarem em paz.
Mas… se fosse tudo uma espécie de imposição autoritária
do nosso super ego? Se elas fossem arrastadas a pensar que tinham de ter
objetivos pela simples razão de que as pessoas comuns se «entretêm» com isso e
aceitam a escravidão assalariada (ou outra) de bom grado, pois aí encontram o
tal propósito? Será que nós somos feitos
para desempenhar este ou aquele papel na sociedade, aquele que
corresponderia à nossa «vocação»? Ou seremos antes seres com um imenso campo de
possíveis, o qual se vai estreitando ao longo da vida, desde muito cedo, para que, por fim, nos pareça razoável ou mesmo lógico que nos entusiasmemos com
determinada rotina que nos impõem ou que impomos a nós próprios, convencidos de
que escolhemos, de que fazemos –nós- o próprio destino, etc.?
É incómodo e politicamente incorreto dizer-se que afinal,
não temos objetivos, propósito, metas, fins a alcançar; que viver é um ato sem
necessidade de justificação. Ele justifica-se a si próprio. Por que razão
precisamos de nos convencer de que existimos para nós próprios? Deve-se compreender
«nós próprios» como não-delimitado pela fronteira da nossa pele. É muito
arbitrário estabelecer aí os limites, como se o nosso ser existisse a partir de
e para dentro dessa fronteira da pele. Aquilo que chamamos «nós», inclui a teia
das nossas relações sociais, a própria organização social mais vasta, sem a
qual não poderíamos subsistir.
Quem nos quer inculcar essa ideia peregrina de «objetivo»,
de «propósito» na vida, talvez esteja cheio de boas intenções, porém está a
fazer o jogo dos que nos dominam e nos exploram. Estes é que beneficiam das
algemas que colocamos a nós próprios. Tal coisa só se torna possível como um
mecanismo de denegação. Recorremos à dissonância cognitiva permanente para nos
mantermos sempre dentro do medíocre emprego que nos proporciona o «pão
quotidiano». Não sabemos esconder de nós próprios, de outro modo, a infelicidade:
damos um propósito mais ou menos «nobre» à escravatura do trabalho, até fingindo
prazer, satisfação, realização pessoal, para não sermos confrontados com uma
realidade demasiado deprimente.
Eu percebo agora que não é necessário o homem livre ter
qualquer projeto de vida ou propósito ou vocação. Ele determina-se a fazer
algo, quer no momento, quer no médio ou longo prazo, somente de acordo com a
sua vontade. Ele está ciente da realidade e a sua existência: confronta-se com
a realidade, não a esconde e não se submete passivamente. Se ele estiver nesta
postura, não será sempre feliz, mas terá momentos de plenitude, pois será capaz
de se autodeterminar e de alcançar o que deseja. Caso não o consiga, está capaz
de avaliar as razões de não ter obtido o resultado pretendido e modificar-se a
vários níveis, modificando assim também as condições do seu entorno.
Esta pergunta «qual é o propósito da vida?» é bastante
trivial afinal de contas. Deve ser desconstruída, pois nós sabemos que a vida
vale por si própria; que os seres vivos são todos dotados de instinto vital;
que, portanto, a vida é a finalidade última dela própria… não precisamos de
falar de busca da felicidade, nem de harmonia, ou de plenitude… Basta dizermos que
o próprio viver é que se autojustifica.
Julgo ter demonstrado a inutilidade de toda a
infelicidade e angústia associadas a esta questão. Não apenas a questão costuma
ser mal colocada, como nos distrai do que conta verdadeiramente.
Quais são os nossos valores legítimos, aqueles que nós
próprios construímos, que assumimos como integrando a nossa ética? Essas sim,
são questões relevantes para a condução da nossa vida, que nós devemos colocar
e responder tentativamente nas várias etapas da nossa existência. São
perguntas cuja resposta obriga o indivíduo a situar-se no campo dos valores. Valores
esses que a si próprio atribui, conscientemente, como escolha amadurecida. No
ambiente social que o rodeia poderá haver concordância ou não com esses
valores, porém a sua autodeterminação prevalece, não se deixará subjugar pelos
tiques e pelas modas que observa nos outros. Um indivíduo assim é rico
interiormente, independentemente de sua riqueza material. Como é dono de si
próprio, não será subjugado completamente, mesmo que tenha de sujeitar-se a
algum sacrifício para poder sobreviver. Poderá mesmo assim ser escravo, talvez,
mas com uma consciência de homem livre. Um homem assim, não será inteiramente escravizado
e não perderá a oportunidade de romper as grilhetas da sua sujeição.
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