INICIAÇÃO
Não dormes sob os ciprestes
Pois não há sono no mundo.
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O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser,
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
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A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
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Neófito, não há morte.
(Presença, nº 35, Maio de 1932)
Este poema corresponde a uma fase relativamente tardia da produção do poeta. Escrito em 1930, tem aspectos de síntese de toda uma vivência passada, de sua proximidade com círculos iniciáticos, especialmente nos anos de sua juventude.
Com efeito, Pessoa tinha traduzido obras esotéricas, de Mme Blavatsky, de Alister Croley e doutros autores. Várias das obras em causa destinavam-se a fazer parte do catálogo duma editora, que ele próprio fundara, mas que depressa entrou em falência. Muitas das referências nos seus escritos inéditos mostram que Pessoa se preocupou durante toda sua vida com o esoterismo.
Teve uma relação bastante próxima com o referido Aleister Crowley, que se deslocou a Portugal, tendo o autor esotérico britânico protagonizado uma «aventura cómica», com a colaboração Fernando Pessoa*.
A substância do poema é deveras interessante, pelas correspondências que estabelece entre a vida corrente, o corpo enquanto «sombra de vestes», e o ser profundo.
A esotérica abordagem exprime-se nas três fases pelas quais o indivíduo é despido:
Primeiro, os Anjos retiram-lhe a capa; depois, os Arcanjos despem-no completamente, o indivíduo fica nu. Por fim, é despido o próprio corpo nu, no momento de revelação da alma, junto de «seus iguais», os Deuses.
Este poema pode ser interpretado a vários níveis, enquanto símbolo e como sinal dum saber iniciático, oculto.
O classicismo na construção do poema, além de lhe conferir um tom solene, torna-o ideal para transmissão da verdade veículada no verso que encerra o poema: «Neófito, não há morte».
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* Em 1930, Aleister Crowley, simulou ter-se suicidado na Boca do Inferno (Cascais). Crowley, com a ajuda de Pessoa, fingiu-se de morto, com Pessoa entregando o bilhete de despedida para a mídia. Três semanas depois, Crowley reapareceu publicamente em Berlim.
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