PÁGINAS SOBRE MÚSICA

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

OPUS. VOL. III 1. PARA QUE CONSTE

 Hoje, tempo de recordação. Hoje, tempo de ouvir os sons que me consolam na solidão. Hoje, só permito que beleza enforme o meu olhar. Para que conste, não estou a escrever senão pelo prazer de um improviso. Pelo prazer de levantar voo no dorso dum ganso de um conto de infância.


Não assentei quais os pergaminhos que irei recopiar, e os que deixarei apodrecer, nesta memória volúvel do tempo presente. Assim como assim, posso deitar algumas migalhas aos pardais: irão fazer um grande festim. Assim, como assim, tenho estado a apanhar, para mim próprio, alguns frutos do chão. Eles foram-me generosamente deixados pela árvore da vida. Não desprezo o meu sustento.

Há certas músicas que têm o condão de me pôr a delirar, de mansinho, como em sonho. Tenho-as na memória gravadas: irrompem subitamente, não solicitadas, movidas pela sua própria vida. Quando tal me acontece, eu aceito-as, naturalmente. Oiço o que me oferecem: um baile, um concerto ou uma serenata. Só preciso escutá-las, em silêncio; de prestar atenção; desenrolam-se reverberando na abóbada craniana; não há mais ninguém que as oiça, senão eu.

[Ao pé de mim, serenamente dormindo uma soneca, a minha cadela Oni.]

Eu disse que hoje só permitia que a beleza penetrasse no meu interior. As coisas belas são harmoniosas por dentro, quer sejam inertes ou vivas. A Natureza é sempre bela.

O bonito não é o belo. Diferencio sobretudo com a força que vem de dentro: se for belo, sente-se essa força. Mas o «bonito» é apenas o superficial: um boneco de peluche, ou um cãozinho de colo mimado e com lacinhos.

Há um olhar não trivial, para além das aparências: Um olhar que não julga, que não tece sentenças. Um olhar de pintor; de observador da Natureza e dos homens. Procuro exercitar este olhar interior sobre o que vejo. Sei que ainda estou muito longe da perfeição!

A perfeição desta Suite para o alaúde de J.S. Bach exerce em mim uma espécie de hipnose, enquanto estou a escrever o que me vem à mente. O sentido do que escrevo não está relacionado com a música. Porém, a forma como trabalho é diferente com música suave e serena. Ajuda-me a fazer subir à superfície a energia interior.

Não é música que embriague os sentidos, música com um marcado ritmo, com instrumentos de percussão, etc. A música «virada para fora» pode ser de excelente qualidade, mas - pelo menos no meu caso - distrai-me, impede-me de me concentrar plenamente do que quero exprimir.

Existem tantas categorias de música, quantas se quiser: afinal, é uma questão de classificação. Como música para acompanhar o trabalho físico, música «virada para fora»; para acompanhar o trabalho intelectual, «música reflexiva», meditativa.

Murtal, Parede, a 9 de  Janeiro de 2024

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