Hoje, tempo de recordação. Hoje, tempo de ouvir os sons que me consolam na solidão. Hoje, só permito que beleza enforme o meu olhar. Para que conste, não estou a escrever senão pelo prazer de um improviso. Pelo prazer de levantar voo no dorso dum ganso de um conto de infância.
Não assentei quais os pergaminhos que irei recopiar, e os que deixarei apodrecer, nesta memória volúvel do tempo presente. Assim como assim, posso deitar algumas migalhas aos pardais: irão fazer um grande festim. Assim, como assim, tenho estado a apanhar, para mim próprio, alguns frutos do chão. Eles foram-me generosamente deixados pela árvore da vida. Não desprezo o meu sustento.
Há certas músicas que têm o condão de me pôr a delirar, de mansinho, como em sonho. Tenho-as na memória gravadas: irrompem subitamente, não solicitadas, movidas pela sua própria vida. Quando tal me acontece, eu aceito-as, naturalmente. Oiço o que me oferecem: um baile, um concerto ou uma serenata. Só preciso escutá-las, em silêncio; de prestar atenção; desenrolam-se reverberando na abóbada craniana; não há mais ninguém que as oiça, senão eu.
[Ao pé de mim, serenamente dormindo uma soneca, a minha cadela Oni.]
Eu disse que hoje só permitia que a beleza penetrasse no meu interior. As coisas belas são harmoniosas por dentro, quer sejam inertes ou vivas. A Natureza é sempre bela.
O bonito não é o belo. Diferencio sobretudo com a força que vem de dentro: se for belo, sente-se essa força. Mas o «bonito» é apenas o superficial: um boneco de peluche, ou um cãozinho de colo mimado e com lacinhos.
Há um olhar não trivial, para além das aparências: Um olhar que não julga, que não tece sentenças. Um olhar de pintor; de observador da Natureza e dos homens. Procuro exercitar este olhar interior sobre o que vejo. Sei que ainda estou muito longe da perfeição!
A perfeição desta Suite para o alaúde de J.S. Bach exerce em mim uma espécie de hipnose, enquanto estou a escrever o que me vem à mente. O sentido do que escrevo não está relacionado com a música. Porém, a forma como trabalho é diferente com música suave e serena. Ajuda-me a fazer subir à superfície a energia interior.
Não é música que embriague os sentidos, música com um marcado ritmo, com instrumentos de percussão, etc. A música «virada para fora» pode ser de excelente qualidade, mas - pelo menos no meu caso - distrai-me, impede-me de me concentrar plenamente do que quero exprimir.
Existem tantas categorias de música, quantas se quiser: afinal, é uma questão de classificação. Como música para acompanhar o trabalho físico, música «virada para fora»; para acompanhar o trabalho intelectual, «música reflexiva», meditativa.
Murtal, Parede, a 9 de Janeiro de 2024
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