Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
- 63.“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Natura naturans
Fernando Pessoa/Alberto Caeiro define em poucas palavras a filosofia de Espinoza, a existência do Mundo, da Natureza, em si e para si. Para Espinoza, a Natureza identifica-se com Deus. «Deus sive Natura».
«Deus» e «Natureza» são nomes, designações daquilo que é ação: Não uma coisa, não um objeto, nem mesmo o «objeto maior», que é o próprio Universo.
Pois, para nós, que identificamos o Universo com a sua própria génese, teremos de incluir a existência de uma «força», uma «consciência», o que também podemos designar como Deus.
Mas não podemos definir Sua existência, como coisa, como um ser: Porém, a humanidade apreende e vive essa relação com o Cosmos de forma pessoalizada. Por isso, o «Pai nosso que estais no Céu...» e todas as representações humanizadas em todas as religiões.
Para a tradição filosófica do Cristianismo, no entanto, não existe uma definição total de Deus. Visto que Ele está acima de qualquer tentativa de conceptualização, não se pode definir.
É assim que eu interpreto o poema transcrito; um dos poemas mais belos e mais filosóficos de Fernando Pessoa. Ele não foi apenas poeta, mas igualmente um pensador, que abriu caminhos a muitos trabalhos filosóficos posteriores.
PS1: Fernando Pessoa (ortónimo) escreve na revista «A Águia» uma apreciação crítica do seu heterónimo Alberto Caeiro: Eis alguns parágrafos de prosa do poeta:
«O que o sr. Alberto Caeiro faz é uma abstracção concreta. Veste de concreto uma tendência abstracta, que, naturalmente não de propósito, não deixa atingir o seu máximo de abstracção, mas que fica, bem reparando, nem abstracta nem concreta. E o materialismo abstracto foi tornado, por conseguinte, num materialismo extremamente relativo.
No sr. Alberto Caeiro toda a inspiração, longe de ser dos sentidos, é da inteligência. Ele, propriamente, não é um poeta. É um metafísico à grega, escrevendo em verso teorizações puramente metafísicas.
Repito que o admiro, que o admiro extraordinariamente. Mas não apraz à minha análise chamar-lhe um poeta abstractamente materialista. É um filósofo abstractamente materialista aureolado de alma em um poeta abstractamente místico. Creio no Deus em que o sr. Caeiro não crê que existe como afirmação do sr. Caeiro e como verdade pura.
Assim como para materialista o acho espiritualista em extremo, e como para poeta o acho filósofo em excesso, para espontâneo acho-o consciente de mais. Sei o que é pensar auto-objecções [...] ao ler O Guardador de Rebanhos pois reparei como o Poeta aqui e ali, nesta ou naquela altura dos seus versos, vai sub-repticiamente ou não, respondendo às objecções possíveis. »
Outro espantoso poema de Pessoa/Alberto Caeiro:
ResponderEliminarhttps://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2016/08/a-espantosa-realidade-das-cousas.html