A História escreve-se com palavras. Estas palavras significam conceitos. Porém, estes conceitos evoluem ao longo do tempo, sendo impossível fixar - como fazem os dicionários e as mentes obtusas - uma definição de uma qualquer palavra, de uma vez por todas, qualquer que seja o contexto histórico, político, cultural, etc.
O caso da palavra «liberal» é interessante. Esta palavra designou, sobretudo no Renascimento, alguém - como um príncipe - que era generoso, um patrono dos artistas, que gostava de dar festas, etc. Aliás, usava-se - ainda há pouco tempo - a expressão «gastar com liberalidade», ou seja, de maneira não-comedida, sem olhar às quantias largadas, como sinónimo de «esbanjar».
Depois, veio a época da luta contra o Absolutismo, uma realeza que não aceitava partilhar o poder, de forma alguma; que se considerava directamente ungida - por Deus - na missão de governar e não iria tolerar que alguém, fosse quem fosse, interferisse com as suas decisões ou, mesmo, somente as criticasse. Esta luta, que durou dois séculos, viu o conceito de liberdade surgir como reivindicação da plebe, depois de ter sido mote das pessoas da alta burguesia e de muita aristocracia, que se consideravam amesquinhadas na sua dignidade de seres humanos, por lhes ser negado aquilo que veio a ser incorporado nas constituições como «liberdades e direitos fundamentais»: a liberdade de expressão, o direito a igual tratamento pelos tribunais, etc. Neste contexto, o da Revolução Americana e das Luzes, o significado de "liberal" era naturalmente aquele que adoptava um ponto de vista anti-absolutista, que considerava que os humanos tinham um natural e intrínseco direito a serem livres.
Com as lutas liberais, cresceu também a força da burguesia. Esta, antes de ter a força política (a partir do final do século XVIII), tinha força como classe económica. Questões do comércio, dos mercados, da banca, da indústria, eram com ela. A sua ideologia considerava que era absolutamente necessária uma liberdade de comércio, que proteger o mercado nacional, impedindo ou dificultando a importação dos produtos, que pudessem competir com os nacionais, era «intolerável». Os que consideravam tal «liberdade do comércio» absolutamente essencial, também se auto-designavam como «liberais». No entanto, muitas vezes, eram os mais contrários à liberdade do povo em se auto-organizar, em construir partidos e sindicatos independentes, etc.
O liberalismo, mais tarde, surge como eufemismo, para designar forças que advogavam o domínio, sem partilha, do capital sobre o trabalho, como se não fosse anti-liberal (no sentido original do termo) proibir reuniões e a expressão das ideias dos trabalhadores, dos operários. Estes ditos liberais não tinham qualquer prurido em reprimir greves reivindicativas dos trabalhadores.
O chamado neo-liberalismo, com seu cortejo de ideólogos globalistas, afirmou-se mais recentemente. Corresponde ao capitalismo tardio, em que os monopólios estão ao comando, não somente dos mercados, como das próprias políticas estatais. Observa-se o triunfo desta ideologia, a partir da presidência de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher no Reino Unido, no final da década de 1970. O neo-liberalismo é uma reacção, no seio da classe possidente, à época «social-democrática», que predominou sobretudo na América e na Europa Ocidental, durante a fase de reconstrução, após a IIª Guerra Mundial.
Também existe uma clivagem no significado do termo, de um lado e de outro do Atlântico: Nos EUA, «liberal» significa - muitas vezes - o que os europeus designam como «de esquerda» ou «progressista». No discurso político institucional americano, «socialismo» tem uma conotação negativa. Na sua mentalidade, «esquerda» e «esquerdismo», também, na medida em que - sobretudo na Europa - têm forte conotação com ideologias de radicalismo social (socialismo, social-democracia, comunismo, anarquismo...). Inventaram então uma designação «edulcorada», para aqueles cujo comportamento se inclina mais para a esquerda, por vezes em termos sociais, apenas: Por exemplo, uma pessoa que seja favorável à legalização do aborto; ou alguém que é crítico do comportamento das grandes corporações, em relação aos consumidores, aos seus próprios trabalhadores, ou ao ambiente, etc, etc.
Mas, os EUA, também é o país do «politicamente correcto», pelo que os chamados «liberals» - nos EUA - não têm pejo em lançar o anátema contra as pessoas com ideias conservadoras ou, simplesmente, diferentes das suas, em aspectos da vida, desde a sexualidade, à religião, passando pelas doutrinas económicas ... ou seja, pessoas que estão somente a exercer o livre direito de exprimir sua opinião.
Este pequeno apanhado deixa de fora alguns usos da palavra «liberal».
Eu quis apenas sublinhar a ambiguidade do discurso, mormente político, na utilização do termo. Assim, pode alguém estar a usar o termo num sentido e este ser interpretado noutro. Alguns políticos procuram até esta ambiguidade, para «agradar a gregos e troianos».
Um artigo que mostra até que ponto, nos EUA de hoje, a deriva pseudo-liberal levou país para um estado de caos e de verdadeiro impasse: https://www.unz.com/tsaker/reconsidering-the-presidential-election/
ResponderEliminarO artigo seguinte desfaz o mito dos «mercados livres», está muito bem documentado. Leia: http://thesaker.is/do-as-i-say-not-as-i-do/
ResponderEliminarUm vídeo (falado em francês) do «Précepteur», sobre a análise que J.C. Michéa faz do liberalismo:
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=PjCUoMbbS5g