(*)
traduzido do inglês :
"Não
importa o país para aonde eu vá, toda a gente aprecia a minha arte por uma
simples razão: é um reflexo da natureza", observa o mestre de imitação Hai
Yang, relinchando como um cavalo para ilustrar a universalidade de kouji, uma
arte tradicional de imitação sonora.
O nativo
de Henan, de 39 anos, teve um ano produtivo: em 2017, como membro da Sociedade
Acrobática de Beijing, passou um mês nos Estados Unidos a atuar à frente de
dezenas de milhares com o seu talento e sentido de humor. Após o seu regresso à
China, Hai foi convidado a integrar a equipa de efeitos sonoros do “Wolf
Warrior 2”, o filme chinês com o maior sucesso de bilheteira de
sempre. Para este filme de guerra, Hai Yang imitou explosões de mísseis,
tanques barulhentos e outros sons muito para além do repertório tradicional
desta arte antiga.
Aqui está
uma amostra do repertório moderno de Hai:
Os
registos históricos mostram que kouji (口技), literalmente "acrobacia da boca", existe na China
há mais de 2300 anos. Hai narra com entusiasmo a famosa história do
primeiro-ministro do Estado de Qin, Mengchangjun, um estudante de Confúcio que
viveu durante o Período dos Reinos Combatentes (475-221 AC).
Em 299
AC, Mengchangjun foi acusado de espiar no seu estado nativo de Qi e posto na
prisão, juntamente como os seus servos. O ministro buscou a ajuda da concubina
favorita do rei de Qin, Yan Fei, que, em troca, exigiu um casaco de pele de
raposa branca que Mengchangjun já tinha oferecido ao rei. Preso num dilema, um
servo jovem e leal, decidiu usar kouji. No meio da noite, depois de escapar da
sua cela, chegou à porta dos aposentos do rei e começou a imitar o som de cães
a latir, distraindo os guardas o tempo suficiente para que ele pudesse
infiltrar-se no quarto do rei e roubar o casaco.
Mas,
depois de fugirem das celas do palácio Qin, Mengchangjun e os seus servos deparam-se
com um outro problema ao chegarem à fronteira Qin-Qi (na atual província de
Shaanxi), bem guardada por uma base militar. Mas antes que as tropas do rei Qin
alcançassem os fugitivos, o jovem servo de Mengchangjun imitou o cacarejar dum
galo e todos os galos nos arredores seguiram. Os porteiros, não tendo nenhuma
espécie de relógio, pensaram que a manhã estava quase a chegar, abriram o
portão e deixaram Mengchangjun e os servos passar.
Imitar a
música deste tordo era uma das formas artísticas de representar beleza feminina
na China antiga.
Durante a
dinastia Song (960-1279), a arte de kouji recebeu patrocínio imperial. O
chilrear dos pássaros era um som que os cortesãos gostavam particularmente (de
acordo com Hai, o canto dos pássaros era uma das quatro metáforas naturais para
a beleza feminina, junto com as flores, o salgueiro e a lua).
A
capacidade dos artistas kouji de imitar este som deu-lhes um lugar permanente
nas festas de banquetes do Estado. Composições feitas exclusivamente de sons de
kouji, incluindo “O canto dos cem pássaros” (百鸟鸣), eram especialmente
populares devido à boa sorte simbolizada por 100 pássaros.
Hai
afirma que kouji alcançou tal nível de mestria nessa dinastia que o canto de
certos mestres de kouji superava o pássaro que eles estavam imitando.
Um tal
indivíduo, Zhang Kun Shan (张坤 山) conseguia fazer com que
um tordo morresse de exaustação ao tentar cantar mais alto do que Zhang Kun
Shan, ganhando-lhe a alcunha de Hua Mei Zhang (画眉 张), huamei sendo o nome chinês
para a espécie de tordo que Zhang Kun Shan conseguia imitar. O próprio Hai
lembra-se alegremente de exibir as suas habilidades à frente de tordos em
gaiolas, deixando-os num estado de frenesim, e o seu dono algo chateado.
Todos
os chineses com educação básica têm algum conhecimento da arte, graças ao
ensaio "Kouji", que faz parte do currículo do segundo ciclo. O texto,
escrito pelo erudito Lin Si Huan (林 嗣 环),
descreve vividamente uma atuação teatral de kouji: O público senta-se à frente
de uma tela, atrás
da qual o
artista de kouji conta uma história com efeitos sonoros - cachorros latindo, um
bébé horando, louça caindo - usando apenas a boca,
um bloco
de madeira e um leque. O público preenche as lacunas com a sua imaginação.
A ilustração de “kouji”
mostra como os sons
produzidos pelo artista
kouji conseguem criar
imagens vívidas nas
mentes do público.
Ao contrário dos seus antecessores imperiais, Hai não foi
preparado desde uma tenra idade para se tornar um mestre de kouji. Quando ele
ainda era
criança,
sentiu-se atraído pela imitação vocal puramente por diversão; a sua primeira
imitação foi de um galo na sua aldeia. Ele ri-se ao descrever
o seu
passatempo de imitar sotaques, como o do amolador, enganando os vizinhos que
saíam de casa segurando dezenas de facas só para descobrir
que não
havia ninguém na rua. Na escola, ele sentava-se ao lado da janela, ouvindo os
sons de fora e imitando-os, hábito ao qual os seus professores não achavam
piada nenhuma, especialmente quando se tratava da sirene de uma ambulância.
Foi
o programa de televisão, «Luo Sang Estuda Arte» (洛桑 学艺), que
plantou as sementes do sonho que Hai perseguiria nos próximos 20 anos
da sua
vida. Apresentado pelo virtuoso mestre kouji Luo Sang (洛桑) e pelo comediante Yin
Bolin (尹博林), o programa forneceu uma plataforma nacional à arte de kouji.
Transmitido desde 1993 até ao final de 1995, quando Luo Sang morreu num
acidente de automóvel aos 27 anos, o programa fez Hai Yang aperceber-se que era
possível fazer carreira de imitar sons, por mais que os seus professores
dissessem que seu talento era inútil e infantil.
“Quando
vi pela primeira vez Luo Sang a fazer a sua imitação de trompete e trombone,
não achei que os seus sons eram difíceis de produzir, nem
achava
que meu nível estava abaixo do dele”, lembra Hai, que tinha 14 anos naquela
altura.
Acreditando
que a morte de Luo Sang tinha criado uma vaga para a sua subida ao palco, Hai começou
a estudar o reportório de Luo Sang, na
esperança
de eventualmente viajar para o norte, para Pequim, aí encontrar o ex-parceiro de
Luo Sang, Bolin, e começar um novo show juntos. Na era pré-internet, porém, era
mais fácil falar de tais planos do que os executar.
Foi no
exército que Hai esteve próximo de se transformar num artista kouji a tempo
inteiro. Ele candidatou-se para a trupe de artes da sua região, mas ficou
surpreendido ao não ter sido escolhido na primeira ronda de entrevistas.
Determinado,
dirigiu-se sozinho ao prédio onde as selecções estavam a decorrer. Pondo-se à
frente da porta da sala, surpreendeu os líderes da trupe lá dentro ao “tocar” a
famosa banda sonora do filme de guerra francês “Adieu l'ami” (1968). Ele foi convidado
imediatamente a juntar-se à trupe, recebendo ordens para fazer as malas e
tratar das despedidas. Mas pouco depois de chegar à sua nova divisão, um jipe
chegou e trouxe-o de volta para a sua antiga divisão. Nesse momento ele soube o
motivo de ter sido deixado fora da lista de candidatos: o seu sargento estava
tentando
impedi-lo
de deixar sua divisão. Hai, como subordinado, não teve escolha senão aceitar.
Quatro
anos depois, outra tentativa foi frustrada pela mesma cadeia militar de
comando, e o desiludido Hai acabou por tornar-se um trabalhador de colarinho
branco em Pequim.
Anos mais
tarde, Hai ouviu falar de um famoso mestre kouji que fazia parte da Sociedade
Acrobática de Pequim, Niu Yuliang (牛玉亮). Através de uma combinação de favores e de sorte, Hai
conseguiu acesso a um evento da Sociedade onde Niu estaria presente. Seis meses
depois, ele tomou uma ausência injustificada do trabalho para poder assistir a
um ensaio que contava com a presença do velho mestre, que já passava dos 70
anos. Hai Yang ofereceu-se para ajudar o mestre a caminhar e a descer e subir
ao palco. Finalmente, aos 33 anos, Hai tornou-se aprendiz do velho mestre. Em
2014, Hai recebeu o título formal de "estudante" de Niu, entrando
numa linhagem de artistas que perdura à mais que 2.000 anos.
Mais de
20 anos depois de ter visto pela primeira vez “Luo Sang Estuda Arte”, Hai
começou a sua carreira como artista kouji. O tour da Sociedade
Acrobática pelos Estados Unidos levou kouji a lugares como o Kennedy Center, em
Washington D.C., onde Hai, de 36 anos, foi um sucesso, atraindo fãs que o
seguiam em todas as suas actuações na capital. Ele até recebeu elogios de Ivanka
Trump, filha de Donald Trump, que nomeou a actuação de Hai como uma das suas favoritas da festa do Ano Novo Lunar organizada pela Embaixada chinesa
em Washington. Enquanto trabalhava na pós-produção de “Wolf Warrior 2”, o
desempenho de Hai recebeu orientação da maior especialista de efeitos sonoros
da China, a amiga de Steven Spielberg, Wei Junhua.
Hai Yang (extrema direita), numa foto de grupo com Ivanka, a sua
filha Arabella e outros dois artistas
Hai diz
que tornar-se num mestre de kouji se baseia em 98% de esforço e 2% de sorte.
Todos os dias Hai explora todos os movimentos possíveis da sua boca e garganta,
todas as formas de inalação e exalação e todas as possíveis combinações de
sons. O essencial é dominar todas as variações dum som: Hai demonstra as suas
diferentes imitações de animais caninos, começando com o uivo dum lobo faminto,
terminando com o ganir dum cachorrinho deprimido.
Audio
- aqui:
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Hai está
agora preparando-se para assumir as responsabilidades do seu mestre, que fará
80 anos no ano que vem. Isso envolve aprender certas composições clássicas,
assim como encontrar novos sons que nunca tinham sido imitados antes, como o
xun (埙), um
antigo instrumento de sopro em forma de ovo, o bawu (巴乌)
instrumento tocado pelas minorias étnicas da província de Yunnan no sul da
China e até mesmo o canto estridente da ópera pequinesa.
“A
transmissão do kouji tem os seus limites, pois só pode ser transmitida
oralmente”, observa Hai, resumindo o desenvolvimento da arte usando o
ditado, 青黄不接 (“a safra antiga e a nova não se juntaram”). Hoje, há
apenas um punhado de artistas kouji treinados na China e cultivar novos
talentos não é fácil: ao contrário dos ginastas que atuam ao lado de Hai, os
artistas kouji atingem o nível de artista muito mais tarde, e só alcançam o
status de “mestres” após décadas de treino.
No
entanto, Hai tem começado a treinar alguns alunos e a sua crença no valor
intrínseco do kouji cresceu à medida que ele tem recebido mais acolhimento
positivo de públicos estrangeiros.
"Você
não precisa falar uma palavra de chinês para desfrutar da minha arte,” diz Hai,
imitando uma solene trombeta de um funeral militar.
“O Kouji
não tem fronteiras, tudo o que desejo é continuar a mostrar esta arte ao mundo
inteiro”, declara ele. Logo a seguir, exibe uma amostra da sua composição mais
recente, terminando como a sirene de ambulância que o punha de castigo quando
era criança.
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*Original em língua inglesa em:
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