Na semana passada, explorámos questões relativas
ao povo Joseonjok de Yanji, com foco especial na relação que eles têm com
a Coreia do Sul e com a China. Esta semana, desviamos o nosso olhar das duas
grandes etnias da cidade de Yanji, coreana e han, para podermos
concentrar-nos numa comunidade de imigrantes muito especial: os norte-coreanos
de Yanji. Sim, para quem não saiba, há muitos norte-coreanos, vivendo
tranquilamente fora das fronteiras do regime totalitário.
Pessoalmente, acho irónico
que só depois dos 20 anos é que tenha começado a aperceber-me como a Coreia do
Norte é incorrectamente caracterizada por muita da média americana, o
que naturalmente influencia a média portuguesa.
Antes, eu também fazia
parte da distribuição de informação falsa ou exagerada sobre este regime.
Ansioso por impressionar compatriotas portugueses, que nunca tinham
conhecido um luso-coreano, muitas conversas decorriam desta maneira:
"Ah, não és chinês?
Então esses olhos em bico vêm donde?" pergunta um bacano qualquer à frente
do Bar 148, fornecedor das cervejas de meio-litro mais baratas do Bairro Alto.
O tom dele é simpático, revela ignorância e ingenuidade, mas não tem conotação
racista.
"É porque a minha mãe
é coreana..."
"Do norte ou do
sul?" responde ele com um sorriso malandro.
Eu respondo-lhe com outro
sorriso, ainda maior. Tendo ouvido esta pergunta tantas vezes, a minha resposta
já estava bem ensaiada; era uma que dava para puxar mais conversa.
"Mas estás maluco ou
quê? Os do norte não podem sair do país, nem para viajar, quanto mais para
emigrar."
"A sério? Mas então o
que é que acontece se um deles tentar sair dali?" pergunta o meu ouvinte
de boca aberta.
"Quase de certeza, vai
ser apanhado, arrastado de volta para a Coreia do Norte, torturado e finalmente
fuzilado. Ás vezes a sua família recebe o mesmo castigo!"
"É pá, isso nem a PIDE
faria!"
E
assim prosseguia a conversa, uma exageração após outra, até eu
finalmente decidir alcançar os meus amigos que, entretanto se tinham
distanciado, fartos da minha tagarelice.
Proceder por
generalizações, a torto e a direito, é marca da estupidez, enquanto a
nuance é indício de maturidade e reflexão. Espero afastar-me da
primeira e aproximar-me da segunda; espero que a história verídica de
hoje vos motive a pesquisar mais acerca da Coreia da
Norte, a questionar as narrativas da televisão … até
mesmo a passar uma semana em Pyongyang. Tendo eu feito esta
mesma viagem, garanto-vos que ela é perfeitamente segura, o passaporte
português é visto lá com bons olhos.
Em Yanji, o Hotel Ryugyong
(류경호텔 / 柳京饭店)
não se esconde num qualquer beco. Não há nenhuma palavra-passe para
entrar, nem se vêm guardas armados. Parece orgulhoso
da sua identidade norte-coreana. "Pyongyang" (평양/平壤) encontra-se em
letras perfeitamente visíveis no letreiro.
Ao aproximar-me da porta
giratória do hotel vejo, através do vidro, uma moça jovem a sorrir-me. Contente
com esta recepção inicial, entro pela porta. A minha amigável anfitriã,
vestida de trajes tradicionais (hanbok), cumprimenta-me em coreano
e conduz-me para o segundo andar, onde se encontra o restaurante. A
clientela parece ser composta quase inteiramente por norte-coreanos, nota-se
apenas um casal chinês, uns turistas como eu.
A moça transfere-me para
uma camareira alta, de olhar frio, que me conduz a uma mesa,
rodeada por mesas onde estão instalados clientes norte-coreanos. Pergunto-lhe
em coreano que especialidades me recomenda. Sem parecer preocupada, ou
surpreendida com a minha pronúncia sul-coreana, responde-me: «massa de
Pyongyang, tortilha coreana, carne de pato grelhada». Decidi-me pela
opção mais barata e enquanto esperava, fui ouvindo os diálogos à minha volta,
na minha língua materna: … Negócios com chineses e com josondjok, queixas
sobre colegas, viagens de regresso a Pyongyang.
Estes norte-coreanos de
Yanji parecem ter desprezo pelos chineses e falta de confiança no
povo que partilha a mesma língua. Recordo ter ouvido uma conversa,
aproximadamente assim:
'Então, já fechaste o
negócio com aquela companhia de Tumen (uma cidade que faz fronteira com a
Coreia do Norte, a 50km de Yanji)?’ perguntou uma voz rouca, algo enfadada.
'Não sei o que está a
acontecer, irmão, mas aqueles djosonjok [nome dado aos cidadãos
chineses de etnia coreana] estão a demorar anos a finalizar o contrato...'
respondeu de forma educada a outra voz, mais nervosa.
'É difícil confiar nessa
gente...dizem que são coreanos, mas a verdade é que pensam como Han zu [a
etnia maioritária, constituindo 90% da população chinesa]; são
matreiros, não penses por um segundo que eles nos veem como irmãos,
ou o quer que seja. Se eles não soubessem falar chinês, garanto-te que
me mantinha bem afastado deles,' disse o mais idoso.
'Sim, precisamos deles mais
do que eles precisam de nós. O que dava jeito era ter uma dessas tradutoras
treinadas em Pyongyang para nos acompanhar nos negócios, estas miúdas daqui não
aprendem nada, passam o dia inteiro a falar coreano e a servir pessoas como
nós, o chinês que elas falam só dá para descrever os pratos e contar números,'
desabafou o mais jovem.
'Nem sonhes com isso, as
tradutoras são valiosas demais, o país precisa delas para o turismo, ou para
ajudar na comunicação do partido com estrangeiros, Pyongyang não as iria
desperdiçar em negócios pequenos, como o nosso;' o mais velho acendeu um
cigarro, dando grandes bafos que passavam por cima das nossas
cabeças. Continuei de costas viradas, a ouvir,
ocasionalmente fingindo que estava a falar em chinês ao
telefone, para eles não suspeitarem de mim.
'Se as cantoras lá de baixo
pudessem passar uns anos a estudar chinês, talvez nem fosse preciso pedir ajuda
a Pyongyang...' sugeriu o mais novo.
'Não sejas parvo! Achas que
eles nos deixariam fazer isso? Essas raparigas são filhas de gente poderosa do
partido, entendes? Achas que um general ou um ministro iria deixar a sua
filha subordinar-se a um negociante? Nunca na vida!' exclamou o
mais idoso, numa voz claramente enfadada.
'Sim; mas, se calhar, até
lhes fazia bem aprender chinês, pode ser útil no futuro, quem sabe...'
'Cala-te e não fales de
gente que nos pode trazer problemas.' disse o mais idoso friamente, parando de
falar durante alguns segundos, enquanto uma empregada de mesa passava por eles.
Acabada a
refeição fiquei a pensar: quem serão estas cantoras? Chamo a empregada,
que me informa que todas as noites há um concerto, depois do jantar, em
que atua um grupo de jovens muito belas, cheias de talento.
Pago a conta e desço,
encontrando a moça do sorriso esplendoroso, que me leva até uma sala grande.
Num palco iluminado por luzes holográficas fluorescentes, encontram-se
quatro mulheres, das mais belas que já alguma vez vi.
Parecem ter saído de um
conto de fadas; as suas saias são compridas, largas nas ancas, em tecido
reluzente diferindo entre elas apenas na cor dos vestidos e nos
instrumentos que cada uma toca. A de verde esmeralda empunha uma guitarra
eléctrica, a de azul um saxofone, a de amarelo claro uma flauta, e a de
cor-de-rosa um baixo eléctrico. As suas faces, perfeitamente maquilhadas,
emitem um brilho pálido; suas expressões serenas dão uma certa solenidade
à ocasião, como se isto não fosse meramente uma rotina diária, para ajudar à digestão
do jantar de uns quantos turistas.
Pouso a minha mala no chão,
com intenção de tirar a minha máquina fotográfica, mas reparo num cartaz
ao lado do palco, onde está escrito em caracteres grandes: "Proibido tirar
fotografias." Limito-me a aguardar o espectáculo sentado a uma das mesas
vazias. No outro lado da sala, um grupo de turistas chineses parece estar
entusiasmado com a actuação que se aproxima.
De repente, as luzes da
sala escurecem e o quarteto dá um passo em frente. Uma faz o sinal de «O.K.» e
a música de fundo começa a tocar.
A música não é nada
parecida com a que se ouve nos canais de rádio do Ocidente. Os temas são
clássicos e conservadores; as letras falam de paixão inocente entre dois
amantes, de nostalgia pela terra natal, e de tristeza pelos pais
envelhecerem.
Todas elas possuem vozes de
soprano, capazes de reproduzir o timbre de cantora de ópera. Mas não
há teatralidade nesta atuação; elas não se deixam levar pelas
emoções, mantendo sempre a mesma expressão serena e a coreografia sincronizada,
um joelho alternando com o outro, a dobrar ligeiramente para dentro, de acordo
com o ritmo da música. No fim de cada canção, elas trocam de posição no palco e
de instrumento, mostrando-se capazes de executar
peças com elevado grau de dificuldade.
Há uma perfeição mecânica
na sua rotina bem oleada, de tal maneira que, de cada vez que um
turista com um bouquet de flores sobe para o palco, obrigando uma
delas a forçar um sorriso e a pegar no fardo perfumado
e colocá-lo delicadamente num canto qualquer, o resto do grupo ajusta-se
automaticamente, ou cantando mais alto para compensar, ou deixando
a música de fundo tocar mais alguns segundos até ao próximo
compasso, recomeçando então ao mesmo tempo, sem um piscar de
olhos que seja.
Entediado, olho para trás.
Três empregadas de mesa, incluindo a moça do sorriso esplendoroso, estão
sentadas numa mesa ao fundo, ocupadas a compor flores em bouquets para venda
aos turistas. Ao lado delas, de pé, está o patrão do restaurante; um
norte-coreano de calças pretas e camisa formal cinzenta, com os botões apertados
até ao pescoço. Apesar dum corpo magro, a cara dele é larga e um pouco
espalmada, algo realçado pelo seu corte de cabelo, rapado nos lados, com um
bloco rectangular no topo. Observa a actuação de braços cruzados e sobrancelhas
franzidas, um olhar de avaliador, em vez de apreciador.
Tendo decidido que
tinha visto o suficiente, levanto-me e caminho em direcção à saída. O patrão
vai ao meu encontro, substituindo o seu ar sério por um sorriso artificial de
vendedor. Este matreiro, não sabendo falar chinês, só diz "xie
xie" mil vezes, ao mesmo tempo que gesticula com os dedos apontando
as flores. Aceno com a mão (gesto que significa "não", em
muitos países orientais) e faço cara de cansado, e ele afasta-se, retomando a
sua pose de inspector.
Antes que
eu chegue ás portas giratórias da saída do hotel, a moça de sorriso
esplendoroso de repente aparece-me à frente. Parece estar preocupada com a
minha saída.
"O patrão diz que parece não ter gostado do concerto; porquê?" pergunta com exagerada
curiosidade. Decido ser diplomático.
"Mas eu nunca disse
isso! Adorei, achei as cantoras tão bonitas, cantam muito bem também,"
respondi, com um sorriso artificial, como o do patrão.
"Então porque é que
não comprou flores?" perguntou ela num tom magoado, que parecia ser
genuíno.
"Mulheres como aquelas
quatro senhoras merecem que lhes ofereçam carros, não flores. Se eu não fosse
apenas um pobre estudante estrangeiro, de certeza que lhes comprava um,"
respondi, na esperança que isto fosse dar uma conclusão à conversa.
A moça franziu a
sobrancelha; não parece ter percebido o meu sentido do humor, mas aproveitei-me
do seu estado de confusão para finalmente sair do hotel Ryugyoung.
Atravessei a rua, chamei um
táxi usando a aplicação Didi e, ao fim de 2 minutos, um Audi A4
apareceu-me à frente. De dentro do carro, olhei uma última vez
para as portas giratórias. A moça ainda lá estava, seguindo-me com os olhos,
mas sem o sorriso esplendoroso ou a expressão amistosa, antes um olhar de
desconfiança.
Reflectindo no que tinha
feito, rapidamente tornou-se tudo muito óbvio: o Hotel Ryugyong é um dos
muitos estabelecimentos norte-coreanos na China vocacionados para gerar o
maior lucro possível, para benefício do regime de Pyongyang, que tem estado a
sofrer por causa das sanções impostas pelo Ocidente.
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