Definir o conceito torna-se
necessário, porque há uma série de equívocos em torno dos conceitos de língua e
de cultura.
Primeiro, a língua não é um
sistema fechado, é um sistema aberto e dinâmico. Historicamente as diversas
línguas evoluíram, derivaram de outras, por processos que evocam a evolução
biológica (em termos de analogia, claro).
Segundo, o complexo universo de uma língua não apenas se traduz numa sonoridade própria dos fonemas, das palavras, mas
também existem construções conceptuais que lhe são peculiares.
Existem línguas que não têm
determinados equivalentes semânticos, ou porque são realidades que não aparecem
na área de afirmação dessa língua, naturalmente, como por exemplo espécies
biológicas, ou tecnologicamente, como certos instrumentos agrícolas que não são
conhecidos/usados em dada região, ou mesmo ideologicamente, conceitos abstractos
que correspondem a uma forma de sentir ou de estar (por exemplo: «o fado»,
presente na cultura portuguesa e árabe, ou ainda, a «saudade», de tradução
difícil para qualquer outra língua). Isto acontece com todas as
línguas, de todas as latitudes e épocas, porque a língua é uma entidade viva,
mutável.
Porém, a língua é também sujeita
a colonização, a subjugação e a etnocídio.
Na era da globalização
capitalista, o inglês tornou-se uma espécie de «língua franca» universal, muito
mais universal do que o Latim, na Europa das luzes, de Londres a Moscovo.
Os Principia
de Newton foram editados em Latim, assim como os Colóquios dos Simples de
Garcia da Orta. Para se fazerem compreender a nível internacional, pelo pequeno
escol que tinha frequentado a universidade, os autores tinham de editar as suas
obras em Latim.
Actualmente, olhando superficialmente, pode-se julgar que o
Inglês tomou o lugar do Latim como língua erudita, visto que (quase) todos os
livros e sobretudo artigos originais de qualquer ramo científico, são editados
em Inglês, até por editoras não sediadas em países anglófonos.
Mas o efeito é
muito mais penetrante, pois levou à extinção de revistas científicas noutras
línguas. Desde há décadas que as (restantes) revistas científicas alemãs,
francesas, espanholas, etc. editam em Inglês, mantendo (algumas, apenas) um
breve resumo do artigo na língua «nativa». Estou a referir-me ao Alemão, Francês
ou Espanhol, que durante vários séculos foram também línguas com enorme
projecção nas ciências, tanto ou mais que o Inglês.
Portanto, aqui já vemos uma
vertente de imperialismo linguístico, cuja gravidade se menospreza, porém é
muito importante pois os novos conceitos e a evolução dos conteúdos
linguísticos, semânticos vão de par com a língua onde são veiculados.
Uma
língua que não tem os termos apropriados para exprimir uma dada realidade, vai
ser preterida no discurso escrito ou oral, formal ou informal.
É assim que várias línguas europeias se tornaram externas ao discurso científico,
sendo o inglês «científico» o jargão único em congressos. Isso
permite que se façam compreender entre si cientistas das mais diversas culturas.
Mas coloca-se uma situação de desigualdade formal: uma pessoa anglo-falante de nascença, ao iniciar-se neste ou
naquele ramo do saber científico ou tecnológico, não terá um problema
linguístico. No entanto, este problema estará presente, com maior ou menor acuidade, para todos
os de língua materna não inglesa: com efeito, a língua estrutura o pensamento de
modo profundo.
As estruturas linguísticas, a estrutura gramatical profunda, são
aprendidas desde o início da vida. O recém-nascido absorve os sons e reproduz
esses sons ainda antes de «saber falar». Quando aprende a falar, a estrutura gramatical é assumida implicitamente. Só muito mais tarde, caso seja
escolarizado, é que vai aprender formalmente a gramática da sua língua
materna, que já possuía intuitivamente, em larga medida.
A língua é
«biologicamente armazenada» ao nível de estruturas especiais do nosso córtex.
Nós pensamos
a nível profundo na língua materna, sonhamos na língua materna …
É portanto essencial poder-se
traduzir os conceitos para a nossa língua materna.
Saber-se traduzir os
conteúdos semânticos de uma língua erudita para linguagem vulgar, era absolutamente
natural nos séculos XVI-XVII-XVIII, em que o Latim era a língua erudita, pois não
se conversava em Latim, no dia-a-dia, todos usavam a língua comum.
Já em relação ao Inglês
científico, somos hoje incapazes de pensar em assuntos científicos, sem incluir
no discurso,
no nosso idioma, palavras anglo-saxónicas. A própria explicação dos conceitos
subjacentes a estes termos anglo-saxónicos, também acaba por ter expressão mais
fácil e «espontânea» em Inglês.
A língua materna, não
anglo-saxónica, encontra-se assim relegada para um estatuto secundário,
em muitos aspectos da cultura científica.
Mas não é apenas neste domínio
que as línguas estão a ser atacadas na sua essência.
Também se nota uma invasão do
Inglês como língua preferida na música pop, rock, rap, etc… a qual tem a
função de identificador de geração e factor de coesão dos adolescentes.
Assim é banal, nos adolescentes, observar-se a audição constante de
canções apenas em língua anglo-saxónica. Esta linguagem usada na cultura pop
e rock é muito empobrecida, em geral: não tem o requinte e a riqueza de
significados das letras dos anos da década de 1960 (Bob Dylan, os Beatles e
muitos outros, tinham letras de canções com qualidade poética elevada).
Sobretudo, as jovens gerações são «treinadas» a sentir e pensar noutra
língua que não é a sua própria.
Muitos jovens julgam terem-se apropriado
essa língua, mas a sua capacidade linguística está longe do nível de desempenho
médio de anglo-falantes da mesma idade e ano de escolaridade.
Na realidade,
a língua Inglesa é que se apropriou das suas mentes, pois
eles não conseguem exprimir-se em português, vernáculo ou popular,
mas julgam (erradamente) que estão a pensar, ou mesmo a sentir, em Inglês.
Esta colonização linguística nunca pode ser
dissociada da colonização mental e ideológica. Ela não deve
ser confundida com a capacidade de expressão num idioma estrangeiro, por alguém
que possui plena capacidade de se exprimir na sua língua autóctone.
Tal como no caso da língua
científica, nota-se que a total dominação do Inglês corrente, como língua da
indústria musical e de entretenimento, coloca línguas e culturas diferentes,
o português, o francês, o alemão, o espanhol, etc., numa postura marginal,
nos seus próprios países de origem.
Muitos grupos musicais – não anglo-saxónicos
- apenas compõem e cantam em Inglês. Muitos dos filmes ou dos vídeos, produzidos
em vários países, já não são falados na língua original desse país, são falados
em Inglês e depois dobrados, eventualmente, para essa língua. Dá-se um fenómeno
semelhante ao da cultura científica: para se ter audiência, para se vender, é
necessário escrever, falar, cantar em Inglês.
Este imperialismo cultural
pode considerar-se arma de dominação «suave» (o dito «soft power»), por
oposição ao bombardeio, à ocupação militar, etc. Porém, este imperialismo
linguístico viabiliza todas as restantes dominações e inviabiliza o desenvolvimento autónomo das culturas nacionais e
regionais.
O etnocídio actual tem
preocupado muitos filósofos, linguistas, especialistas da cultura e antropólogos de muitos
países, incluindo cientistas de países anglo-saxónicos, que vêem - com razão
– que esta extinção maciça de línguas e culturas é realmente um empobrecimento geral da
humanidade.
Todos saímos a perder desta perda de diversidade. Note-se que, com a
perda de uma língua, é também a perda de uma literatura, de um imaginário, das chaves para compreensão da música, das artes plásticas… tudo isso desaparece
ou fica apenas sob forma de objectos enigmáticos, a serem interpretados pelos arqueólogos.
Uma língua que desaparece, é um corpo de cultura que morre.
Podemos tentar perceber como funcionava tal corpo em vida, mas ele está irreversivelmente
morto. O fenómeno é grave, com certeza. Porém, não se imagina a mobilização das pessoas em
defesa das culturas, no mesmo grau que em defesa de espécies em vias de
extinção ou de ecossistemas em perigo.
No meu entender, não existe a Natureza, por um lado e a Cultura, por outro. Deveria pensar-se a Ecosfera como
incluindo a Noosfera, a esfera do saber e do conhecimento.
Esta Noosfera tem de ser protegida,
pois nós estamos – enquanto humanos- simultaneamente ancorados no mundo
dos objectos e das ideias. Trata-se de aplicar o mesmo critério, num e noutro caso, ao fim e ao cabo: Nenhuma
espécie/língua viva é mais ou menos importante que as outras, todas
desempenham um papel no ecossistema, todas são resultantes de uma longa
evolução.
Infelizmente, não existem
movimentos pujantes em defesa da vida cultural, das línguas em particular.
Porém, vemos que haveria todos os motivos para o fazer.
Isto deve ser radicalmente
separado de passadismos, de glorificações nacionalistas, ou reflexos xenófobos.
Mas também não devemos cair no provincianismo, na incapacidade de decidir em
nosso próprio benefício e do nosso povo e cultura.
A «excepção cultural» é uma
necessidade. Devia-se proibir ou restringir o uso de línguas estrangeiras na
publicidade (em cartaz, em anúncios da televisão, de rádio…); não se devia usar
termos estrangeiros em textos oficiais, em comunicações de entidades públicas,
em livros didácticos (excepto, se estes forem para ensino de língua estrangeira, obviamente). Devia-se ter imenso cuidado com a correcção – lexical, ortográfica e gramatical
– nos textos nos casos acima referidos e também na linguagem dos jornalistas e apresentadores na televisão, rádio…
O Inglês (ou outras línguas) tem
um lugar natural no nosso ensino. A literatura de qualidade em línguas estrangeiras
deveria ser promovida. Muito se deve fazer - e é justo que se faça - para difusão
de outros idiomas na nossa sociedade.
Mas devemos proteger a língua nativa, o Português. Isso
passa por uma atitude consciente de cultivar o nosso próprio idioma e de dar
relevo merecido aos criadores do passado e presente que o utilizam, sejam eles
eruditos ou populares.
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PS: Phil Butler apresenta uma ideia de noosfera que se deve ao Presidente Putin ou a alguém próximo. Vale a pena ler:
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