A história que nos é ensinada nas escolas, desde há gerações, segue uma vulgata marxista, o mesmo é dizer, que é algo ideológico.
No cerne dos preconceitos que enformam as gerações de estudantes formados após o 25 de Abril de 74, sobressai o de «revolução». Nenhum conceito poderia ser ensinado de modo mais confuso e mais ideológico. Fala-se de revolução a torto a direito. A propósito de golpes de Estado e outros derrubes mais ou menos violentos, em contradição com os sistemas políticos instituídos.
Mas, na verdade, não houve senão duas revoluções, no sentido marxista (sem ironia!): pois a teoria marxista acentua o facto de uma revolução implicar profundas modificações no modo de produção, por sua vez, transformando as relações sociais, em profundidade e de modo duradoiro. A partir da consolidação da nova ordem, muitos aspetos super estruturais das sociedades, ficam profundamente modificados.
Para se aderir a esta visão do que seja «a revolução», teremos necessariamente de excluir as «revoluções políticas», as mudanças políticas, mesmo que elas nos pareçam muito significativas. De facto, o que é apontado como «revoluções» não o foram, por certo; mas foram antes «epifenómenos» de algo que estava a agir em maior profundidade.
A «revolução francesa», por exemplo, foi o derrube de uma ordem monárquica mas, nem por isso foi a transformação radical da forma produtiva, nem sequer da dominância das classes. A transição da sociedade agrária para a sociedade industrial estava muito avançada quando, a 14 de Julho de 1798, um grupo de populares parisienses tomou a Bastilha. As relações de produção continuaram as mesmas, antes e depois da «revolução», não foi pelo facto de um certo número de cabeças rolarem, nem de propriedades, que antes pertenciam a aristocratas, passarem a pertencer a burgueses, que se modificou em profundidade a relação entre classes e nem sequer, ao nível do poder político. Note-se que os cargos políticos, já antes da chamada revolução, eram largamente ocupados por elementos da alta burguesia, os quais exerciam esses cargos no poder central e provincial do Estado, muitas vezes relacionado com o aparelho legislativo e de justiça. Mesmo nos altos postos das forças armadas, um campo supostamente reservado à nobreza, as classes não nobres iam progressivamente tomando conta de mais e mais postos. Não devemos ficar iludidos com o facto do monarca enobrecer um alto funcionário ou uma alta patente do exército; era uma forma de mostrar confiança nesse indivíduo e demonstrar que, servindo o reino, se podia ascender aos cargos e privilégios mais elevados, independentemente da sua origem social. Napoleão, auto- coroando-se de imperador dos franceses, apenas acentuou essa tendência, que já vinha de longe.
Não se encontra nenhum aspeto de fundo, que tenha modificado realmente a estrutura das relações sociais. Alguns burgueses tiveram oportunidade de enriquecer, tomando as propriedades das ordens religiosas. Note-se que, eles já pertenciam a extratos elevados da burguesia, quando compraram (por bem pouco!) os bens das ordens religiosas, postos à venda pelo Estado «revolucionário».
Poderíamos mostrar que ao longo do período napoleónico, contrariamente à mitologia, as classes populares (operários, artesãos, camponeses) não só ficaram subjugados pelos mesmos ou por outros senhores, como se acentuou a proletarização brutal. Foram colocadas pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e incluindo crianças, numa relação de dependência e precariedade, que se traduziu em miséria das classes populares urbanas. As pessoas esquecem - muitas vezes - a enorme sangria que foram as guerras revolucionárias e as napoleónicas a seguir, durante cerca de 25 anos, em várias partes da Europa. Foi um rasto de destruição, «a ferro e a fogo» desde Lisboa até Moscovo. Estas guerras foram forçar os restos de comunidades rurais, a migrar para as cidades, visto que as suas explorações agrícolas tinham sido devastadas.
Do ponto de vista estritamente político, após as guerras napoleónicas, reconstituiu-se rapidamente a aliança entre a alta burguesia e a aristocracia. Os governos das «monarquias constitucionais», que se formaram em quase toda a Europa, são o resultado disso. De fora, ficam elementos mais radicais, os republicanos, que continuaram a ser perseguidos: não houve «liberdade de imprensa», ou liberdade de qualquer espécie, durante largo período do século XIX, tanto em países onde houve movimentos enérgicos de apoio às «ideias revolucionárias», como nos que não se deixaram seduzir por elas.
Na verdade, o fenómeno político, as revoluções liberais, antiautoritárias, antimonárquicas, que houve ao longo do século XIX, são sobretudo o epifenómeno de uma profunda transformação na estrutura produtiva. A revolução industrial, que se tinha desenvolvido bem antes, desde o século XVIII, pelo menos, estava a transformar as relações entre classes em profundidade, mas de forma «silenciosa», não em consequência de qualquer proclamação de princípios «revolucionários». O que houve de revolucionário (sem aspas), ao nível da produção, foi a primeira mecanização, a utilização de máquinas a vapor, a concentração de trabalhadores em grandes manufaturas. Estes, eram frescamente saídos dos campos, onde seu trabalho deixou de ter viabilidade económica.
A concentração de proletários nos centros urbanos, por sua vez, obrigou à transformação das práticas agrícolas: a utilização de processos mecânicos, de adubagem, de tratamentos fitossanitários, produziram aumentos significativos da produtividade agrícola. Assim se criaram os excedentes que permitiam alimentar a massa humana cada vez maior, nas cidades industriais, utilizando muito menos braços em tarefas agrícolas.
Portanto, a revolução industrial é o grande motor das transformações. Estas, não se limitaram ao século XIX:
Obviamente, a «grande revolução russa» correspondeu à transformação do país essencialmente agrário, numa potência industrial moderna. Que esta transformação se tenha operado a partir de 1917 sob um governo despótico, totalitário, não impede que tal transformação tenha sido a função real, estrutural da «revolução russa». Os bolcheviques, para sua tomada de poder, souberam aproveitar a simpatia do campesinato e do proletariado citadino por determinadas ideias sociais, o socialismo, o comunismo e o anarquismo. Estes grupos foram instrumentalizados, por vezes esmagados, para realizar a transformação desejada pela «elite» soviética. Não esqueçamos a famosa fórmula de Lenine: «o comunismo, é os sovietes mais a eletrificação do país».
É estranho, mas os que se dizem marxistas não conseguem fazer leituras objetivas dos fenómenos sociais e políticos, quando neles estão envolvidos partidos e correntes «comunistas». A mesma incompreensão dos fenómenos leva certos «revolucionários auto-proclamados » a fazerem uma leitura totalmente errada do maoismo e do processo de emancipação da China, da sua passagem de uma sociedade atrasada, com características feudais, para uma grande potência industrial e tecnológica.
Nós -porém - não estamos bloqueados por preconceitos ideológicos. Temos um manancial de factos registados, pelo menos desde o início do século XIX, até hoje: não precisamos de distorcer a realidade, ou mesmo, de fabricar «narrativas convenientes», para convencer outros de que «temos razão», de que a nossa é que é «a linha justa», etc.
É necessário compreender que a revolução industrial continua, que não parou: não é como um comboio que parte dum ponto para chegar à estação de destino final. A revolução industrial tem vários episódios, continua a moldar a infraestrutura produtiva, a transformar as relações sociais, a condicionar a vida das nações e dos indivíduos e (como epifenómeno) segrega ideologias, que são como uma espécie de «secreção» que se desprende do tecido social, enquanto este vai sofrendo transformações.
A outra grande revolução na história da humanidade, é revolução agrária. Ela dura desde há cerca de 10 mil anos. No presente, também continua e as suas transformações estão interligadas com as transformações da revolução industrial. Talvez um dia escreva sobre a revolução agrária. De qualquer maneira, esta está tão ligada com o que se considera serem as primeiras civilizações, que seria necessário compulsar um número impressionante de dados, só para dar conta da origem e do desenvolvimento desta revolução agrária. É -praticamente- como fazer a história da humanidade, excetuando o longo período paleolítico.
Não poderei pretender, neste pequeno texto, fazer mais do que expressar o meu sentimento de estranheza, perante a «cegueira voluntária» dos que se assumem como sábios, como sabendo em profundidade as coisas, mas que cometem as mais grosseiras falhas de lógica, de bom-senso, para já não falar de método científico. Não poderei convencê-los de que eles estão errados. Estão num esfera religiosa, dentro dos seus casulos mentais, sem nenhuma abertura para a realidade...
Assim foi com a grande maioria dos que encontrei ao longo da minha vida. Não digo que alguns espíritos mais abertos, não consigam aperceber-se das falsidades que lhes andaram a contar durante boa parte da sua vida.
Mas, aos outros, que não estejam vinculados a essas falsas religiões, digo: vejam este escrito como uma chamada e atenção, um apelo ao vosso espírito crítico. Não é por algo ser proclamado por muita gente à vossa volta, que isso é «verdade», nem tão pouco, que seja verdade, a versão oficial, canónica da História, ensinada desde a escola primária à universidade!
Eu não pretendo ser detentor da verdade. Apenas tento equacionar os dados do problema ... claro que posso também me enganar, mas espero que o meu comportamento desinibido desencadeie nalguns o desejo de inquirirem estes assuntos por eles próprios.