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quarta-feira, 12 de julho de 2023

A DEGENERAÇÃO DOS VALORES LIBERAIS

 A subversão do status quo é feita do interior dos think tanks e das corporações, que governam o mundo capitalista ocidental. Este fenómeno faz curto-circuito a todos os valores, às construções teóricas e às crenças ou ideologias, que as pessoas das gerações mais antigas transportavam. 

                                 Imagem: George Washington na travessia do rio Delaware

Esta subversão não é uma evolução decorrente das transformações inevitáveis das sociedades humanas, sejam elas bruscas (golpes, revoluções) ou suaves (mudanças de maiorias eleitorais, etc.).  Trata-se antes duma engenharia social, fabricada para substituir o «consenso» social-democrático, o qual serviu como forma da aplacar os ventos de revolta, sobretudo na  segunda metade do século XX, com uma aspiração confusa mas inegável para o socialismo por parte das classes que não beneficiam da sociedade capitalista, mas também da juventude universitária, oriunda de meios não proletários na sua maioria, que  se opunha aos princípios da sociedade «burguesa», ao  regime capitalista e às guerras imperialistas e neocoloniais. Mas substituir esse «consenso social-democrata» por quê? 

Penso que os ideólogos e psicólogos ao serviço das corporações (alguns ocupando lugares em instituições académicas) conhecem profundamente a matéria-prima. Eles têm como função moldá-la (influenciar). Seu conhecimento profundo, em vez de ser posto ao serviço da libertação dos humanos em relação às cadeias físicas e psicológicas que os amarram, tem sido usado perversamente para conduzir as pessoas para onde eles (manipuladores) querem. Esta mão-de-obra especializada e geralmente bem paga, está no centro do complexo  que inclui as indústrias do entretenimento, da informação «de massas» e das universidades (hoje, centros de fabricação de conformismo).

É sabido que o mundo capitalista sofreu uma grande mutação na sequência do fim da «Guerra Fria nº1», os anos do globalismo «feliz», ou triunfante. Os anos 90 do século passado e a primeira década do século XXI, foram  ocasião de intensificação do capital financeiro, em detrimento dos Estados e do capitalismo industrial. Este último, foi subordinado ao capitalismo financeiro e, além disso, as infraestruturas (fábricas) foram desmontadas dos países capitalistas do centro, para serem implantadas nos países mais pobres da periferia da Ásia, América Latina e África. Este salto permitiu que as taxas de rendimento do capital fossem maximizadas, mas à custa da destruição do tecido industrial nos países tradicionais do capitalismo e da precarização e pauperização das classes trabalhadoras respetivas. Estas classes trabalhadoras tinham sido mantidas num estado de relativa satisfação, durante as chamadas «trinta gloriosas» - ou seja - nos trinta anos que sucederam ao fim da IIª Guerra Mundial. Neste período histórico, a progressão da URSS e dos países socialistas, incluindo países considerados do IIIº Mundo, como a Jugoslávia, Cuba e China Popular, exerceram uma grande atração nas classes laboriosas do mundo capitalista, que a propaganda anticomunista não conseguiu  neutralizar. Pelo contrário, quanto mais difamassem o «socialismo real», mais ele ganhava prestígio junto de muitos, incluindo a jovem geração, nascida no pós- IIª Guerra Mundial. Esta, habituou-se a ter como dado adquirido, o usufruto de condições de relativo bem-estar, decorrentes da elevada rentabilidade do capitalismo e da sua compreensão de que era do seu interesse dar condições de vida decentes à classe trabalhadora e, sobretudo, aos seus filhos. Chegou-se ao ponto que as pessoas tomavam como adquirido, que a geração dos filhos iria ter um bem-estar superior à dos pais; que iriam ter acesso ao ensino universitário, coisa quase exclusiva dos filhos da média e alta burguesia, apenas há uma geração atrás.  O sonho de evolução gradual para o socialismo, sem revolução, com progressiva igualização das classes sociais, revelou-se como uma utopia, quando a classe empresarial decidiu contra-atacar através da ideologia «neoliberal». Para derrotar a ideologia social-democrata e os respetivos partidos de governo na Europa Ocidental, fizeram uma campanha bem planificada de desconstrução das instituições que funcionavam razoavelmente nestes países capitalistas, mas que seguiam uma lógica de servir o público e não de criar lucro. Houve instituições parcial ou totalmente privatizadas (infraestruturas: eletricidade, água, estradas, serviços de saúde);  outras, postas em concorrência com instituições privadas (ex.: escolas públicas descapitalizadas, em concorrência com escolas privadas, recebendo subsídios do Estado); outras ainda foram extintas, ou tornadas residuais (ex.: programas de construção e gestão de habitação social).  

Nas esquerdas, não houve clarividência e sentido estratégico. Cedo se deu o retraimento da esquerda «clássica» (associada a lutas nas empresas, através de um sindicalismo classista); contestada por uma esquerda dita «festiva», dita também de «causas», como as lutas LGBT, o feminismo, alheado das suas raízes operárias históricas, a ecologia política (que não se pode confundir com Ecologia enquanto domínio científico) e outras «causas fraturantes».  De facto, foram fraturantes, mas no sentido de porem setores contra setores, dentro da mesma classe, e assim tornarem impossível ou inócua qualquer tentativa de levar a cabo um combate integrado contra a exploração capitalista. Não só os trabalhadores não compreenderam logo, na sua grande maioria, como estavam a ser manipulados, também as direções dos partidos e dos sindicatos operários, só tomaram consciência demasiado tarde. Tragicamente, durante decénios, para satisfazer uns e outros, em resultado de uma política cem por cento virada para conquistar votos e lugares nos parlamentos, essas direções foram incapazes de qualquer contra-ataque credível. 

Recentemente, os grupos marginalizados, como as segunda e terceira geração de emigrantes em França e noutros países europeus principalmente, protagonizaram revoltas, em geral na sequência de um assassinato, por um polícia, de um deles. 

Estes emigrantes - vindos de África principalmente - foram mantidos em ghettos, sujeitos a maior exploração e a trabalhos considerados «inferiores» e mal pagos, perante a classe trabalhadora dos países recetores, largamente indiferente, quando não hostil à sua vinda e estadia, de supostamente «invasores», não percebendo que estes emigrantes eram importados para  fazer pressão sobre a classe trabalhadora nacional. O resultado foi o crescimento avassalador de partidos de extrema-direita, que capitalizaram o descontentamento das classes cujo modo de vida estava a ser negativamente impactado pela emigração. Este estado de coisas foi mantido e diretamente encorajado pelos partidos de centro-direita e centro-esquerda, como representantes do grande capital, pois  eles assim tinham a classe operária desunida, ao contrário do que aconteceu em Maio-Junho de 68, em que a palavra de ordem era de solidariedade total com os emigrantes e participação destes, «ombro-a-ombro» com o operariado francês, nas greves.

A retórica do liberalismo mantém-se, fica bem nos discursos, mas o espírito é exatamente o mesmo que o dos «negreiros», os que - em vários países «brancos» - organizavam a escravatura e comércio dos escravos africanos, até bem dentro da segunda metade do século XIX. 

A mentalidade imperialista nunca foi tão virulenta como agora, pois a deseducação das camadas populares fez com que caíssem na propaganda estatal, nos vários países da OTAN. A «liberdade de imprensa» de agora, é a censura generalizada em redes sociais e sites da Internet. Esta censura parece-se mais com a da inquisição, contra os recalcitrantes e os livre pensadores e com a censura de Estado, nos séculos XIX e XX, contra correntes realmente revolucionárias.

Podia dizer-se que «a ditadura do capital não precisa de realizar a defesa genuína de qualquer liberdade, exceto da liberdade de comércio». Porém, mesmo esta, é logo renegada, abandonada, pelo uso e abuso das sanções (totalmente ilegais) que pretendem vergar regimes que não se submetem aos imperialistas, sanções cruéis porque resultam exclusivamente em sofrimento do povo. 

O que resta de liberalismo na Europa ou América do Norte, nos países que se auto classificam como «democracias»? Quase nada, ou mesmo nada. 

Note-se que os dirigentes desses regimes ditos democráticos, não têm feito senão imitar «ditaduras do proletariado», sob pretexto de segurança, de combater o terrorismo, de combater «as forças do mal». A vigilância generalizada existe em grande escala em Londres, por exemplo, onde é impossível atravessar o centro, sem se ser filmado uma centena de vezes, por câmaras de vigilância discretamente distribuídas por todo o espaço público. Mas, isso é verdade também em múltiplos outros domínios. Edward Snowden e outros, revelaram como a NSA (uma agência dos EUA) intercepta sistematicamente todas as comunicações da Internet e de telefonia móbil, para as armazenar e as selecionar quando conveniente, através de pesquisa por algoritmos, até chegar aos olhos de agentes. Isto não é exclusivo dos EUA; eles têm uma rede de espionagem dos cidadãos do mundo inteiro, onde participam Grã-Bretanha, Austrália, Canadá, Nova-Zelândia, além dos EUA.

Claro que muitas pessoas se deixam enredar pela propaganda, pelo medo, pela angústia de ser designado «inimigo», etc. Hoje em dia, tanto dentro dos EUA como fora,  em muitos países vassalos, as pessoas são perseguidas por suas opiniões, sejam elas «conservadoras» ou «revolucionárias».  A ilusão de liberdade é resultante da técnica seletiva usada para suprimir toda a dissidência. Não são já precisos «gulag» ou campos de concentração; não são precisas prisões políticas e câmaras de tortura. O Estado consegue controlar as massas através do medo e da ignorância

Os poucos que denunciam este novo totalitarismo, ou são calados pelas pressões económicas, como a exclusão do emprego, ou por difamações a cargo de uma autêntica classe inquisitorial (fact-checkers). Estes fazem-se passar por «jornalistas», mas apenas são mercenários. 

 Embora a hora seja sombria, o facto de se desenvolver um aparato tão complexo, poderoso e caro, para ocultar a verdade aos cidadãos, mostra que estes ainda detêm considerável poder, embora potencialmente apenas. Se eles começarem a usá-lo sistematicamente, auto-organizando-se fora dos padrões instituídos, o derrube das ditaduras com máscara de democracia não andará longe. 

terça-feira, 18 de abril de 2023

PORQUE NÃO SOU MARXISTA

 De facto, apenas «cri» nas teorias marxistas na adolescência. Já no início da idade adulta, colocava várias objeções pertinentes, em especial, às versões leninistas do marxismo. 

Com o meu afastamento da «religião» M-L (Marxista Leninista), pude ter abertura de espírito para ler clássicos da política, da economia política e da sociologia (secundariamente, pois eu estudava biologia, a minha maior paixão).

Devo dizer que conhecia bem as obras de Marx, Engels, Lenine, um pouco de Trotsky, de Mao e de outros. Muitos autores pró-marxistas eu li; também li muitos anti-marxistas, ou críticos das obras de Marx.

Foi importante para mim ler as obras críticas da ideologia marxista-leninista, de Dominique Lecourt, um filósofo francês. Também li outros autores. A hegemonia  do marxismo e das suas tendências ou correntes, era notória na minha geração. Mas, igualmente notória, a ignorância sobre o conteúdo concreto das obras dos que se idolatrava. 

Muito do que se passou (e passa) com o marxismo, faz-me pensar que, em termos sociológicos ou antropológicos, estamos perante uma religião sem Deus. Ou pior; que endeusaram «personalidades» dessa corrente política, sem o mínimo espírito crítico, mostrando assim que nem sequer o conteúdo objetivo das obras, tinham eles lido ou percebido. 

Hoje em dia, compreendo quais as razões psicológicas (mas não lógicas) do fascínio e adesão a tais teorias. É que elas abarcavam um todo: O «materialismo dialético» era uma explicação última e uma fórmula simples que permitia reivindicar o estatuto de cientificidade para uma teoria de dialética hegeliana, com pedaços de materialismo mecanicista

O século XIX, foi aquele em que se criou um culto da ciência. As pessoas acreditavam na «Ciência», acreditavam no papel libertador do ateísmo científico e  do mecanicismo. Foi este, o cocktail ideológico em que banharam as elites burguesas e os revolucionários, quase todos, oriundos da mesma burguesia ascendente ou triunfante.

Na verdade, tive o privilégio de estudar a fundo as ciências físicas e naturais. Não apenas a biologia, mas igualmente a física (em especial a termodinâmica), a química (também ao nível experimental), a ciência dos sistemas, etc.  A matematização dos modelos não me intimida; eu tive oportunidade de estudar muitos assuntos, que recorriam a modelos matematizados, da Biologia Populacional, à Teoria do Caos, aos Fractais...

Para mim, é evidente que o que se pensa ser a cientificidade da economia, em  especial, das teorias neokeynesianas e monetaristas,  deve-se ao uso de instrumentos matemáticos (por exemplo, os gráficos) mas sem assumirem ou explicitarem as enormes simplificações (o reducionismo) associadas. O não-iniciado fica impressionado com tanta matematização, do mesmo modo que fica impressionado com a matematização dos modelos da física, da química e mesmo da biologia. 

Mas, a quantificação e o tratamento dos dados em termos estatísticos ou usando outras metodologias é útil, sobretudo, para expor uma teoria. Estou a referir-me, obviamente, aos ramos do saber que não sejam diretamente «matemática», incluindo a «física matemática». Faz parte da estratégia de exposição nas ciências naturais, apresentar curvas e gráficos, em conferências ou em publicações científicas. Mas, na maior parte dos casos, as matemáticas têm uma função auxiliar.  

Em biologia, também se utiliza muito as matemáticas. Porém, o substrato último da biologia é experimental e continuará a sê-lo. Mais importante que a matemática, é a metodologia propriamente experimental utilizada, cujos dados podem ser traduzidos sob forma matemática, ou não. Os conteúdos das descobertas ou observações, podem ser descritos de diversas maneiras. Um excelente artigo na área de ciências biológicas pode nem sequer apresentar os resultados sob forma de dados estatísticos.

Esta longa digressão serve para nos precavermos da insistência de certos propagandistas, seja qual for a sua ideologia, em «citar» a Ciência, dizendo que  estão «baseados» na Ciência, ou algo deste género. É confrangedor ver como esta evidente aldrabice funciona: Pois a Ciência não tem nada que ver com seus pronunciamentos políticos; aliás, a «ciência nunca prova nada» (G. Bateson). O pior é que eles são seguidos por muitas pessoas, fascinadas com as aparências. Mas isto não é novo; já no século XIX, usavam o mesmo «disfarce», para melhor levar o auditório a aderir às suas teorias políticas.  

De facto, os verdadeiros cientistas, sobretudo os da ciência experimental, quer estejam no laboratório, ou em «atividade de campo», não têm hoje - nem jamais tiveram - grande interesse pelo marxismo; isso deveria surpreender os que aderem ainda à ideia de que o marxismo «se baseia na ciência», ou mesmo «que é uma teoria científica». 

Marx era um filósofo, Engels, filho dum industrial e Lenine, de família de professores primários. Eles tinham a ideologia «silenciosa» do cientismo da época;  imbuíram as suas políticas de «teorias ad oc», que «justificavam cientificamente» suas teses propriamente políticas. Eles conseguiram arrastar consigo uma parte da intelectualidade da época, pois o discurso deles parecia científico e isso impressionava muitos. Ainda hoje, alguns se deixam impressionar. Se lerem, por exemplo, a obra «Materialismo e Empiriocriticismo », compreenderão que se trata de uma obra panfletária de Lenine, que discorre sobre questões fundamentais da natureza da matéria, segundo as teorias em debate na época . Mas, Lenine não percebeu realmente o debate entre várias correntes da física, nem estava à altura de poder discutir os méritos e fraquezas de cada uma. É um exemplo interessante, pois mostra como questões científicas, foram abusivamente enquadradas na moldura ideológica do «materialismo dialético». Lenine atribuiu adjetivos de «progressista» ou de «reacionária», a tal ou tal teoria e aos cientistas a estas associados.

O mesmo processo, mas em mais trágico, pois muitos cientistas foram mortos ou deportados, passou-se com o decretar da genética como ciência «burguesa», por Estaline e seu protegido Lysenko. Foi importante, para a minha formação, ler a obra sobre Lysenkismo de Dominique Lecourt. É daquelas «lições» que nunca se esquecem. E se nos esquecermos, há líderes e sociedades que voltam a cair nos mesmos erros. O lysenkismo foi nos anos 30 do século XX na União Soviética do estalinismo triunfante. Infelizmente, viu-se um ressurgir recente daquele comportamento no mundo contemporâneo: A histeria «covidiana», desencadeada pelo poder, a campanha de violência difamatória contra as pessoas com espírito crítico, a «caça às bruxas», etc. 

No que toca à teoria política, propriamente dita, é um facto que não existe libertação ou emancipação, se a sociedade estiver sujeita a um governo totalitário, que se considera incumbido duma tarefa «messiânica». Um poder que fala em nome da classe operária, do proletariado, não se importando, porém, de o esmagar da maneira mais rude, de lhe retirar todos os meios legais de contestação. Uma pessoa medianamente instruída e que tenha convicções socialistas/comunistas irá naturalmente divergir da teoria política marxista leninista, perante a observação da «práxis» dos mesmos, quando alcançam o poder. 

Eu estive muito interessado nos primeiros socialistas que eram, quase todos, da vertente «não-autoritária»: William Godwin , Gracchus Babeuf, Charles Fourier, Pierre-Joseph Proudhon, e muitos outros, vilipendiados por Marx e marxistas de hoje, que continuam a repetir as difamações de ignorantes, contra esses pioneiros. Na verdade, o que os primeiros socialistas não-autoritários «descobriram», foi retomado e aperfeiçoado por várias gerações de socialistas libertários ou anarquistas, pioneiros em associações não baseadas no lucro e na desigualdade, que estiveram largamente envolvidos na criação e desenvolvimento dos sindicatos, que fundaram muitas cooperativas, etc. A difamação foi pôr-lhes um rótulo («socialistas utópicos») que não lhes corresponde, que os ridiculariza: Marx era costumeiro disso, em dar etiquetas falsas,  em relação a pessoas  que ele detestava. 

O século XXI tem demasiados desafios próprios, para as pessoas ficarem tomadas pela «paixão pelas coisas mortas». Eu quero com isso dizer que o passado, a história, não são para ignorar, mas também não se devem mitificar. Não se ignorem as realizações, as teorias e as reflexões dos séculos anteriores, mas deve pôr-se tudo isso num contexto apropriado. 

A intolerância e o fanatismo, em pessoas que se dizem socialistas é exatamente tão contraditória, como em pessoas que se afirmam cristãs. Aliás, o cristianismo é uma das fontes e das inspirações do socialismo - comunismo - anarquismo: desde a Reforma no século XVI, passando pelos movimentos sociais dos séculos XIX e XX, até aos movimentos de hoje. 

sábado, 31 de dezembro de 2022

A CRISE DA ESQUERDA E PORQUE ISSO É GRAVE PARA TODOS

 Neste fim de ano de 2022, gostaria de vos dar, senão uma perspetiva sorridente do ano que vem aí, pelo menos apresentar-vos alguma paisagem com uma nesga de céu azul de esperança. Mas, tal não será fácil de acontecer, pelo menos na transição de 2022 para 2023, apesar de que todos - subjetivamente - nos sentimos atraídos para o otimismo, nestas épocas. 

É difícil e penoso explicar-vos a enorme revolta que sinto, quando penso na evolução que o mundo está a tomar. Mas, após esse pensamento inicial, pergunto-me: «como é que chegámos aqui?». Qual o fio condutor que nos leva - durante estes anos todos - a chegar com a quase fatalidade da tragédia, ao estado presente do mundo e das nossas sociedades?

As raízes do mal presente são tão fundas, que preciso recuar no tempo (pelo menos) até aos alvores das democracias. Contrariamente ao que muitos podem pensar, as democracias na Europa e América do Norte, não se instauraram de uma vez, como resultado de uma «revolução». Foi um processo lento, com períodos muito conturbados, é certo, mas com a persistente vontade dos povos a serem representados ao nível das estruturas de poder. Qualquer que seja a democracia que daí decorreu, quer mais «parlamentar», quer mais «presidencial», todas elas se basearam no princípio da representação.

O princípio da representação, como fundamento de um Estado democrático, eis o que nos soa a natural, a óbvio. 

Porém, ao nível de grandes conjuntos populacionais, não existe nunca uma representação, sem que o processo ocorra através de representantes políticos eleitos. Então essa pedra-angular da representação (como diziam os revolucionários liberais americanos: não pode haver taxação sem representação) foi substituída por outro critério, muito menos transparente, que é o «princípio da eleição». 

Ora, como tenho várias vezes escrito neste blog e noutros locais, a representação é inevitavelmente falseada pelos mecanismos eleitorais, que dão peso - implicitamente - a quem tem mais poder económico. Os magnates «gostam» de entregar milhares ou milhões a partidos e seus candidatos, não porque estes tenham a sua simpatia ideológica. Mas, antes porque assim os têm «na mão». Ou seja, o partido ou candidato que «morder a mão que lhe dá de comer», já sabe que, na próxima eleição, não terá subsídios (meios de corrupção) para conseguir atender às importantes e inevitáveis despesas eleitorais. Não será eleito, porque a campanha de propaganda de seu(s) adversário(s) estava melhor subsidiada, portanto, as campanhas rivais «convenceram» o eleitorado, em detrimento da campanha do «partido ingrato».

Perante este esquema de corrupção estrutural, não existe verdadeira democracia, pois a representação do dinheiro (quem tem mais dólares, mais euros, etc. e que os podem investir nas campanhas) é quem inevitavelmente ganha. Não são mesmo necessárias grandes fraudes, ao nível da votação ou da contagem dos votos. Os partidos que compõem o leque parlamentar e sobretudo, o leque dos elegíveis para cargos de governo, acabam sempre por ser partidos em consonância com o sistema, mesmo que alguns tenham posturas radicais de direita ou de esquerda. 

O que se constata da história das democracias, é que não são poucos os casos históricos de partidos de esquerda que chegaram ao poder, para logo - ou passado pouco tempo - governarem, não em função da vontade dos seus eleitores (em geral, da classe trabalhadora e da burguesia mais modesta), mas dos interesses dos grandes capitalistas. Justificam estas viragens com o «interesse nacional», ou outra frase-feita, suficientemente vaga, para que não seja fácil demonstrar a  falácia.

A partir de certo ponto, que começou no início do século vinte, deu-se a rendição da social-democracia; eram partidos inicialmente revolucionários, que pretendiam derrubar o capitalismo e instaurar o  socialismo. Sucessivas ondas de (ditos) representantes do proletariado, nas democracias ditas liberais, tiveram o mesmo destino; iniciaram a sua atividade parlamentar como forças de «fora» do sistema, mas em pouco tempo integraram-se inteiramente na mecânica parlamentar. Quando vemos isto, podemos ficar desencorajados, pois é um mecanismo que não pode ser mudado facilmente; o mecanismo da cooptação é o que melhor garante a continuidade do status- quo.

Aquilo que se está a passar neste momento trágico na Ucrânia, é devido à rendição das diversas esquerdas, que jogaram o jogo do belicismo. Isto é válido em todos os países da Europa, incluindo claro, a Rússia. Mas, sobretudo, as forças mais poderosas da esquerda, as que se agrupam na chamada 2ª Internacional Socialista, que têm tido governos ou forças parlamentares de oposição fortes em praticamente todos os países da Europa ocidental, todas se alinharam com o belicismo: Marcharam todas integrando o desfile militar, a passo cadenciado, a mando dos que dominam, da oligarquia. Uma guerra, sobretudo destas dimensões (pan-europeia, na verdade), é sempre impulsionada pela ínfima minoria que explora e domina a maior parte da  riqueza criada e que tem manobrado os governos, através do seu controlo das finanças, da média, da corrupção dos partidos, dos peritos e especialistas. 

O dilema de uma força de esquerda parlamentar é, hoje, bastante claro: 

- Ou se retira da fantochada eleitoral e a breve trecho desaparece, como força organizada ao nível nacional, reduzindo-se à dimensão de «seita»; 

- Ou se mantém, mesmo que diga que o faz «criticamente», mas o seu objetivo acaba por ser a manutenção e expansão  da representação parlamentar, com o objetivo de vir a ser convidada e participar num governo de centro-esquerda. 

Não creio que possa existir uma «terceira» via, para partidos de esquerda, que escolheram a via de colaboração com o sistema. É esta a mensagem implícita que nos dão as suas estratégias e táticas, as suas tomadas de posição e declarações. Claro, não vão dizer ao eleitorado, largamente das classes mais pobres, «nós vamos continuar a política de centro-direita/centro esquerda» e «vocês devem votar em nós, porque nós somos os bons, os competentes, etc.» Claro que a sinceridade está fora do jogo do parlamentarismo. São enganadas muitas pessoas, convencidas de que a transição para o socialismo está ao virar  da esquina, bastando para isso votar nos partidos que têm advogado o socialismo. É dentro desta alienação que opera toda a esquerda parlamentar, hoje em dia.

Não quero deixar a impressão de que tenho uma saída - de curto prazo - para este problema. Não a tenho e confesso-o sem hesitar. 

Porém, a única forma de transformar a realidade política e social em profundidade é através da educação, é pela educação que as pessoas se tornam críticas, que são capazes de raciocinar e de estudar por si próprias, aprendendo não só aspetos «técnicos» dos assuntos, mas também as questões mais profundas. Uma educação verdadeira implica conhecimento, o estudo de livros e artigos sobre Filosofia, Política, Sociologia, Psicologia e História. É de constatar que a escola de hoje está muito longe de encorajar a independência de espírito. As pessoas que organizaram os curricula - desde curricula da escola primária até ao ensino superior- são pessoas da inteira confiança da classe dominante. A escola não é um corpo separado do resto da sociedade, mas é atravessado pelas contradições que nela se exprimem. Apesar disso, a educação, mesmo que não tenha sequer uma réstia de crítica ao poder dominante, é sempre perigosa para este, pois alguns filhos da classe oprimida, conseguem atingir um nível de compreensão aprofundada das matérias e destes, uns poucos, serão críticos da realidade social que se lhes depara. 

Concedo que um partido pudesse ser o veículo dessa educação independente,  não enfeudada a interesses de classe, que são os tipos de ensino dominantes nas escolas superiores e universidades, controladas por vários arautos da burguesia. Mas, a verdade é que este tipo de educação, muitas vezes, se limita a formar quadros do próprio partido. Assim, a educação popular, em todas as esferas da atividade não pode ser veiculada por qualquer partido, mesmo que este tenha as melhores intenções do mundo. Porém, organizações populares de base, não enfeudadas a nenhum partido, poderiam desempenhar um papel  muito mais relevante do que o fazem hoje: Cooperativas, associações populares, associações de vizinhança, sindicatos (não controlados por nenhum partido) etc., podem ser um bom terreno para a emergência duma cultura não-elitista, que proporcione as mesmas oportunidades a todos .  

Se o mundo sobreviver entretanto, talvez daqui a muitos anos haja uma transformação qualitativa nas sociedades e seja ultrapassada a etapa capitalista, em que nos encontramos. Parece-me afinal mais construtivo apontar para um objetivo longínquo mas realizável, do que insistir na fórmula vazia (corrompida e corruptora) do parlamentarismo. Os políticos «profissionais» de esquerda, que sabem isso melhor que ninguém, vivem do engano dos seus eleitores. 

Não é verdade que a «esquerda», por o ser, tenha uma qualquer vantagem moral sobre as formações políticas de direita, ou de centro. A mitificação da esquerda, como superior moralmente às outras forças, traduz-se numa autoilusão, numa alucinação mesmo (nalguns casos) de militantes de base sinceros; enquanto os outros, sobretudo dos escalões de topo e intermédios, têm sobretudo uma enorme sede de poder e não são de modo nenhum sinceros. 

Costumo dizer que a melhor maneira de nos corrigirmos, é olharmos para nós próprios e vermos realmente aquilo que nós fizemos de certo ou de errado. É uma autoanálise praticada pelos filósofos desde a antiguidade greco-romana, pelo menos. Também faz parte do ensinamento de muitas escolas filosóficas do Oriente: do Confucianismo, do Budismo Zen. Está igualmente presente no Cristianismo, no Judaísmo e no Alcorão. Em correntes leninistas e maoistas, encontramos apelos à «crítica e autocrítica»; encontramos semelhante apelo para a introspeção em filósofos influenciados pela psicanálise, ou em pós-modernistas. Podemos encontrar em muitas filosofias, não-europeias, este apelo; a própria «sabedoria das nações», repositório da  experiência multissecular dos povos, vai nesse sentido. Seria de esperar que tal fosse praticado pelo povo de esquerda também, ou seja, pelos que não se deixaram corromper e que não têm a soberba de achar que o mundo todo está errado, que eles é que estão certos.

Um bom ano de lutas para 2023!


Uma ilustração de humor satírico de William Banzai

                               https://www.zerohedge.com/news/2022-12-30/stay-woke

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Que teoria política para o nosso tempo?

[REFLEXÕES DE MANUEL BANET] 


- A igualdade não é uma fórmula quantitativa. A liberdade não é  um conceito abstrato. Ambas estão em íntima relação.

A retórica habitual dos atores da política centra-se muitas vezes nestes dois conceitos de «liberdade» e de «igualdade». Mas nós não devemos entrar numa discussão nos seus termos sofísticos. Por isso, digo que a liberdade não é um conceito abstrato. Entenda-se a afirmação anterior, quando estamos a construir um programa, com objetivos claros e com estratégias exequíveis. Politicamente, a liberdade só pode ser avaliada como uma propriedade ou característica relativa ao funcionamento do sistema político no seu todo e nas suas partes; e isto, «desce» até ao nível dos indivíduos. A liberdade nunca pode ser «concedida», é uma propriedade integral do sistema, o qual será tanto mais pleno de liberdade, quanto mais ou melhor se verificarem tais e tais condições, para os indivíduos e comunidades. 

Do mesmo modo como afirmo relativamente à liberdade, também a igualdade deve ser vista como uma característica sistémica, nunca se poderá ver em isolamento, nem tem sentido reclamá-la sem que se verifiquem as condições de liberdade para assegurá-la. Igualdade sem liberdade, não faz sentido. O inverso, liberdade sem igualdade, também não. Isto significa que todas as retóricas que se destinam a dar prioridade a uma em detrimento da outra, são discursos vazios, sem substância ou coerência lógica. Não podemos medir a igualdade, mas podemos avaliá-la: Ela traduz-se, no concreto, em igualdade de meios e condições materiais* de que usufruem os indivíduos, não apenas no plano dos direitos e deveres cívicos ou políticos, como nos restantes. «Igualdade», em termos de discussão política séria, não pode significar uniformidade, não pode significar uma repartição «igual» da riqueza. Além de que a tentativa de alcançar este objetivo é contrária à manutenção da liberdade dos indivíduos e comunidades, logicamente tal implicaria uma classe de burocratas, fosse qual fosse a ideologia afixada, encarregues de administrar essa tal «igualdade». Pode-se compreender que tal burocracia, inevitavelmente, terá o essencial do poder (e com as benesses que daí decorrem), enquanto todos os outros ficarão sem poder: Logo, não existirá nenhuma igualdade, mas o contrário**. 

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*Alguns usam a expressão «igualdade de oportunidades», mas eu penso que esta formulação é enganadora. Pode parecer que um filho de rico e um de pobre, têm as «mesmas oportunidades», se frequentarem a mesma escola: Na prática, isso não é assim. Por outro lado, alguém com um melhor desempenho na sua profissão que outros, não seria justo que lhe fossem recusadas maiores oportunidades para potenciar a sua formação, etc. devido a um princípio rígido «igualitário». 

**Perante a experiência longa e penosa do regime saído da revolução bolchevique e de todos os seus avatares que surgiram sobretudo no século XX e debruçando-me em profundidade  sobre essa história, cheguei à conclusão de que foi feita a demonstração pela prática e em tragédias terríveis para os povos em causa, do que afirmei sinteticamente acima.

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-Preservar o máximo de conectividade e de autonomia. 

Na natureza, verifica-se que seres vivos, populações e comunidades  perduram no ecossistema, graças às estratégias que desenvolveram ao longo da evolução e que lhes permitem um máximo de resiliência. Ora, esta resiliência numa espécie social, como é o caso da nossa, equivale a manter um relacionamento, que será sempre diferenciado, com os outros: A família, os colegas de trabalho, o grupo de amigos, etc. Note-se que uma das tragédias maiores do nosso tempo, é o paradoxo da abundância material ao nível social, enquanto se assiste a um isolamento cada vez maior do indivíduo: Em vez da partilha, o fechamento; em vez do convívio, o isolamento; em vez da comunicação, a agressão, etc. Muitos médicos e cientistas sociais sabem que, nas sociedades contemporâneas, as patologias mais frequentes são de natureza social na sua génese.

A autonomia dos indivíduos, dos grupos e das sociedades, não é a antítese da conectividade. Há mesmo um efeito de potenciação de ambas. Se pensarmos quem é mais autónomo, não são pessoas com menos conexões, pelo contrário. E o mesmo se poderá observar em conjuntos maiores: Em famílias, comunidades locais, regionais ou nacionais. A autonomia não deve ser confundida com autarcia: São posturas essencialmente diferentes, apesar do prefixo «auto» ser comum. A autonomia significa que o indivíduo ou grupo não está dependente, em qualquer aspeto vital, dos outros quer estes sejam indivíduos ou grupos. Mas, não significa que o ser autónomo rejeite o intercâmbio, a realização conjunta de projetos. Aliás, verifica-se no concreto que, quanto maior autonomia do indivíduo ou grupo, mais está disponível para se abrir aos outros, ao exterior. A atitude que se pode classificar de autarcia, implica a vontade de isolamento e a organização dos diferentes aspetos da vida para realizar e manter esse isolamento. Num indivíduo, corresponde com frequência a uma patologia, a um autismo. Numa sociedade, traduz-se na redução ao mínimo dos contactos com o exterior, quer nos planos das trocas comerciais e culturais, ou na circulação dos indivíduos, etc. Em geral, quando se pensa a independência em termos de Estado, de Nação, é no plano da autonomia dessa Nação, em relação a outra ou outras, que é entendida, não se está a pensar em alcançar um estado de autarcia.

- Gerir ao nível local o que é adequado ao nível local.

A sociedade de hoje é demasiado complexa para poder viver em autarcia. Esta ocorre "naturalmente" pelas circunstâncias em que se encontrem pequenos grupos, tribos ou etnias, muito isoladas da civilização: Por exemplo, nalgumas tribos da Amazônia. Mas, em sociedades complexas, existem demasiados patamares a ter em conta, o que tem provocado dois movimentos contrários: Ou uma tendência centralizadora, impondo as soluções de cima para baixo, do centro para a periferia; ou a solução de atribuir autonomia de decisão e correspondente responsabilidade aos atores de cada um desses patamares. No caso primeiro, assiste-se a um estreitar ou mesmo anular da autonomia e das liberdades, em grau maior ou menor, consoante a violência com que essa centralização é imposta. No segundo caso, é condição para a gestão do grupo e da sociedade, no respeito dos indivíduos e coletivos. Digo condição, apenas, porque para que se realize tal funcionamento, em qualquer dos patamares, é necessário que os atores estejam conscientes dos valores e treinados no debater e agir coletivamente. 

- Construção orgânica dos diversos patamares com metodologias comuns, mas âmbitos legais distintos

Se a organização da sociedade for erigida desde a base, sem imposições de uma elite que se coloca como a «representante» (na realidade, a proprietária) da população, os diversos patamares de organização têm de obedecer aos mesmos princípios gerais. É portanto inútil e mesmo prejudicial estar a especular sobre o concreto dessa organização social, o fundamental é haver, ao nível da população, um entendimento consensual do que sejam os princípios de uma boa governança. Esta «governança», por oposição a «governo», seria sinónima de linhas-guia relativas aos processos de tomada de decisão, de execução das medidas acordadas e de avaliação. Note-se que, aqui, não há apelo a uma utopia, seja ela qual for: As utopias deram demasiadas vezes em tragédias, na história da humanidade. Pelo contrário, a construção orgânica é anti -utópica: O que socialmente é construído, está em potência nos princípios gerais adotados pela sociedade. Não existe nenhum plano prévio, de como se deva organizar e gerir. São os próprios povos interessados, que se mobilizam, debatem e chegam a consenso sobre os caminhos a adotar nas diversas tarefas de construção de instituições. Quanto aos «âmbitos legais distintos»: Significa que determinado patamar tem competência legal para gerir uma determinada área geográfica, ou setor de atividade. Os princípios gerais devem ser adaptados, a cada um desses âmbitos, o que - evidentemente - deverá ser feito pela sociedade, não por um indivíduo ou grupo de indivíduos.

- Não ter pressa nas deliberações e ter preocupação na implementação das decisões

Muitas pessoas confundem rapidez, com eficiência. Isso é consequência duma sociedade em que ser-se servido imediatamente, segundo o seu capricho, tornou-se «exigência» das pessoas, que se acham no seu direito, sobretudo se têm dinheiro e poder. As deliberações entre iguais, têm de ser conduzidas com respeito por todos os intervenientes, seja qual for a metodologia utilizada no debate. Isto é lógico, pois se um ou alguns intervenientes no debate não são respeitados, então é evidente que não existe, ou deixou de existir, igualdade. A obsessão com a «eficácia» é - muitas vezes - uma forma de mascarar vontade de poder sobre os outros e sobre a sociedade. Os ditadores utilizam o argumento da eficácia para alargarem as medidas arbitrárias, para outorgarem mais poder a si próprios, etc. A eficácia é medida por aqueles que tomaram as decisões, fazendo pontualmente ou constantemente a avaliação do modo como estas são implementadas. Isto aplica-se em todas as esferas de atividades humanas coletivas e em todos os patamares de organização. Quem monitoriza a aplicação das decisões, detém uma parte importante do poder, senão mesmo todo o poder. Portanto, à decisão coletiva deve corresponder também a monitorização coletiva da sua aplicação. Num novo modo de organizar a política na sociedade, este aspeto deve ser tido em conta desde o princípio. Os processos de monitorização coletiva das decisões não devem ser estabelecidos a posteriori, mas concomitantemente à  tomada de decisão coletiva. O conceito-chave é de que a coletividade, seja a que nível for, tenha sempre o controlo do processo: tanto na etapa de discussão duma proposta ou resolução, como durante sua implementação, incluindo a sua monitorização e avaliação.  

- Guardar o realismo na avaliação das situações

No geral, as pessoas mais empenhadas são voluntariosas, tendem a tomar os seus desejos pela realidade. Isto é compreensível psicologicamente mas é prejudicial ao fim e ao cabo, em qualquer grupo ou coletivo, pois impede que aquilo que não está a correr bem, seja retificado. Sem crítica permanente, bem acolhida no debate, não relegada para as margens, o realismo não pode existir, na prática. Nas sociedades autoritárias, a ausência desse debate livre, a não aceitação do papel da crítica, vão conduzir - inexoravelmente - a decisões nefastas para a sociedade e até, por vezes, para o próprio poder instituído. Daí que as sociedades autoritárias sejam, ao contrário do que muitos pensam, menos estáveis do que as sociedades onde a crítica, a aceitação natural dos pontos de vista divergentes, sejam prática corrente.   

-Reconhecer que a atitude inteligente é sempre a de cooperação 

Nós - humanos - não teríamos qualquer hipótese de ter sobrevivido enquanto espécie, sem termos criado coletivamente um ambiente que se diferenciou progressivamente do ambiente natural. Este novo ambiente, humanizado, constituiu-se como um nicho dentro do ambiente natural, tornando possível a vida da sociedade humana. Nos processos fundamentais da evolução humana, a entreajuda tem um papel central. Não digo que não houvesse competição; reconheço que a competição - num certo grau- foi importante para a evolução tecnológica existir. Porém, é preciso desfazer de vez a crença numa versão deturpada e totalmente ideológica do darwinismo, imposta pela classe dominante. Com efeito, sua ideologia difusa, o «neoliberalismo», tem sido arauto de chavões como: Temos de aceitar que há sempre «vencedores e vencidos», no mundo natural e nas sociedades humanas; deve-se aceitar a «lei» de que são selecionados os mais aptos, os melhores, através da competição. Ao fim e ao cabo,  qualquer biólogo ambiental e mesmo, qualquer espírito esclarecido, pode aceitar a premissa de que a competição não só é positiva, como é essencial para a sobrevivência da sociedade. Mas, curiosamente, são os difusores desta ideologia neoliberal que - na prática - fazem tudo para eliminar os seus competidores, para erigir um sistema monopolista na economia e uma falsa competição na política. Em muitos países, os partidos concorrentes aos lugares de poder partem das mesmas premissas básicas, são difusores da mesma ideologia.

Nunca é demais sublinhar que as sociedades precisam da estabilidade. Que é a estabilidade que lhes permite inovar. As revoluções são, em regra geral, baseadas nalguma ideia de transformação profunda da sociedade, que seria absoluto dever levar-se a cabo. Esta ideia de revolução serve bem uma casta sequiosa de poder, seja qual for sua ideologia. Esta prepara-se cuidadosamente, muito tempo antes da revolução, antes das condições para tal revolução estarem maduras. O seu discurso oficial não revela suas intenções. Essencialmente, a casta quer dominar as massas, gerir a sociedade à sua maneira. O poder resultante da revolução é sempre, «por coincidência», o que favorece essa mesma casta, que a mantém no poder e a enriquece. Nalguns casos, consegue perpetuar os seus privilégios, até se tornarem hereditários, ou seja, uma classe à parte.

Pelos motivos acima, devemos difundir a pedagogia  de nos habituarmos a avaliar alguém, ou um partido, ou corrente, não pelo seu discurso, mas pela sua prática, por aquilo que fazem, não pelo que proclamam. Por exemplo, não basta que um grupo seja favorável à cooperação, em discurso. É preciso que a sua prática quotidiana, o seu modo de funcionamento interno, seu relacionamento com outros indivíduos ou grupos, sejam aplicações claras dos princípios de cooperação, de entreajuda, de troca igual, etc. Caso contrário, tal grupo, estará a construir um projeto de tomada de poder sobre a restante sociedade.

Não irei aqui fazer o elogio da cooperação, existem muitas obras que o fazem bem. Para mim parece-me algo evidente, que tem inúmeras vantagens sobre a competição egoísta, sobre a obsessão pela conquista do poder, etc. A minha intenção, neste curto texto de reflexão, foi de mostrar que as ideologias que exaltam o indivíduo acima e se necessário contra a sociedade, as que opõem bem-estar individual ao bem comum, como se estes fossem antagónicos, são - na realidade - o contrário do liberalismo genuíno, ou seja do liberalismo que surgiu no século XVIII, dos filósofos das luzes, e não do «liberalismo» que foi, depois disso, o estandarte ideológico da «política da canhoneira», levada a cabo pelo Império Britânico, ao qual sucedeu o Império Yankee.
No presente, de forma deliberada para falsear o debate, são excluídas, ou deturpadas até à caricatura, as formas de pensar as relações entre humanos, a política no sentido mais nobre da palavra: Nomeadamente, as correntes que preconizem a igualdade verdadeira (sem «igualitarismo»), a autonomia (que não significa «autarcia») e a cooperação (que não exclui, mas integra, a competição).
Se estas ideias tiverem uma significativa implantação nas sociedades contemporâneas ou, pelo menos, em segmentos destas, poderão demonstrar - pela prática - não apenas a sua viabilidade, como suas vantagens face ao modelo hierárquico, elitista, de exercer o poder.
É um problema difícil de resolver; não foi resolvido no passado, por muitos motivos, entre eles: A sabotagem de tais iniciativas, pelos poderes instituídos; a dificuldade dos próprios protagonistas das experiências de sociedade não-hierárquica, cooperativa e livre, em se desfazerem dos preconceitos ou erros conceptuais importados das sociedades das quais eram originários.

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Gostaria muito de receber as vossas críticas e opiniões sobre este texto. Ele tem apenas como função despoletar a discussão. Não tenho dúvidas de que qualquer dos pontos tratados foi apenas aflorado; que seria necessário desenvolver e argumentar muito mais as minhas teses.
Por outro lado, penso que só a reflexão coletiva e a discussão, podem proporcionar a maturação das ideias, a partir deste esboço. Esta atitude está em coerência com o espírito de cooperação, de entreajuda. Escrevam o que pensam na secção de comentários por debaixo deste texto ou enviem-me as vossas opiniões sob forma de e-mail, para: manuelbap2@gmail.com

Aguardo, com sincero interesse, as vossas reflexões!












terça-feira, 19 de abril de 2022

QUEM CONTROLA QUEM?



Quem costuma prestar atenção aos discursos políticos, ideológicos e mediáticos dominantes, sabe que nestas esferas se manufaturou - desde há longa data - um consenso: A democracia é um sistema que está inerentemente associado com a «liberdade» dos mercados, sendo uma heresia, sob o ponto de vista económico, mas político também, querer «regular» os mercados. Isso (regular os mercados) seria a marca das ideologias mais ou menos autoritárias, pondo dentro do mesmo saco os fascismos, incluindo o nazismo, as regulações social-democráticas ocorridas  após IIª Guerra Mundial no Ocidente e todos os socialismos autoritários, desde a União Soviética, os diversos regimes «comunistas», em vários continentes, até à China contemporânea, um híbrido de capitalismo/comunismo.
Esta visão do mundo, propriamente ideológica, é reafirmada por um montão de discursos, que confluem para afirmar essa tal inevitabilidade: ir contra a «liberdade» dos mercados, é estar a fragilizar - também - a liberdade política e a ordem social liberal.
Note-se que este discurso é apenas uma atualização dos ataques no século XIX, contra as correntes sociais e socialistas (o que incluía marxistas e fortes correntes anarquistas). Nesta fase, o capitalismo industrial triunfante parecia efetivamente ser um modo de produção cuja maior eficácia e produtividade eram inegáveis. Eram comuns os argumentos de que o capitalismo «não se dá bem» com ditaduras, que uma economia capitalista não se concebe sem concorrência e que a concorrência implica liberdade dos indivíduos, uma imprensa livre, etc., etc.
De facto, nas suas linhas fundamentais, os argumentos permanecem os mesmos. Porém, o próprio capitalismo não só envelheceu, como também se transformou, de tal modo que se pode legitimamente perguntar se algo do «livre mercado», ou se algo dum genuíno liberalismo, tanto económico como político, permanece nos países tidos como guardiães dos mercados livres e da democracia liberal. Estes, são os países «ocidentais», um conceito político, pois inclui países como o Japão, a Coreia do Sul, ou a Austrália, que não são geograficamente «ocidentais».
Curiosamente, as esquerdas liberais ou libertárias,  parlamentares ou extra- parlamentares, têm feito a mesma apologia dos mesmos «valores», apenas desejando a «limitação» dos grupos económicos muito grandes, apenas porque são muito grandes, deixando o resto na mesma. Quanto à sua formal e retórica aversão aos monopólios, tem origem em slogans dos anos 60 e 70, onde ainda havia um segmento significativo das esquerdas «ocidentais» que eram realmente anti- capitalistas, que punham em lugar central a luta de classes e a luta anti-imperialista. O que se vê, hoje, na «esquerda» é que as pessoas bem podem conservar uma auto- imagem «anti- capitalista», mas (infelizmente), a meu ver, ela não corresponde à realidade.
De resto, a «liberdade dos mercados» carece de qualquer razão profunda para se lutar por ela, não pode ser considerada um valor em si mesmo, a não ser que se ache justificado que a Grã-Bretanha tenha, em nome da liberdade de comércio, imposto o ópio e as guerras do ópio ao império da China, como se fosse direito inalienável do império Britânico, vender as mercadorias que quisesse, aonde quisesse e a quem quisesse. 
Pessoas que se dizem liberais hoje acham  frequentemente, que o capitalismo está a ser plenamente falseado pela existência dum ordenado mínimo, o qual impediria o mercado laboral de funcionar «em plena liberdade» e que os trabalhadores aceitem voluntariamente (sic!) trabalhar por salário abaixo do tal mínimo. O salário mínimo é acusado de falsear a concorrência, devido aos «pobres capitalistas ocidentais» serem confrontados com a produção a menor custo, noutras paragens, com salários mais baixos. Tudo isto são falácias, fáceis de desmontar!
Podia-se escrever um longo capítulo de exemplos, desses tais «valores neoliberais» contemporâneos. Penso que o leitor poderá facilmente perceber aonde quero chegar, mesmo sem multiplicar os exemplos: Trata-se de um exercício de hipocrisia, que mascara um racismo classista, vindo diretamente do setor capitalista mais reacionário e anti-humanista.
Esta corrente, tem hoje em dia um renovo: O neomalthusianismo é a ideologia que subjaz um complexo ideológico. Ouvem-se nomes diferentes como o transumanismo, o keynesianismo, o militarismo, mas eles são somente, afinal, «parágrafos diferentes do mesmo credo». Esta corrente floresce graças aos muito ricos e poderosos bilionários, que se colocam como patronos ou benfeitores «humanitários» e «aconselham» governos e outros, servindo-se de «fórums», como o de Davos, controlando quer a «media de massas» tradicional, quer os novos instrumentos mediáticos da Internet (Twitter, Facebook, Google, etc...) .
O nível extremo deste poder de controlo revela-se nas instâncias internacionais. Elas não deveriam estar submetidas à pressão de financiadores privados, como acontece no caso da OMS. É conhecido que o financiamento maior da OMS provém da Fundação Bill Gates, sendo também muito grande a contribuição das grandes farmacêuticas. A OMS deveria escapar a tal sujeição, funcionar apenas como agência da ONU, tendo só contribuições dos diversos países membros.
Quando interesses privados, de um modo insidioso, com a colaboração de Estados, se imiscuem na gestão de aspetos da vida que deveriam ser públicos, obtém-se uma rede de interesses muito fortes, as chamadas «parcerias público-privadas». Estas, nada mais são do que estruturas para impor um regime de monopólio em setores inteiros da economia, portanto, a negação total da «livre concorrência». Pense-se em Portugal: No setor energético (EDP, GALP, GDP etc.), no setor das autoestradas (BRISA), no setor das comunicações e media (NÓS, MEO, jornais de grande tiragem e grupos de imprensa, além de copropriedade com o Estado, vivem de subsídios estatais), nas empresas de transportes (a TAP e muitas outras). Na educação, as universidades «privadas» são, na verdade, parcerias com o Estado, tal como os colégios (da primeira infância, ao fim do secundário), viáveis somente devido aos constantes subsídios e ajudas diversas do Estado.
As parcerias público- privadas, tão do agrado da classe capitalista, como da corrompida classe política, são - nada mais, nada menos - que monopólios de renda, para os interesses capitalistas privados. O Estado fica - de facto - como garante da viabilidade económica destas estruturas. O apoio que ele (Estado) presta, pode ser direto: Como foi o caso, para salvar bancos privados, como o BES e outros. Em Portugal, os contribuintes, defraudados pelo Estado que governa «em nome deles», são quem desembolsa os milhões para cobrir as perdas dum banco americano («Lone Star»), que adquiriu, em condições de privilégio inéditas, o «Novo Banco» resultante do falido BES (Banco Espírito Santo).
Aquilo que se observa em Portugal é igual, em mais grotesco, ao que ocorre em países mais fortes, como os EUA, a Alemanha, a França, etc...
Estas relações são de tipo ternário:
- O Estado faz reféns os cidadãos, obrigando-os a contribuir com seus rendimentos (o imposto sobre rendimentos), com contribuições obrigatórias (para segurança social, etc.) e com os impostos diretos (IVA, etc.).
- As grandes empresas conseguem dominar o mercado, um domínio em monopólio ou oligopólio (duas ou três empresas num setor, «ditas concorrentes»). Isto é obtido mediante toda a panóplia de instrumentos e táticas, que incluem a absorção de concorrentes mais fracos, a exclusão dos potenciais concorrentes, incluindo a sua sabotagem, a utilização de conivências instaladas no aparelho de Estado, etc.
- As empresas monopólios ou oligopólios, estabelecem com o Estado, diretamente ou através de empresas e instituições estatais, acordos de parceria. Estes, além de reforçarem as suas posições de mercado, dão-lhes acesso a fonte de financiamento seguro, à garantia de salvamento, mesmo perante erros da gestão empresarial, etc.
Pode-se dizer que estas parcerias reúnem todas as vantagens dos sistemas privados e todas as dos públicos mas, para maior vantagem dos privados, sobre as estruturas públicas. Com efeito:
Podem exercer a sua atividade, seguindo apenas as regras do mercado; podem ser cotadas em bolsa; podem negociar acordos salariais e outros dentro da empresa; não estão sujeitas a seguir critérios definidos pelo governo, seja para promoções ou concursos externos de pessoal, como nas empresas públicas; podem sobretudo distribuir os lucros obtidos pela empresa, entre os acionistas e membros de topo da gestão.
Mas, têm as vantagens dum investimento público, como: A possibilidade do Estado investir diretamente com dinheiro público, ou com dívida pública (que os contribuintes terão de pagar futuramente); têm a garantia do Estado para qualquer empréstimo que façam; têm acesso às redes de influência e de poder, sobretudo. Esta simbiose permite-lhes estar por dentro do poder político qualquer que ele seja, sem parecer.

Geralmente, os media estão cheios de notícias que desencadeiam um reflexo «visceral» nos seus leitores/auditores: esta gestão das emoções é monitorizada cientificamente, por cientistas comportamentais, psicólogos, sociólogos, antropólogos, etc. «que venderam a alma ao diabo».
Não são os únicos, pois nas universidades, em particular, abunda esta espécie, que se reveste dos louros académicos para viver como parasita da democracia. Estas pessoas são compradas, ou melhor, são apropriadas. Estamos a falar do funcionamento de instituições com potencial para influir na opinião pública, tais como a media de massas, o ensino superior, os corpos de elite do Estado, as instituições de investigação (estatais ou privadas).
É impossível alguém não-conforme com a ortodoxia permanecer nestas instituições durante muito tempo, pois seria marginalizado e finalmente expulso, se levantasse frequentemente a voz para afirmar algo desagradável aos seus patrões. Também, não há grandes hipóteses de tal vir a ocorrer, pois os candidatos são sujeitos a uma seleção que privilegia a conformidade, em detrimento da criatividade e originalidade. No processo de seleção, uma pessoa que sai fora dos cânones aceites e desejados, até  poderá ser dotada de inteligência e  capacidade criativa acima dos outros concorrentes. Mas, os que selecionam os candidatos não vão selecionar essa tal pessoa, porque têm de escolher alguém que «encaixe» no perfil traçado.

No conjunto, as sociedades ditas de «democracia ocidental» vivem numa espécie de teatro ou de simulação permanente. Ai de quem se atreva a dizer «o rei vai nu!»
As circunstâncias delineadas nos parágrafos acima, não são as únicas em que ocorre uma ficção de «concorrência». Todo o conjunto da sociedade é atravessado pela mesma corrução intrínseca, pela mesma hipocrisia institucionalizada, pela supressão dos mecanismos de controlo popular. É preciso compreender que o poder sobre os indivíduos, implica um controlo, mandar nas pessoas, forçá-las a conformarem-se com as normas (sobretudo, as não escritas) e, por estes meios, manter as hierarquias de poder em todo o tecido social, sem as quais (segundo eles) a sociedade dita «civilizada» não poderia subsistir. Sem hierarquia, tudo cairia no caos, na anarquia. 
De facto, a «civilização» deles, é realmente sinónimo de violência e de caos, sobre os pobres, os destituídos, os excluídos. O «socialismo para a elite e escravatura do capital para os servos», é o verdadeiro mote da sociedade que eles querem implantar (Great Reset), conservando apenas a retórica da «democracia liberal». Mas, isto nunca é patente, antes é sempre ocultado pelo poder!

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

WAGNER E O NAZISMO

Estas notas são um comentário após leitura do muito bem documentado ensaio de Brenton Sanderson: 

Evil Genius - Constructing  Wagner As Moral Pariah


Aprecia o belo, naquilo que ele tem de mais espiritual.

Despreza a pequenez, a necessidade dos medíocres em rebaixar o génio humano, de o transportar para a trivialidade de suas paixões «de cozinha». 

Como sabemos, existem inúmeras obras-primas da escultura, arquitetura, ou doutras artes, das quais não sabemos - nem teremos jamais conhecimento -  sobre quem as fez, muito menos que vida levou e quais os seus pensamentos. Mas, nós apreciámo-las sem nos preocupar com outra coisa senão com a estética. 

Por que motivo, temos de apensar o cunho, o ferrete, de uma ideologia, às obras de autores que viveram em tempos não muito recuados? 

Sabemos muitos detalhes biográficos sobre artistas que viveram há duzentos anos, ou há menos tempo. É natural que muito tenha permanecido, que os eruditos tenham conseguido desenterrar vários documentos sobre génios ou talentos celebrados. 

Temos curiosidade em conhecer as biografias dos nossos compositores preferidos. Construímos uma imagem das personalidades que estiveram na origem das obras-primas que mais apreciamos. Não são imagens reais; são apenas imagens que satisfazem os estereótipos, que permitem reforçar o mito em torno de tal ou tal artista. 

Através de tais biografias, os seus autores contemporâneos (ou não), dos artistas cuja vida eles descrevem, vão tentar moldar os acontecimentos para se coadunarem melhor com a imagem que eles próprios possuem dos tais ídolos. 

Também surgem casos de personagens biografados, quase sempre, de um modo negativo. Um caso extremo, é o de Wagner e do seu (real) antissemitismo

«Hitler foi o grande inspirador de Wagner» seria tentado a dizer ironicamente, para caracterizar as inúmeras biografias que enfatizam Wagner como um «precursor» do nazismo. 

Nada mais idiota, não mostram uma mínima compreensão da ideologia antissemita, tão disseminada e tão evidente, em grande parte dos meios intelectuais e de elite no século XIX. É um anacronismo absurdo, um erro crasso, se nós quisermos acreditar na boa-fé dos autores. 

Porém, tal não é possível, na verdade. Não podemos ingenuamente «perdoar» os tais críticos. Pois, realmente, para estes, trata-se de afirmar o «politicamente correto» de uma forma  bem pouco arriscada, indo ao encontro do preconceito, reforçando-o. 

Por exemplo, que a música de Wagner era «adorada» pelos nazis, é falso, totalmente. E depois, mesmo que tal fosse o caso, que culpa teria Wagner disso, tendo ele vivido no século XIX e morrido em 1883? 

Aquilo que me cansa é a constante etiquetagem que outros fazem e as pessoas aceitam como sendo «cultura», quando afinal não é mais do que transposição de preconceitos, ódios e amores, frustrações e desejos, pessoais do próprio crítico, para o campo da crítica de arte. 

As opiniões de certos críticos sobre tal ou tal artista do passado ou presente, são muito reveladoras, mas da personalidade de quem emite estes juízos críticos!

Eu adoro Wagner, em particular, as canções a Wesendonck , a abertura da ópera de «Die fliegende Hollaender/ The Flying Dutchman» e o prelúdio a «Tristão e Isolda»

Isso faz de mim, um nazi? Só totalitários, afinal (quaisquer que sejam as ideologias que afixem) podem pensar tal coisa!

sábado, 12 de setembro de 2020

AS DERIVAS SEMÂNTICAS DA PALAVRA «LIBERAL»

 


A História escreve-se com palavras. Estas palavras significam conceitos. Porém, estes conceitos evoluem ao longo do tempo, sendo impossível fixar - como fazem os dicionários e as mentes obtusas - uma definição de uma qualquer palavra, de uma vez por todas, qualquer que seja o contexto histórico, político, cultural, etc.

O caso da palavra «liberal» é interessante. Esta palavra designou, sobretudo no Renascimento, alguém - como um príncipe - que era generoso, um patrono dos artistas, que gostava de dar festas, etc. Aliás, usava-se - ainda há pouco tempo - a expressão «gastar com liberalidade», ou seja, de maneira não-comedida, sem olhar às quantias largadas, como sinónimo de «esbanjar».

Depois, veio a época da luta contra o Absolutismo, uma realeza que não aceitava partilhar o poder, de forma alguma; que se considerava directamente ungida - por Deus - na missão de governar e não iria tolerar que alguém, fosse quem fosse, interferisse com as suas decisões ou, mesmo, somente as criticasse. Esta luta, que durou dois séculos, viu o conceito de liberdade surgir como reivindicação da plebe, depois de ter sido mote das pessoas da alta burguesia e de muita aristocracia, que se consideravam amesquinhadas na sua dignidade de seres humanos, por lhes ser negado aquilo que veio a ser incorporado nas constituições como «liberdades e direitos fundamentais»: a liberdade de expressão, o direito a igual tratamento pelos tribunais, etc. Neste contexto, o da Revolução Americana e das Luzes, o significado de "liberal" era naturalmente aquele que adoptava um ponto de vista anti-absolutista, que considerava que os humanos tinham um natural e intrínseco direito a serem livres.

Com as lutas liberais, cresceu também a força da burguesia. Esta, antes de ter a força política (a partir do final do século XVIII), tinha força como classe económica. Questões do comércio, dos mercados, da banca, da indústria, eram com ela. A sua ideologia considerava que era absolutamente necessária uma liberdade de comércio, que proteger o mercado nacional, impedindo ou dificultando a importação dos produtos, que pudessem competir com os nacionais, era «intolerável». Os que consideravam tal «liberdade do comércio» absolutamente essencial,  também se auto-designavam como «liberais». No entanto, muitas vezes, eram os mais contrários à liberdade do povo em se auto-organizar, em construir partidos e sindicatos independentes, etc. 

O liberalismo, mais tarde, surge como eufemismo, para designar forças que advogavam o domínio, sem partilha, do capital sobre o trabalho, como se não fosse anti-liberal (no sentido original do termo) proibir reuniões e a expressão das ideias dos trabalhadores, dos operários. Estes ditos liberais não tinham qualquer prurido em reprimir greves reivindicativas dos trabalhadores. 

O chamado neo-liberalismo, com seu cortejo de ideólogos globalistas, afirmou-se mais recentemente. Corresponde ao capitalismo tardio, em que os monopólios estão ao comando, não somente dos mercados, como das próprias políticas estatais. Observa-se o triunfo desta ideologia, a partir da presidência de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher no Reino Unido, no final da década de 1970. O neo-liberalismo é uma reacção, no seio da classe possidente, à época «social-democrática», que predominou sobretudo na América e na Europa Ocidental, durante a fase de reconstrução, após a IIª Guerra Mundial.

Também existe uma clivagem no significado do termo, de um lado e de outro do Atlântico: Nos EUA, «liberal» significa - muitas vezes - o que os europeus designam como «de esquerda» ou «progressista». No discurso político institucional americano, «socialismo» tem uma conotação negativa. Na sua mentalidade, «esquerda» e «esquerdismo», também, na medida em que - sobretudo na Europa -  têm forte conotação com ideologias de radicalismo social (socialismo, social-democracia, comunismo, anarquismo...). Inventaram então uma designação «edulcorada», para aqueles cujo comportamento se inclina mais para a esquerda, por vezes em termos sociais, apenas: Por exemplo, uma pessoa que seja favorável à legalização do aborto; ou alguém que é crítico do comportamento das grandes corporações, em relação aos consumidores, aos seus próprios trabalhadores, ou ao ambiente, etc, etc. 

Mas, os EUA, também é o país do «politicamente correcto», pelo que os chamados «liberals» - nos EUA - não têm pejo em lançar o anátema contra as pessoas com ideias conservadoras ou, simplesmente, diferentes das suas, em aspectos da vida, desde a sexualidade, à religião, passando pelas doutrinas económicas ... ou seja, pessoas que estão somente a exercer o livre direito de exprimir sua opinião.

Este pequeno apanhado deixa de fora alguns usos da palavra «liberal». 

Eu quis apenas sublinhar a ambiguidade do discurso, mormente político, na utilização do termo. Assim, pode alguém estar a usar o termo num sentido e este ser interpretado noutro. Alguns políticos procuram até esta ambiguidade, para «agradar a gregos e troianos».


  


sábado, 30 de novembro de 2019

ATACAR A FONTE E NÃO O CONTEÚDO: A FALÁCIA MAIS COMUM

                            


No  recente artigo da jornalista independente Caitlin Johnstone,  é dissecada aquela que -porventura- será a falácia mais comum, ou seja, um argumento que, não sendo válido, é apresentado como sendo, numa discussão. Se eu digo que «determinada informação ou opinião é inválida porque foi proferida por X (sendo X uma pessoa, ou uma entidade)» estou, na realidade a fugir a analisar e discutir o conteúdo dessa mesma informação ou opinião, estou desviando a atenção para um julgamento de valor sobre o emissor da mesma: neste exemplo, descreveria X como alguém 'com interesse em fazer a propaganda de um dado ponto de vista', ou X como alguém 'sem qualificações para emitir juízos sobre a matéria em causa', etc...
Este tipo de falácia chama-se «ad hominem», porque vai argumentar contra o emissor da opinião ou argumento, não contra o seu conteúdo. Não precisa ser um insulto, propriamente, pode ser uma recusa simples de discutir algo, só porque vem de determinada pessoa, de determinada fonte, de certo jornal, de certa corrente partidária, etc.
Na realidade, os políticos e as pessoas que passam por opinadores, especialmente neste Portugalzinho de «brandos» costumes,  estão constantemente a fazer esse erro, a cometer esta falácia. Assim, costumam «argumentar», perante a opinião contrária, simplesmente emitindo um juízo de valor sobre quem (a pessoa ou a instituição) a emite: um apontar a dedo, que eles esperam fazer passar por argumento junto dum público apressado e pouco esclarecido nestes «truques». Assim, eles dão, a um certo número na audiência, a ilusão de que estão a debater a sério, seja que assunto for. 
Como aconselha Caitlin Johnstone, a réplica a este tipo de ataques, não consiste em fazer como quem nos ataca desta forma, mas antes desmontar a falácia. 
Mas é necessário que o público, não só os protagonistas, esteja consciente do seguinte: 
Certas pessoas ou entidades, ao fazer passar por argumento, aquilo que na realidade é um ataque «ad hominem» estão a ser extremamente autoritárias, estão a desprezar o outro (como se alguém não tivesse direito a ter seus próprios pontos de vista) e a desprezar a audiência, o público. Com efeito, quem faz esse tipo de falácia nos debates, julga que o público é tão ignorante ou estúpido que engole estas acrobacias verbais, como se fossem argumentos reais e com interesse para o tema em debate.
Nota-se este comportamento em todo o espectro político e ideológico. Nota-se nos canais de media «mainstream» e também, em canais de media «alternativos». 
O facto de ser tão banal, torna esta falácia ainda mais perigosa, pois ela surge como «natural», como «pecadilho». 
Na verdade, não o é: porque, como refiro acima, é autoritária; exclui o debate; torna impossível qualquer diálogo; impossibilita que se vá ao cerne de um assunto; transforma um debate de ideias, num juízo sobre pessoas e virtudes ou pecados das mesmas. No fundo, é uma recusa em dialogar, não explicitamente assumida, uma hipócrita forma de rebaixar eventuais opositores.
 Revela uma grande instabilidade e insegurança por parte de quem assim procede pois, quem está seguro dos argumentos que defende, não teme discuti-los. 
Pelo contrário, quem teme o debate, esconde-se atrás de falácias. A mais corriqueira destas falácias consiste em «por em causa» o portador do argumento e não o argumento em si mesmo.