Habanera*, excerto do The French Album, por Jorge Federico Osorio
O álbum vale pela seleção criteriosa das peças de compositores franceses do virar do século XIX, para o século XX (Gabriel Fauré, Claude Debussy, Emmanuel Chabrier, Maurice Ravel) com uma incursão no século XVIII (obras de Rameau); e vale também pela interpretação límpida, sem concessões, pondo em relevo a poesia encerrada nestas partituras.
Foi assim que decidi homenagear este dia ( 8 de Março, dia da nossa cara metade), no feminino.
Rameau presta-se muito bem a isto, pois ele construiu peças em torno da feminilidade, representando vários caracteres (com os nomes respetivos ou sem eles) pela música.
Este conjunto instrumental é de qualidade, adequando estilo e andamento aos requisitos próprios destas peças do final do barroco.
Outros posts sobre Rameau no blog «Manuel Banet, ele próprio»:
Rameau foi celebrado como o mais destacado músico francês da época barroca. O talento e criatividade de Rameau permitiram que ele se erguesse até um lugar proeminente no gosto do público, quer fosse na corte, quer em meios muito mais modestos.
Sobressaem a delicadeza e adequação das suas composições para o cravo, como a Primeira Suite. Ele fez imprimir estas peças, reunidas em livro, para se tornar conhecido, quando veio de sua cidade natal (Dijon) para a capital, decidido a conquistar o seu público.
Ele construiu um reportório único de ópera e de ópera-ballet. Muitos consideram-no o verdadeiro fundador da tradição de ópera francesa, apesar dos antecedentes de Lully e de outros.
A sua polémica com Jean-Jacques Rousseau, filósofo das Luzes e defensor da ópera italiana, foi célebre na altura... já quase ninguém, hoje em dia, compreende sua razão de ser. É que Rameau foi também um teórico da música e procurou fazer música prática coerente com os princípios, defendidos na qualidade de teórico. Por exemplo, uma peça - L'Enharmonique - é uma aplicação muito directa dos seus conceitos teóricos.
A suite em Lá menor, na verdade, não é nada rebuscada, não é difícil de «entrar no ouvido». Eu gosto de me banhar neste universo sonoro, enquanto estudo ou quando ocupo as mãos com uma tarefa de precisão. Mas, ela é muito mais do que «música de ambiente», reconheço que esta música tem uma qualidade excepcional. Não tem «efeitos especiais» para cravo, que exibem recolhas posteriores de Rameau, com peças descritivas, as mais executadas em disco ou em concerto.
O prelúdio desta Suite é uma peça muito especial e típica da tradição dos cravistas e alaúdistas franceses. Ela não tem barras de compasso a separar as notas, é um prelúdio «non-mesuré». A duração das notas não é precisa. Isto significa que o executante tem uma latitude maior para interpretar a peça. O prelúdio derivou da improvisação inicial que os cravistas e alaúdistas executavam, no início de um recital, quer para verificar a afinação do instrumento, quer para colocar o auditório perante o contexto sonoro apropriado à audição da Suite. Muitas peças das Suites possuem nomes de danças; pois são, de facto, danças estilizadas. Por isso, o compasso, o andamento, o tamanho das frases e secções, as repetições, as modulações, etc. não eram «livres», eram características impostas pela natureza da dança estilizada: uma Sarabande, um Menuet e todas as outras danças tinham de obedecer a regras precisas.
Nalguns casos, uma Suite não era mais do que a recompilação de peças no mesmo tom. Isto observa-se, apesar de haver, nalguns compositores, uma certa sistematização, uma procura de unificação através de temas semelhantes, mas estes traços não são generalizáveis. Temos indicações seguras de que - nessa época - a Suite era vista como um agrupamento conveniente, não de execução integral obrigatória: O executante podia adoptar uma ordem diferente da que estava escrita, podia encurtar ou aumentar o número de peças.
Um jovem provincial desembarca em Paris no início do século XVIII, com um rolo de partituras debaixo do braço, uma ambição de fama e glória, mas também uma forte formação de organista pela sua tradição familiar.
O prelúdio da primeira série de peças para cravo tem o mérito de mostrar um exemplo de peça típica da escola francesa para cravo:
Trata-se de uma peça com latitude para o intérprete, num estilo improvisado, razão pela qual não existem barras de compasso, «prélude non-mesuré». Logo nesta peça de juventude, Jean-Philippe Rameau anuncia quem é e ao que vem. Mais tarde, ficará conhecido como teórico polémico e popular autor de óperas. Irá polemizar com celebridades da Enciclopédia, nomeadamente, J.-J. Rousseau e D'Alembert.
A força da sua personalidade e a sua subtileza transparecem nas peças seleccionadas por Scott Ross, no vídeo abaixo...
Estas permitem-nos «sentir» o século XVIII francês: um discurso aparentando frivolidade, às vezes... mas capaz de se mostrar subtil, irónico, terno, ou enfático, em resumo: um teatro de sentimentos.
É que este discurso musical banha na mesma atmosfera que os debates dos filósofos nos «salons», ou que os diálogos das comédias de Marivaux.
A linguagem da escola francesa construiu-se numa sucessão ininterrupta de grandes cravistas do século XVII, uma grande tradição de que Rameau é ponto cimeiro.
Aviso: este vídeo não deverá ser ouvido por pessoas apressadas, mas antes por aquelas que se deixam penetrar pela música de Rameau, fruindo cada nota, cada silêncio, como a essência da volúpia.
Que importa que o compositor tenha escrito isto há mais de 250 anos!? Importa-me que a Natacha Kudritskaya restitua o esplendor e a subtileza desta sequência de variações para usufruto das gerações presentes. O rigoroso fraseado ao piano, na peça composta originalmente para cravo, não desfigura a estética barroca, mas torna as suas belezas mais sensíveis ao ouvido contemporâneo .