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domingo, 19 de fevereiro de 2023

A PROPÓSITO DE UMA FRASE DE D. H. LAWRENCE

Aplica-se, hoje, o dito de D. H. Lawrence, de há um século atrás: “O essencial da alma americana é sua dureza, isolada, estoica, de assassino. Ela nunca chegou a derreter-se.” Citação retirada de artigo de Ed Curtin: https://off-guardian.org/2023/02/19/the-world-wants-to-be-deceived/
Não tenho dúvidas da justeza* de D. H. Lawrence, há um século atrás, como não duvido da justeza* do diagnóstico dececionado de Edward Curtin no excelente artigo: «O Mundo Quer Ser Enganado».

Mas, na realidade, não há assassino sem vítima. Quem se coloca na posição de vítima, são aqueles mesmos que ficam impressionados com «as luzes da ribalta», com retórica humanitária e a imagem totalmente falsa da maior «democracia» do Mundo, que estes assimilam, não vendo que estão a engolir em pequenas doses de veneno, o engano destinado a apresentar o «típico» americano como alguém muito decente, crente, bonacheirão, firme na defesa da «democracia» e respeitoso do poder, seja ele o do dinheiro ou o político.  

Para ilustrar este facto, irei descrever algumas experiências pessoais, embora eu saiba que não têm qualquer significado em termos estatísticos:

1) Há muitos anos, no metro, casualmente, encetei conversa com uma jovem americana. Não me lembro de que conteúdo falámos, só sei que a certa altura, a conversa resvalou para a política, em especial a americana. Não pude evitar falar-lhe das guerras sujas que os EUA estavam a fazer ou a apoiar fações, como no caso da Nicarágua (o diálogo passava-se quando Ronald Reagan era presidente). Ela abriu muito os olhos de espanto e dizendo, com voz ofendida, que a América era uma Nação pacífica, que ajudava os povos mais fracos. 

2) Num cemitério situado na Coreia do Sul, sob bandeira das Nações Unidas, repousam os soldados americanos e da coligação liderada pelos americanos que combateram na guerra da Coreia. Eu mostrei-me surpreendido ao guia, que a Coreia do Norte e a China não estivessem representadas, pois estávamos num pedaço de território que pertencia (legalmente) à ONU e não à Coreia do Sul. Ele não teve argumentos para me contrariar, mas também que os tivesse, não iria entrar em discussão comigo, visto que ele tinha de ser amável com os turistas. 
Mas a todos os sul-coreanos a quem contei o episódio e a minha perplexidade, não houve um que tivesse respondido o óbvio (para mim): A coligação que combateu as forças da Coreia do Norte e da China Popular, embora nominalmente sob bandeira da ONU, na realidade, eram tropas americanas e das nações que contribuíram com «voluntários». 
Há diferenças até na morte; eles (americanos) não esquecem, nem perdoam nunca. Se és inimigo, nem após a morte, te reconhecem a dignidade de ser humano.   

3) Num curso de Verão, num cantão da Suíça para aprender língua alemã, conheci uma jovem americana. Ela tinha talento musical e preparava-se para frequentar um curso superior de música na Suíça. Eu esteva no curso de Verão para poder beneficiar duma bolsa de investigação dada pela embaixada suíça. Ora, esse curso de língua alemã era frequentado por variados estudantes de ambos os sexos. Não sei por que motivo, a referida jovem, meteu-se-lhe na cabeça ensinar aos colegas dos outros países (ele era a única cidadã dos EUA) o seu hino nacional. As pessoas fizeram-lhe a vontade, não por submissão ou por convicção, mas porque quiseram mostrar-lhe que não tinham nada de pessoal contra ela (nem contra o seu país). Mas, eu fiquei a pensar no que aconteceria, se um Iraniano ou um Chinês (eram vários), tivesse a mesma ideia de querer ensinar aos companheiros de curso, o seu hino nacional? Tal não seria possível, porque nem eu nem os membros das outras nações,  estávamos interessados em manifestar um nacionalismo que ia ao ponto de obrigar os colegas, por cortesia, a aprenderem um hino que não lhes dizia nada.

4) Uma estudante, fazendo mestrado ou doutoramento em Coimbra, de origem curda e de nacionalidade turca, contou-me que, nas zonas curdas sob «proteção» americana, os diversos grupos étnicos, curdos, turcos, cristão sírios, árabes, etc. vivem em comunidades separadas e que cada comunidade tinha seus representantes, «em democracia». Mas isto era exatamente o modelo importado dos EUA (não sei se ela tinha consciência disso), em que as comunidades vivem separadas, têm uma organização comunitária separada por etnias e/ou por religiões: Os representantes políticos locais e regionais, são dum dos grupos étnicos mais fortes na zona, ou têm acordos que asseguram que os interesses dos vários grupos étnicos serão tidos em conta. Não existe nos EUA, qualquer «mistura» de pessoas vindas dos diversos cantos do globo (quanto aos que lá sempre estiveram, os sobreviventes do genocídio, estes foram «aparcados» em reservas e aí continuam). É por isso que, nos EUA, há periodicamente explosões de violência. Por as pessoas se definirem pela cor ou tom da pele: «brancos», «amarelos», «negros» e «latinos». Ou melhor, os poderes tudo fizeram para que as pessoas tenham sua representação mental da sociedade, dividida em comunidades por raças. Assim, a realidade fundamental da identidade de interesses entre oprimidos (seja qual for sua etnia) contra opressores (seja qual for a sua, também) é diluída.

5) Eu tive frequentes contactos com cidadãos dos EUA, enquanto estudante ou como recém-formado. Podia-se falar sobre política de modo civilizado, sendo eu cuidadoso para que não se sentissem ofendidos. Com efeito, mesmo alguém de elevado nível cultural, poderia confundir meu anti-imperialismo com uma forma de exprimir antipatia pessoal pelos americanos. Porém, o que sobressaia era que, os que estavam dentro do espectro político «mainstream», tinham uma abordagem simplista. Por contraste, as pessoas não-académicas, ativistas sociais ou sindicais dos EUA, que encontrei em vários momentos da minha vida, eram pessoas com originalidade; tinham interessantes pontos de vista sobre vários assuntos de política internacional.  

Não se pode generalizar, mas confesso que esta vivência acaba por influenciar o meu modo de ver o povo americano. Tenho lido muitos textos - os de Edward Curtin, Howard Zinn, Noam Chomsky e outros - sobre o modo como têm sido condicionados, nos EUA, geração após geração. 
Sei que a minha abordagem pode parecer simplista; de facto, não vivi nunca nos EUA. Gostava que os americanos não se tomassem pelo povo «excecional», isso - além de ridículo - é mesmo ofensivo para as restantes nações.
Pessoalmente, compreendo o forte sentimento de identidade que se possa ter, em relação à nação onde se viveu a maior parte da vida, da qual são os nossos pais e mães. Sei que o sistema educativo e político acaba por ter muita influência no moldar da mentalidade individual e coletiva. 
Mas, a questão é, simplesmente, de não se colocar numa postura de «superioridade» falsa, pois repousa sobre o poderio, a riqueza e força militar de uma potência, sobre as outras.  
A multipolaridade não vai eliminar as desigualdades entre as nações. Não vai anular diferenças culturais e políticas óbvias. Penso que vai permitir que não haja nenhuma nação hegemónica que dite às outras por que parâmetros políticos, morais, etc. estas outras se devem reger.  Para não falhar, não poderá ser apenas um projeto de força económica, militar, política, etc.: Tem de haver o suporte dum conjunto de regras ou leis internacionais, que permitam os povos viverem e desenvolverem-se, sem colonialismo, neocolonialismo, nem imperialismo. 

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* Não duvido da justeza de D.H. Lawrence e de Edward Curtin porque assumo naturalmente que ao falarem de «assassinos americanos» referem-se aos líderes, os que têm real poder, no Governo, na Administração e nos Negócios.



quarta-feira, 27 de outubro de 2021

SENILIDADE NAS PESSOAS INTELIGENTES

 Vem o presente escrito enquanto comentário a uma entrevista desastrosa de Noam Chomsky, um célebre intelectual, ícone da esquerda radical e libertária. Nesta entrevista, Chomsky advoga que os não-vacinados contra o COVID deveriam ser forçados ao isolamento. Alegava que os prejuízos, para eles próprios, eram inteiramente da sua responsabilidade. Curiosamente, pelo menos na entrevista, nem sequer faz exceção dos já infetados e curados, que realmente possuem bem melhor proteção, que os que não têm senão a proteção (precária e transitória, além de muito parcial) das vacinas, pelo menos das correntemente usadas nos EUA.

Creio que existem pessoas extremamente inteligentes e com uma grande bagagem teórica, que também caem na rigidez mental agora exibida por Noam Chomsky. Penso que muitas coisas que escreveu Chomsky permanecem válidas, quer ele tenha agora feito, ou não, declarações desastrosas e tomado certas posições contraditórias com posições prévias dele, basicamente libertárias (ele próprio define-se como «socialista libertário»). 

O nosso sistema mediático promove o «estrelato», que não se confina a «Hollywood», também abrange o mundo académico e a intelectualidade. Muitos são os que se tornaram celebridades, com a fama adquirida por obras de reconhecido mérito, que depois «dormem sobre os louros», ou seja, não produzem nada de valor, de grandeza ou de inovação equivalentes, no resto da vida. Com efeito, é uma raridade ser-se um Leonardo Da Vinci ou um Pablo Picasso, ou outros raros, que até ao fim da vida produziram arte ou literatura ou filosofia de grande nível, de nível equivalente ou semelhante às produções realizadas quando eram jovens e que lhes concederam a celebridade. Aliás, não raras vezes, alguém é reconhecido como criador valioso somente no final da vida. Só então, por vezes devido a circunstâncias fortuitas, sai da obscuridade mediática e se torna célebre. 


De facto, esta situação pontual confrangedora, como Jonathan Cook* tão bem disseca, não é única. Muitas individualidades no passado, que eram fulgurantes críticos do sistema, ou polemistas temíveis contra o convencionalismo, tornam-se -elas próprias - muito convencionais, nos finais de sua vida.

Há quem diga que «adquiriram» o juízo que lhes faltou durante a juventude, mas eu penso que tal não deve ser visto deste modo. Até porque não é infrequente intelectuais senis defenderem posições extremistas ou insensatas, mas em sentido oposto às defendidas na juventude. 

Creio que a rigidez da mente, decorrente de um mau funcionamento dos circuitos neuronais ou da perda de capacidades é geral, a partir de determinada idade. 

Não há ninguém que escape à determinação biológica da senilidade. Mas, se alguém toda a vida foi medíocre, na sua forma de pensar, não se espera que tenha melhor qualidade durante os anos tardios, antes pelo contrário. Porém, ilogicamente, espera-se que alguém, intelectualmente brilhante na juventude e na maior parte da idade adulta, assim permaneça até ao fim da vida, mesmo que centenária!

Há aqui algo de estranho: Talvez tenha a ver com o culto da celebridade, com a imagem de «sempre jovem» que se quer guardar de certos artistas, que nos encantaram quando nós também éramos jovens ou, mesmo, crianças? 

Pessoalmente, creio poder dissociar-me desse culto, como aliás do oposto, ou seja, o de desprezar alguém só porque tem idade provecta. No humanismo, não se apreciam as pessoas através de «avaliações» estúpidas (como são sempre as mediáticas), mas segundo outro critério: Do valor intrínseco do ser humano, enquanto tal. Eu penso que devemos respeitar as pessoas de provecta idade, como se fossem o próprio pai, ou mãe. Ou, como nós gostaríamos de ser tratados, quando estivermos em tal fase da vida. 

Desprezar os idosos é um sinal de arrogância e autoritarismo. Mas, não devemos pedir à natureza aquilo que ela não pode dar. Todos os seres que envelhecem têm de sofrer um declínio de suas capacidades, não apenas físicas, como mentais. 

Isso não torna as pessoas menos estimáveis e dignas de respeito, aos nossos olhos. Pelo contrário, deveríamos resguardá-las duma exposição mediática cruel. Creio que foi o caso de Chomsky, na medida em que a entrevista deixa para a posteridade palavras (escritas ou ditas) cujo sentido é fraco e está em contradição direta com a sua obra e com a maior parte da sua vida.

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* Artigo no blog de Jonathan Cook: «Is forced isolation of the unvaccinated really the left’s answer to the pandemic?»

  

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

ANARCO-CAPITALISMO?

Para se abordar este assunto sem demagogia, num ou noutro sentido, temos de nos despir de todos os preconceitos. Isto é normalmente muito difícil, se não impossível, para o comum dos mortais. 

Porém, os conceitos relativos ao anarquismo ou ao socialismo libertário são fundamentais e ajudam a esclarecer o fundo da questão. E este, resume-se à resposta simultânea às duas questões: «será o anarquismo viável?»; «será o anarquismo desejável?».

Para compreender as propostas dos que defendem um «anarco-capitalismo», temos de cavar um bocado na História e perceber como evoluiu este complexo de ideias, teorias, organizações e movimentos sociais. 
Sobretudo, devemos compreender que na origem (pelo menos enquanto teoria política e social), o anarquismo é visto como uma modalidade do socialismo. E o socialismo, por sua vez, é a utopia que mobiliza os sectores despojados pelo desenvolvimento capitalista dos séculos XVIII-XIX. No início, não se distinguia, nem em termos de projeto, nem em termos de teoria​,​ do comunismo. A palavra comunismo vem de comuna, que é o equivalente à nossa «freguesia»​. O comunismo foi, inicialmente​, um projeto de auto-gestão e auto-apoderamento​,​ ​n​um​ espaço territorial definido, que se pode considerar gerível e controlável pelo povo da comuna. 
Portanto, teria mais a ver com a gestão horizontal dos recursos, nos espaços geográficos ​duma área que ​podia ser atravessada de lés a lés, numa única jornada​,​ a cavalo. 
Porém, a luta de classes, na primeira metade do século XIX, nos países europeus, esteve imiscuída ​n​a luta pela libertação nacional contra o domínio das​ diversas monarquias e impérios. 
Es​t​es impérios, para usar uma expressão​​ conhecida, eram «a prisão dos povos». A eclosão de um movimento insurrecional em 1848, foi a primeira «prova de fogo»​:​ não apenas dos que ainda estavam imbuídos do ideário liberal, na sua versão genuína e original de liberdade de opinião, de associação e não somente liberdade de comércio, mas também dos proletários​,​ que entravam, pela primeira vez com a sua agenda própria, contra as monarquias instaladas. Havia a ilusão de que a república, o sufrágio universal, a liberdade, o direito de organização de sindicatos e a consagração do direito à greve, seriam a etapa necessária para a «república social», no confronto geral com a burguesia e ​restantes classes​ opressoras.​ Infelizmente, tal esperança não se concretizou​,​ pois os regimes constitucionais monárquicos ou republicanos - ​instalados entre a ​2ª​ metade do século XIX e início​s​ do século XX​ -​ logo se viraram contra a classe ​operária, ​que os pusera no poder, com repressão e com restrições de toda a ordem, p​ara «desarmar» o perigo de revolução. Quando se falava de revolução, era - naturalmente - a​ revolução​ que apregoavam os socialistas, comunistas e anarquistas​ ​e suas respectivas organizações e órgãos de propaganda.
Porém, a vertente não insurrecional do movimento operário e socialista (no sentido lato do termo) esteve sempre presente, desde os grandes movimentos Cartistas para conseguir uma lei (Charter) consagrando a existência legal de  sindicatos,  ​«trade-unions» nas ilhas britânicas. 
Outra vertente não insurrecional, era formada pelo nascente movimento​ ​de cooperativas operárias, implicados em produzir mercadorias e serviços de maneira autónoma​,​ gerindo​ ​suas empresas cooperativas de modo democrático e horizontal. 
Um grande apologista desta​ ​abordagem evolucionista​,​ em direcção a um socialismo futuro, ​foi​ Pierre-Joseph Proudhon, ele próprio um operário. A sua crítica radical do capitalismo inspirou o jovem Marx e​ ​outros socialistas​ e ​comunistas​. Devido a uma polémica azeda entre Marx e Proudhon, eles divergiram e detestaram-se. 
Porém​,​ é um facto que, na Iª Internacional, ​a corrente proudhoniana era nitidamente mais importante que ​o marxismo ou que outras, como a corrente de Bakunin.
A corrente prouhoniana, apesar de derrotada e expulsa da IIª Internacional, juntamente com os que seguiam Bakunin, acabou por ser o esteio sobre o qual se ​re​construiu o movimento sindical ​no final do século XIX, princípio d​o século XX. Com o acordo entre socialistas marxistas e sindicalistas ​libertários, estabeleceu-se ​como regra, nas «organizações de classe» (os sindicatos), terem estas autonomia em relação a todos os partidos e correntes políticas, sendo então os sindicatos capazes de unir os trabalhadores com base nas suas reivindicações e não com base na​s​ suas ideologia​s​.
No seu desenvolvimento histórico, o anarquismo é tudo menos uma teoria monolítica, pelo que excluir​ de antemão e sem análise o «anarco-capitalismo», ou todas as ideias​ análogas​ que se apresentam, é contraditório com o espírito aberto e tolerante, que também faz parte da herança multissecular das correntes libertárias. Ser intolerante, ser sectário,​ é a negação dos princípios anarquistas​; as pessoas que assim se comportam, em vez de revolucionárias, estão (sem o saberem?) a preparar a «cama» para uma aventura autoritária.

Vou, por isso, tentar esclarecer o que compreendi da leitura de autores anarco-acapitalistas contemporâneos. 
O que noto​ -​ desde logo​ -​ é que o movimento dito «libertariano» ou «anarco-capitalista», es​tá ​ancorado na sociedade ​norte-​americana e é parte de uma franja descontente com os partidos do establishment. 
Mas​,​ ​n​a abordagem prática da ação política, têm decidido, ou formar uma ala no seio do partido republicano, ou intervir com candidatos próprios (apoiados pelo partido libertariano) nas eleições ao nível estadual (ou a níveis inferiores) para conquistar uma parte do eleitorado do partido republicano (​a origem de​ muitos deles). Compreende-se que isto tudo tenha pouco​ ou nada​ que ver com o verdadeiro anarquismo, como organização horizontal, com a rejeição d​e​ eleições, vistas como um logro​​ que permite perpetuar​ ​a opressão​ do Estado e da classe dominante​, sob o pretexto (falso) de uma igualdade política, etc. 
A generalidade dos anarco-capitalistas aceita como ideal a constituição​ dos EUA, redigida e aprovada pelos revolucionários americanos: revolucionários... em relação à sede  da colónia (a Grã​-Bretanha), mas - eles próprios - grandes proprietários, muitos dos quais (​incluindo​ Washington ​e​ Jackson) proprietários de escravos negros. Os «libertarianos» pensam que o Estado deveria retornar à «pureza» da constituição aprovada pelos «pais fundadores»​ nos finais do século XVIII​. Neste ponto fundamental, divergem dos anarquistas, pois não preconizam (mesmo a longo prazo) a abolição do Estado, mas somente a sua reforma profunda.
No p​lano​ económico​,​ defendem a desregulamentação total, o que se traduziria por uma extrema força de coação económica dos detentores dos meios de produção e do capital​,​ sobre os que não possuem outra escolha senão vender sua força de trabalho​,​ para seu sustento e da sua família. 
A favor desta tese extremada​,​ argumentam que o Estado é essencialmente parasitário e que o mercado «libertado de entraves» será originador de tal multiplicação de riqueza, de oportunidades, que todos poderão construir o seu negócio, que todos beneficiarão. Esta projecção, n​o​ futuro, do «paraíso capitalista" faz-nos sorrir, porque ouvimos - no passado - o mesmo estribilho, mas ​aplicado ao​ «paraíso comunista​»​
O anarco-capitalismo é a ideologia ​à qual se agarram algumas pessoas da pequena e média burguesia, ao verem suas vidas devastadas pelas sucessivas crises do capitalismo, mas ​sem terem​ (ainda?) equaciona​do​ que pudesse existir algo melhor do que este sistema. 
Convenceram-se que o capitalismo presente é um capitalismo degenerado​ (crony capitalism)​, que a restauração da «pureza» do mercado - divinizado, como um «Deus ex machina» - iria repor a sociedade e as instituições do Estado n​o​ caminho d​o​ progresso, ​com ​um bem-estar generalizado e em plena ​liberdade.
Eu caracterizaria as várias vertentes do movimento libertariano ou anarco-capitalista, como um agregado de nostálgicos do capitalismo passado, porventura de um capitalismo que nunca existiu, realmente. Só diferem concretamente uns dos outros, na forma como analisam alguns fenómenos e na ênfase que colocam nas suas críticas (parciais) ao Estado.
No entanto, pode-se encontrar argumentos muito pertinentes nos autores desta corrente, sobre o processo pelo qual o Estado passou a controlar cada vez mais as vidas das pessoas, a suprimir as liberdades fundamentais e a arregimentá-la​s​ para a guerra. 
Pode-se encontrar ​neles ​uma crítica do «crony-capitalism», ou seja, da forma como ​o​ capitalismo de hoje está dominado por monopólios, por grupos tão poderosos, que a concorrência ​real ​não existe. Não havendo mais mercado digno desse nome​, ​em múltiplos sectores da economia​, caminha-se para um totalitarismo corporativo. 
Também verberam contra o capitalismo financeiro e contra a gestão dos movimentos financeiros e monetários, pelos bancos centrais para benefício da finança e desastrosa​​ para os pequenos, sejam eles trabalhadores ou pequenos patrões.

Porém, nem as metas globais que apontam, nem as formas concretas adoptadas (partidos, eleições), para se organizarem e fazer valer as suas ideias... nos permitem reconhecer os princípios fundamentais dos libertários ou anarquistas. Estão longe de quaisquer das formas em que estas tradições se afirmaram, desde o século XIX e séculos seguintes, até hoje. 
​Penso que estão relacionados antes com uma vertente extremada do liberalismo. Na origem, o liberalismo lutou também pelas liberdades individuais e não apenas pela liberdade de comerciar, confrontando-se com os poderes estatais. O liberalismo foi a ideologia adoptada pela burguesia ascendente. ​
Quem conhece a história do movimento operário nos EUA, sabe que houve uma intervenção vigorosa dos sindicalistas de ideologia anarquista​,​ ou de inspiração libertária. Destacam-se os​ sindicatos da confederação​ Industrial Workers of the World (IWW ou wo​o​blies), que permanecem activos hoje, em certos sectores da sociedade dos EUA, apesar da repressão feroz​,​ tanto do Estado, como do patronato. 
Existem muitas organizações e pensadores, ao longo da História dos EUA,​ que se filiam na corrente libertária​. Muitas pessoas conhecem os nomes de Emma Goldman, ou de Noam Chomsky, mas existem muitos mais com contribuições práticas e teóricas notáveis.  
Existe, no presente, um grande movimento de simpatia pelo socialismo, onde predominam correntes de socialismo anti-autoritário, não-hierárquico. Este, embora não sendo​ sempre​ explicitamente anarquista no seu enunciado​, fez suas várias teses​ e adoptou métodos de organização do movimento anarquista.
Nesta situação de agudização da crise​,​ há um fosso crescente entre classes sócio-económicas, com o divórcio da classe trabalhadora em relação à ideologia dominante, apesar das catadupas de mentiras e deturpações que os media - vendidos aos poderes do dinheiro - despejam diariamente, sobre o soci​alismo

Creio que muitas pessoas vão compreender ​pela prática  social, ​que o movimento dito «libertariano» ou ​«​anarco-capitalista​»​ não oferece resposta para ultrapassar o sistema concreto em ​que ​nos encontramos. 
Destas pessoas, algumas poderão vir a reforçar os movimentos anti-autoritários e anti-capitalistas, que se têm multiplicado nos últimos decénios.​

quarta-feira, 27 de março de 2019

sábado, 16 de junho de 2018

PAUL STREET: «O DESAFIO DE CHOMSKY AOS AMERICANOS»


O artigo vale por si, vale a pena lê-lo na íntegra. Dele retirei alguns parágrafos, que transcrevi abaixo... Gosto do estilo factual de Paul Street e de Noam Chomsky, os dados nus incontestáveis, que são porém sistematicamente ocultados às pessoas. 
Se o governo dos EUA, as grandes corporações de media e todos os servos da ordem imperial fazem tanto para ocultar e dar uma versão completamente falsa e heróica das acções militares  (e outras) das guerras da Coreia, do Vietname, do Iraque, até hoje, é porque sabem que a sua imagem e autoridade repousam largamente numa narrativa totalmente fictícia, para consumo das massas.  Sem tal imagem fabricada, a natureza desse poder fica completamente desnudada e portanto, enfraquecida.           

                      

[excertos do artigo citado:]

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U.S. Air Force Gen. Curtis LeMay boasted that “we burned down every town in North Korea” and proudly guessed that Uncle Sam’s gruesome air campaign, replete with napalm and chemical weapons, murdered 20 percent of North Korea’s population.

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 Just one U.S. torture program alone—the CIA’s Operation Phoenix—killed more than two-thirds as many Vietnamese as the total U.S. body count. Unbeknownst to most Americans, the widely publicized My Lai atrocity was just one of countless mass racist killings of Vietnamese villagers carried out by U.S. troops during the crucifixion. Vietnam struggles with an epidemic of birth defects created by U.S. chemical warfare to this day.

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Journalist Joyce Chediac testified that:

U.S. planes trapped the long convoys by disabling vehicles in the front, and at the rear, and then pounded the resulting traffic jams for hours. … On the sixty miles of coastal highway, Iraqi military units sit in gruesome repose, scorched skeletons of vehicles and men alike, black and awful under the sun … for 60 miles every vehicle was strafed or bombed, every windshield is shattered, every tank is burned, every truck is riddled with shell fragments. No survivors are known or likely. … U.S. forces continued to drop bombs on the convoys until all humans were killed. 
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Why, oh why, do they hate us?” So runs the plaintive American cry, as if Washington hasn’t directly and indirectly (through blood-soaked proxies like the Indonesia dictator Suharto and the death-squad regimes of Central America during the 1970s and 1980s) killed untold millions and overthrown dozens of governments the world over since 1945. As if the U.S. doesn’t account for nearly 40 percent of the world’s military spending to maintain at least 800 military bases spread across more than 80 “sovereign” nations.