Mostrar mensagens com a etiqueta Magritte. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Magritte. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

[OBRAS DE MANUEL BANET] OUTROS POEMAS INÉDITOS DE «TRANSFIGURAÇÕES»*



[Deixo aqui outros textos da recolha «Transfigurações»*, que tenho vindo a publicar neste blog: ver aqui, aqui e aqui ]



                                   René Magritte: tempo transfixado


PRINCÍPIO

Fiquei calado, olhando a porta numa súbita hesitação que se apoderou de mim, sem qualquer motivo especial... Talvez apenas cansaço. Talvez desejo de escapar a mais um “tête-à-tête” comigo próprio.
A vacuidade de todos os gestos.
A imensa camada de tédio que me invadia, me esmagava ....
Agora sinto que as minhas pulsões se sobrepõem ao lógico, ao racional.
Tenho anos de solidão dentro de mim.
Não posso olhar em frente o meu reflexo no espelho.
Tenho medo de me confessar frágil, caprichoso, egoísta, “blasé”...

         Dêem-me algo a que me possa agarrar. Tenho de sentir perpassar dentro de mim o arrepio do instinto, de ser capaz de desejar algo até ao
                                                     fim.






SE ÉS POETA

Poeta, a tua exaltação percorre as margens da loucura narcísica. O teu isolamento é produto da tua não conformidade com a norma.
Estou cansado de te repetir que os outros não existem para ti, nem tu para os outros: Cada ser existe sobretudo para si mesmo. Somos moluscos que se entreabrem para renovar o oxigénio quando a água os recobre e se fecham com pequenos ruídos secos quando se retira a onda.
Devemos pois firmarmo-nos com a nossa concha á rocha do Tempo. Deixaremos a nossa marca, ficaremos inscritos nas pedras do passado.





SER HUMANO

Só existe um processo viável de nos perpetuarmos. Formando clones a partir de tecidos, de células de nós próprios.
A questão é saber se esses duplos de nós mesmos se tornarão ou não seres autónomos psiquicamente, independentes, filhos de um só progenitor mas dotados de personalidade, de sensibilidade distintas...

A humanidade dará um grande passo no dia em que a questão da individualidade já não se puser em termos orgânicos, mas antes em termos de experiência intelectual e emocional.





IDEIAS  I


Por mais estranho que pareça, esta ideia veio-me à cabeça: - será que este género de poesia pode seduzir os dementes?


IDEIAS   II


Produzir imagens/reflexo do que imagino através de um electroencefalografo  conectado a um computador.
Deve ser possível desencadear a imaginação de um computador.
Bastaria produzir um sistema de programação em “rede de Petri” e fornecer uma série de números aleatórios, dos quais apenas dessem entrada os que obedecessem a uma regra de programação.




ZENON JÁ NÃO MORA AQUI

Um ponto.
Um ponto movendo-se lentamente no espaço.
Movimento uniforme,
Velocidade constante,
Cada vez mais longe do observador.
Mas tão nítido como no início da trajectória.
Um ponto.
Apenas uma partícula, nem isso;
algo que não tem peso, nem volume, nem cor,
nem cheiro,
não tem nada...
é só um lugar ... mas não tem área,
é o cruzamento de duas rectas ... que não têm
senão uma dimensão !
Tudo isto aprendemos na escola !
Tudo isto devemos rever !

Das matemáticas á Sociologia, fala-se de
“ponto” com um à-vontade...
Uma coisa bem conhecida de todos nós,
não é verdade?

Todo o pensamento racionalista admite o ponto
Todas as leis da Física admitem, explícita
ou implicitamente que entre dois pontos
quaisquer cabe uma infinidade de pontos.

Pois bem: eu recuso o ponto !
Já estou farto de paradoxos e Zenon já não mora aqui !




A NOSSA POLÍTICA E A DOS OUTROS

Nós não viemos numa manhã de nevoeiro.
Nossa esperança não cabe num papel pintado.
E quando dizemos “futuro” nossos olhos dardejam.

Para nós a vida não vale a pena
Ser vivida solitária.

Somos as raízes de uma grande árvore.
Somos as gotas cristalinas de um grande rio.
Somos calmos como o mar, somos terríveis
Como a tempestade.

Nosso grito vem do fundo.
Nosso gesto não está á venda:
Damo-nos as mãos e acreditamos no amor.





A UMA DONZELA GENTIL


És minh’ alma, és meu corpo,
Meu desejo, meu sopro...
Anda ver o meu moinho
Anda comer meu pão, beber meu vinho...

Dentro de ti encontrarei
O sonho que nunca sonharei...
O castelo encantado por ti
Deixa abrir a porta. Parti...

... E fiquei mais triste
Por ter visto o que viste...
Dentro em breve te darei
O reino do meu bom rei...

No país das dunas e brumas
Te encontrei, num dia d’espumas
Deitada na cama da maré;
É tua, essa pressa de amar? – É ...






BAILARINA


És minh'alma, meu corpo,
Minha chama, meu sopro...

Vieste, bailarina,
passando a cortina
até mim e partiste
nem alegre nem triste,
sem saberes que sofri
em silêncio, por ti...





ALBA

Em ti morro, de ti renasço...
a minh’ alma se atiça
ao teu sopro leve...
            desejo que as areias alcança,
como havendo mar, há maré...

os cânticos matinais dos pássaros
dizem-me em segredo
que...
o amor está chegando.




VIA BUDA

                                    Para a Margaret e a Maria (§)

Vós sois irmãs na graça de viver
Como rolas nos beirais do castelo
Em phantasia.

Margaret, teus olhos são da cor do mar
Quando, sereno me reclino na areia
E afago o dorso de uma duna...

Maria, teu sorriso abre-se na tua boca
Como uma simples flor do campo
E eu não posso senão tanger
O meu clavicórdio, esperando
Que esteja no tom do teu violino.

[§ estávamos em Pest]

 ---------
*A recolha de poemas «Transfigurações» agrupa escritos dos anos 1983-1987