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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

O ANO DO DRAGÃO


                     


 O dragão é o animal mítico que vai presidir ao novo ano lunar, que começa no sábado 10 de Fevereiro. Os povos orientais estão muito ligados a esta contabilidade lunar. Com efeito, é nesta ocasião que se dão os encontros da família alargada, quando há um período de tréguas (vários dias de feriado) do duro trabalho, em que se comem deliciosas iguarias e se bebe também. Mas, sobretudo, nestas reuniões familiares ocorrem as íntimas celebrações em memória dos defuntos*. A família reúne-se para ofertar aos antepassados as libações de comida e bebida, em primeiríssimo lugar. Depois, é a vez dos familiares vivos também fazerem o seu ágape (termo grego que tanto designa banquete, como amor altruísta). Tudo isto é colocado sob o signo do ano lunar.


Relevo com dragão numa tumba da dinastia Liao  (916–1125)


Ora este ano que vem, é o ano do Dragão. O animal mítico que estaria na origem do povo chinês. E de muitos outros povos orientais, que -simbolicamente - se colocam debaixo do auspicioso Dragão.   

Assume-se que o dragão sabe proteger o seu povo; que ele é feroz nessa defesa; que tem um sentido muito profundo do dever; tem  obrigação de guardar os tesouros do seu povo, o qual é descendente do dragão.

O famoso e recém-descoberto Homo longi (Homem de Longi) é o «homem-dragão», pois o rio Longi, perto do qual foi encontrado, é o rio Dragão: Que esta espécie extinta tenha contribuído para o mosaico que formou a espécie humana atual, não tenho praticamente nenhuma dúvida. Que seja a mesma espécie que o famoso homem denisovano (primeiro «encontrado» sob forma de ADN arcaico extraído de osso do dedo mindinho, presente na gruta Denisova do Altai- Sibéria), seria lógico. No entanto,  não temos provas definitivas. Porém, temos abundantes provas de que os primeiros colonizadores humanos (Homo sapiens) das Américas, foram povos vindos da Sibéria. Os que se designam hoje como «americanos» são, quase todos,  invasores mais ou menos recentes no continente americano. 

No meu modo de ver, ser-se forte é um elemento necessário na sabedoria dos povos e do governo dos Estados, caso contrário, não estarão ao abrigo de visitas inoportunas, nem de serem obrigados a fazer a guerra para defender o seu território. O lema de «mais vale prevenir do que remediar», aplica-se! 

Também as pessoas do ocidente deveriam pensar agora com a cabeça fria, e não com a cabeça escaldada pela propaganda que recebem da media (esse veneno contemporâneo!). 

O ano lunar é para todos, afinal! É a mesma Lua que gira em torno da Terra, assim como o mesmo Sol que a ilumina: Um bom ano lunar do Dragão, para todos, estejam onde estiverem!

                            

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*Subsistem cerimónias em culturas ocidentais, nomeadamente em países latinos, sob forma de culto dos mortos, em 30-31 de Oubro e 1º de Novembro. 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Descobertas gravuras atribuídas a Neandertais, com 57 mil anos

 https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0286568


               thumbnail

Acima, um dos painéis com traçados de dedos; em baixo, o desenho esquemático da mesma gravura da gruta de La Roche-Cotard

[Ler o artigo, clicando no link acima; o meu comentário parte do princípio que os leitores tomaram conhecimento do seu conteúdo primeiro]



Comentário

Os Neandertais têm estado por cá (em toda a Europa, desde a Península Ibérica ao limite oriental dos Urais e, para além destes, na Sibéria; no Médio Oriente, desde o Levante/Israel, até ao Iraque) nos últimos 200 mil anos, tendo saído de África muito antes do «Homem Moderno Antigo» (ou seja, a nossa espécie Homo sapiens). Eles conseguiram sobreviver a períodos de glaciação, a modificações acentuadas do habitat e tiveram tempo de se adaptar a climas de um frio extremo, como mostram a sua anatomia entroncada, muito musculosa, o seu nariz grande (para aquecer o ar inspirado), etc. 

Segundo os padrões de beleza contemporâneos (e da antiguidade clássica) eles não seriam elegantes. Foram classificados como «sub-humanos» por arqueólogos e paleontólogos do século XIX, que estavam muito mais preocupados em encontrar «o elo perdido» entre o homem e o macaco, do que em avaliar objetivamente os restos fossilizados e as culturas que correspondiam aos Neandertais. 

O facto de que os homens nessa zona da Europa, na época em causa ( -57 mil anos) só podiam ser Neandertais tem a ver com a extrema dificuldade dos H. sapiens conseguirem colonizar o continente Euro-asiático. Com efeito, sabe-se hoje, que o «Homem Moderno Antigo», embora surgido primeiro em África, por volta de 300 mil anos atrás,  não ocupou definitivamente a Europa senão vários milénios após a referida data de 57 mil anos antes do presente. Porém, tinha havido 2 colonizações anteriores, do continente euroasiático pelo H. sapiens, que não deixaram continuidade. Eles tomaram o caminho do Mar Vermelho e não do Mediterrâneo.

Os vestígios europeus mais antigos de arte parietal, como na Gruta de Chauvet, atribuídas ao Homo sapiens, datam de 35 mil anos. No Norte da Espanha, na Gruta del Castillo, existem pinturas parietais datadas com mais de 40 mil anos; pensa-se que, nessa época, somente neandertais aí habitavam. Noutros pontos da Península Ibérica, são abundantes sítios arqueológicos, com artefactos e restos fossilizados de neandertais, que revelam a sua grande difusão nesta península. Mas, também são conhecidos exemplares de neandertais na Sibéria e noutros pontos distantes.

Este estudo - agora publicado - vem na sequência de trabalhos anteriores, que já tinham revelado muitos elementos de cultura neandertal. Pessoalmente estou convencido que estas descobertas  [que se vêm juntar às de misteriosas pinturas parietais em vários pontos da Península Ibérica e com indícios de ornamentação corporal, como conchas com vestígios de ocre (para pintar o corpo) assim como restos fossilizados de penas (de aves de grande porte, como águias e abutres) ] obrigam a comunidade científica a alargar o conceito de arte paleolítica.

A arte - em geral - pode ser vista segundo dois prismas, essencialmente: 

 ou é vista como representação do real. Isto inclui o sobrenatural, pois ele é considerado real pelo artista que o representa.

ou é vista como signo, como sinal, como mensagem codificada; a pertença a um clã, a uma tribo, será identificável com os sinais exclusivos desse clã ou tribo. 

Isso existe na nossa espécie o Homem Moderno, desde o princípio, visto que as grutas decoradas do paleolítico, estão cheias de sinais «abstratos» , mas que não são arbitrários, pois se repetem (alguns, apresentam-se em locais distantes, no tempo e no espaço). 

Na espécie nossa estreita parente, Homo neanderthalensis, suas condições de vida foram muito mais rudes, durante boa parte da sua existência no continente europeu. Não é difícil compreender que estavam forçados pela natureza do clima (de tipo peri-ártico; de tundra) a deambularem de sítio para sítio, ficando em cavernas ou abrigos temporários, sem continuidade, quanto muito visitando, ano após ano, determinados locais.  Lembro também que os locais mais ricos em imagens e gravuras no paleolítico superior (ex. Na gruta Chauvet), estão nos locais mais recônditos das grutas. Por vezes, são quase inacessíveis: seria uma prova tremenda se aventurar no seu interior, segurando apenas lamparinas com gordura, para se iluminarem. 

A representação não é - de qualquer modo - um critério para se avaliar o grau de desenvolvimento duma cultura. Basta lembrar que existem tabus (proibições religiosas) em sociedades como as islâmicas, em representar figuras de humanos ou de animais. Evidentemente, estas sociedades não estão num «estádio menos avançado» de desenvolvimento, por comparação com aquelas onde a representação do humano não é tabu. 

Analogamente, a «superioridade» do Homo sapiens sobre o neanderthalensis é apenas um efeito de nos projetarmos a nós próprios no cume, a realização máxima da Evolução. Como biólogo, estou consciente de que houve um conjunto muito diferente de circunstâncias, nomeadamente para as duas espécies: Um clima peri-ártico do habitat dos neandertais e um clima tropical ou de savana africana, nos sapiens que migraram para a Europa. 

O que se pode esperar em populações longamente separadas, submetidas a diferentes pressões ambientais, senão que divirjam como consequência da sua adaptação e tenham portanto traços anatómicos próprios e também comportamentos, incluindo tradições culturais? Homo neanderthalensis e H. sapiens viveram em quase total separação entre -300 mil anos (a data aproximada de aparecimento do homem moderno, em África) e cerca de -45 mil anos (aproximadamente, o  encontro das duas populações no Levante). São 255 mil anos de separação, no mínimo, ou seja, cem vezes o intervalo temporal desde a antiguidade*, aos nossos dias.

Espero que as pessoas se interessem pela Paleoantropologia, ela dá uma perspetiva de como viemos de longe e de como sabemos pouco, demasiado pouco, sobre nós próprios!!

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* Contando a partir da idade de ouro da civilização grega antiga, cerca 2550 anos antes da atualidade.


domingo, 4 de dezembro de 2022

INVERNO 2022/23: PREVISÕES DE MUITO FRIO = ARREFECIMENTO GLOBAL?


NOAA e Universidade Rutgers publicaram novos dados que mostram a cobertura de neve, em todo o hemisfério Norte, ter atingido o mais alto nível desde que começaram os registos em 1967 e estão presentemente acima da média de 57 anos.

Há anos que venho alertando, não apenas para a incoerência e contradições patentes dos adeptos da «religião do aquecimento climático», como tenho referido que esta obsessão doentia com o aquecimento, pode ser responsável pela total indiferença perante os sinais contrários, indicativos dum arrefecimento global. 
As épocas glaciares e interglaciares sucederam-se em vastos períodos de tempo, no passado da Terra. Cerca de 20 mil anos atrás, o início do fim da última era glaciar, corresponde à transição do paleolítico para o neolítico nas sociedades humanas. 

Estamos num período interglaciar, até agora. Porém, tem havido alguns picos de calor ou de frio. Houve períodos de arrefecimento acentuado, como no Século XVII, a "pequena idade do gelo". Nesta, as águas do Tamisa gelaram e era possível patinar sobre o rio que banha Londres (conhecem-se quadros, gravuras e descrições do acontecimento). 

É possível que a fase interglaciar em que vivemos desde há 20 mil anos, tenha chegado ao fim e esteja no início uma nova era glaciar. Segundo os climatologistas, uma era glaciar estabelece-se de forma muito mais brusca do que as etapas de aquecimento, que assinalam o fim das glaciações. 

A humanidade atual não está preparada para enfrentar uma era semelhante à que se iniciou há 29 mil anos, na Europa. Nesta época, os ancestrais da nossa espécie, H. sapiens, partilharam o habitat com populações de Homo neanderthalensis. Estes, também eram originários de África; mas tinham colonizado a Eurásia centenas de milhares de anos antes. Os neandertais tinham adquirido adaptações anatómicas e fisiológicas ao frio extremo. Os homens «modernos» (H. sapiens) tiveram que desenvolver adaptações comportamentais para sobreviverem em ambientes semelhantes aos do Norte do Canadá ou da Sibéria dos nossos dias.

                                     Solutrense Épigravetense

Legenda: Zonas de refúgio para Homo sapiens na Europa durante o último máximo glaciar há cerca de  20 000 anos

Num vídeo pedagógico, sobre o arrefecimento e glaciações, os ciclos de Milankovitch são muito bem explicados. Estes ciclos estão correlacionados com as diferentes eras glaciares e interglaciares.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

DIÁLOGO SOBRE O FENÓMENO HUMANO II

Um Paleoantropólogo e uma Geneticista dialogam sobre o que significa o humano. Falam das abordagens que têm ajudado a perceber melhor os fenómenos relacionados com a evolução e com o comportamento desta espécie de símios, que é a nossa .


P - Conforme prometido, aqui estamos para a continuação do diálogo anterior, tão rico e frutuoso, que encetámos na semana passada. Mas, se me permites, gostaria de abordar, enquanto questão prévia à da sexualidade humana, a questão do instinto, da forma como as espécies de símios antropoides conseguem enfrentar de forma flexível e adaptada os desafios no seu ambiente.

G- Sim, como geneticista, uma das coisas que me deixou sempre bastante frustrada, foi a ligeireza com que o mundo científico, sobretudo antes de ser conhecida a totalidade do genoma humano (no virar do milénio), atribuía «genes» para isto e para aquilo, com a maior desenvoltura, especialmente genes que tivessem que ver com o comportamento, com a inteligência, com a comunicação. Este tipo de «genética hipotética» era corrente em estudos genéticos incidindo sobre nossa espécie, sobretudo, mas também nas outras.

P- A projeção da nossa mentalidade no meta-modelo de como funciona o organismo, o cérebro, o genoma, etc. tem sido uma das maiores fontes de erro na interpretação dos seres vivos e, em especial, o comportamento humano. A atribuição da etiqueta «instinto» a sequências de gestos automáticas (ou tidas como tais), impediu o esclarecimento, até hoje, dos processos que determinam a instalação e reforço dessas tais sequências automáticas ou estereotipadas. Com efeito, demasiadas vezes, etólogos e psicólogos usaram a categoria do «instintivo» para qualquer comportamento que não tivesse sido «ensinado e aprendido». O relegar uma parte importante dos comportamentos animais para a categoria do instinto, era um modo de obviar o seu estudo sério, pois era postulada a transmissão hereditária desses comportamentos, através de «genes do comportamento». Estes postulados gratuitos e muito improváveis de «genes», aliás, não favoreceram o avanço da biologia do comportamento.

G- É verdade! Uma das descobertas mais inesperadas e «escandalosas» em genética, que decorreu da sequenciação completa do genoma humano, foi a constatação de que - no máximo! - existiriam cerca de 26 mil genes, na totalidade do genoma humano. Ora, isso era muitas ordens de grandeza menor do que as previsões dos cientistas, sobre o número total de «genes» que possuiria o genoma humano. Caso houvesse dezenas de milhões de genes, como muitos acreditavam na comunidade científica, não seria inconcebível que um certo número deles tivesse a função de codificar determinados traços de comportamento. O «instinto» seria meramente a expressão genética desses tais genes de comportamento. Isso era entendido dentro do determinismo biológico e bioquímico, apregoado pela quase totalidade dos cientistas em meados do século XX.

P- A palavra «instinto» é como aquela célebre frase da comédia de Molière, quando um médico explica ao seu paciente que a papoila dormideira (de onde se extrai o ópio) devia as suas propriedades, à misteriosa «virtude dormitiva»! O «instinto» não é mais que uma pseudoexplicação desse tipo. A dificuldade em compreender os fenómenos do comportamento coloca-se tanto em estudos incidindo sobre o Homem, como noutros animais.

G- Nós temos tendência a absolutizar o humano como algo radicalmente diferente doutros animais. Porém, em termos moleculares (construção das diversas moléculas biológicas) e mesmo celulares (a arquitetura das células, as estruturas celulares), muitas vezes não se pode distinguir o que provém dum humano, do que provém de outro mamífero. Não há diversidade verdadeira senão ao nível «superior» de organização, como sejam tecidos e órgãos. Aí sim, é possível distinguir o humano, pela anatomia e pela histologia. Não é realmente possível distinguir uma proteína humana da  doutros mamíferos, pela sua estrutura geral e mesmo pela sua função. Apenas podemos distingui-la pela sequência de aminoácidos, ligeiramente diferente no Homem em relação aos outros animais. Muitas vezes, essa diferença é irrelevante do ponto de vista funcional. A prova disso é que um gene de proteína pode ser inserido num cromossoma de outro ser vivo, obtendo-se a sua expressão correta, quer essa inserção seja num animal de experiência, quer num humano (para substituir um gene deficiente, em terapia genética): Em ambos os casos, o gene inserido desempenha na perfeição, o papel daquele que foi substituir.

P- Volto à questão que ficou em suspenso, do comportamento humano e da sexualidade, a comunidade científica, com especial relevo para os psicanalistas, mas com forte influência também nas outras disciplinas, decidiu transformar a questão da sexualidade humana, de um tabu, num assunto obsessivo e omnipresente. Isto não significa que os mitos envolvendo a sexualidade em si mesma tenham sido desfeitos. Penso que existe uma enorme confusão no espírito de muitas pessoas, que torna ainda mais complexo falar-se neste assunto, desde que se tenha a preocupação de honestidade e não se caia em demagogias.

G- Esta questão exerce sempre um grande fascínio, provavelmente porque, subjetivamente, sentimos que a nossa própria biologia e a nossa psique estão envolvidas. Mas, nesta como noutras questões que envolvem a biologia humana, a condição para se abordar cientificamente um problema é não o fazer com envolvimento dos nossos egos. Será possível com a sexualidade»? Será possível fazê-lo como descrevemos o aparelho circulatório, ou as funções hepáticas?

P- Colocas um problema metodológico sério. Pois nós temos emoções e estas, sendo recalcadas, não sabemos «a priori» quais sejam. Mas, é impossível avançar neste domínio, senão com o distanciamento que conseguimos em relação à descrição e funcionamento dos outros órgãos do corpo humano. Creio que um problema de fundo que tem surgido em muitas discussões sobre a sexualidade, é a permanente redução desta, ao prazer sexual. Esta questão tem «canibalizado» as discussões, sobretudo nas revistas populares e em shows televisivos. Esta questão, legitimamente, é objeto da curiosidade e interesse do público. Porém, as emoções e muitos aspetos típicos das situações amorosas, ficam na sombra.

G- Se nós somos condicionáveis, em termos gerais, isso deve-se às estruturas profundas, que existem em nós - provavelmente no cérebro, em primeiro lugar - que desencadeiam esse condicionamento. Ora, a publicidade usa e abusa de imagens subliminares (ou explícitas) que enviam mensagens imbuídas de conotação sexual. Se o faz, é porque o mecanismo funciona. Nós temos uma grande fragilidade a este respeito: Algumas atitudes e comportamentos, tal como o imaginário, direta ou indiretamente, têm relação com sexualidade. Mas, como em muitos casos de condicionamento, o que funciona mais eficazmente é o que não atinge o nível explícito, ou seja, fica ao nível subliminar. As estruturas psíquicas, a sua instalação e fixação no humano, não só antecedem a sociedade industrial, a televisão , etc.: formam parte do «fundo genético», anterior à emergência da própria espécie H. sapiens, ou mesmo, de seus antepassados mais longínquos.

P- Como noutros aspetos da biologia, aceito que os comportamentos se foram complexificando, foram sendo selecionados os indivíduos que tinham um conjunto de características hereditárias que favoreciam a maior flexibilidade ambiental. Explico-me: Há 7 milhões de anos, o ramo primitivo que foi dar os Chimpanzés modernos, o que foi dar os Bonobos modernos e o que foi dar o Homo sapiens moderno, separaram-se. A partir daí, há isolamento genético dessas três espécies de símios. A sua adaptação ao ambiente era fator decisivo para a sua sobrevivência: houve - constantemente - uma propagação diferencial dos genes mais adequados, pelas sucessivas gerações, em resultado da seleção natural. Mas, se virmos a distribuição ecológica atual dos Chimpanzés e dos seus antecessores, assim como a dos Bonobos, constatamos uma coisa: ela vai alargar-se ou estreitar-se consoante a progressão ou contração da floresta tropical-equatorial.
                                                                 Champanzé: Mãe e filho

                                           Bonobo: Mãe e filho

Já no caso das espécies da nossa linhagem, apesar de haver ramos colaterais, que acabaram como «becos sem saída», parece evidente que os mais bem sucedidos foram os que se conseguiram adaptar à Savana, a partir da sua adaptação prévia à Floresta tropical.
Parece-me errado, portanto, procurar a «síntese» entre o Chimpanzé e o Bonobo (atuais) como sendo a chave para as primeiras etapas da construção do humano. Sim, temos parentesco em comum; isso traduz-se por semelhanças tanto anatómicas como comportamentais, no sentido lato. Porém, a exploração eficiente do novo habitat, a Savana, implicou muitas adaptações correlativas e muitas diferenças em relação às espécies de símios que permaneceram no ambiente de Floresta. O andar ereto; a dieta mais especializada em gramíneas selvagens e em carcaças de animais (abandonadas pelos grandes carnívoros); as modificações metabólicas, conduzindo à utilização de energia disponível para o crescimento desproporcional do cérebro; o desenvolvimento de glândulas sudoríferas, a perda paralela de pelagem em grande parte do corpo, (possibilitando a caminhada debaixo de calor intenso, em longos percursos). Trata-se de muitas adaptações correlacionadas, cuja sequência cronológica ainda não está muito clara, sobretudo porque dizem respeito a partes moles, não fossilizáveis.
O andar ereto torna mais conspícuos os órgãos genitais (em ambos os sexos), assim como os seios das mulheres. O maior dimorfismo sexual em símios verifica-se nos gorilas, mas é bastante modesto na nossa espécie e em espécies que antecederam a nossa. Apesar das diferenças anatómicas, houve fósseis que foram considerados por engano (pelos traços anatómicos) como masculinos e se verificou serem femininos, e vice versa, quando se pôde extrair ADN e sequenciar os genes desses fósseis.

G- Aliás, em H. sapiens do Paleolítico, verificou-se que as mulheres tinham parte ativa em caçadas, por diversas evidências. Tal não deveria surpreender, em grupos pequenos, nómadas. Quando o número de adultos num grupo era baixo, não podia haver uma repartição exclusiva por sexos de muitas tarefas. Tal como a caça e colheita, muitas outras atividades devem ter sido partilhadas por ambos os sexos.
O que ocorreu foi uma projeção da imagem convencional do homem e da mulher, do fim do século XIX e princípios do século XX. Os arqueólogos que estudavam o «homem primitivo» admitiram, como dado imutável, o estatuto «inferior» da mulher. O preconceito impede de ver certas evidências, porque aquele que as vê, descarta automaticamente certas hipóteses. Pode até nem ser um processo consciente, nalguns casos.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A ARTE NAS ORIGENS


A mais antiga pintura rupestre conhecida

                                           Chauvet: A gruta maravilhosa

Introdução

Para nós fazermos um estudo sério sobre a origem da arte temos, primeiro, de definir o que é «arte», para que não se confunda com outras coisas que podem parecer, até parecer-se muito, com esta atividade designada por arte, mas não o são.

Primeiro que tudo, considero que a arte só se refere a atividade humana. Isto exclui os trabalhos de múltiplas outras espécies no estado natural, como as aves-tecelãs que tecem um ninho de complexidade e beleza magníficas, ou as aves-arquitetos que fazem túneis com toda a espécie de objetos vistosos, brilhantes, para atrair a fêmea, etc.  

Fig.1: Ave-tecelã e seu ninho

Fig.2:  Cápsulas e palhinhas de plástico, «recicladas» por ave-arquiteto

No domínio do comportamento animal, observam-se comportamentos complexos, tanto em mamíferos como em aves, relacionados com a corte antenupcial, a proteção das crias, a defesa do território, etc., que aparentam, aos olhos de  observadores ingénuos, estar imbuídos de sentimentos e mesmo de raciocínios humanos. Mas, na realidade, não o são: são comportamentos que se relacionam com funções vitais (nutrição, território, reprodução) do indivíduo ou do bando (nos animais sociais); são comportamentos resultantes da seleção natural. É sabido que esta opera não só sobre os aspetos anatómicos, como os comportamentais, ao longo de milhões de anos. 

O que distingue o comportamento humano, em geral, dos outros animais, é a sua natureza não inteiramente previsível. A arte - pela sua natureza, pelas formas e pelo modo como é construída -  dificilmente se poderá enquadrar dentro dos padrões de «seleção darwiniana»: Nós fazemos coisas, que não se podem explicar recorrendo aos conceitos de seleção, de vantagem seletiva para o indivíduo e/ou para o grupo. Também, especificamente humana, é a facilidade com que projetamos a nossa mente no passado ou no futuro:

                                                Fig.3: representação de uma caçada no período glaciar do paleolítico

Por exemplo - a narração duma caçada por um indivíduo, vai informar os outros, do mesmo grupo, que captam o essencial do que aquele pretende comunicar. 

                                           Fig.4: pedra talhada paleolítica e início de talhe de réplica atual

A projeção pela imaginação, permite que o talhador de instrumento de pedra visualize, numa pedra em bruto, o instrumento de pedra talhada que ele tem em mente. Ele fabrica esse instrumento dando golpes, segundo os ângulos certos, para obter a forma idealizada na sua mente.

Além disso, existe uma característica partilhada por todas as sociedades, incluindo as de caçadores-recolectores atuais ou que existiram há tempo não muito recuado; tem sido feito o seu estudo, no terreno, por antropólogos. Todas as sociedades humanas, incluindo as ditas mais «primitivas», têm algum sistema de crenças, uma espiritualidade, uma visão do mundo, um relacionamento com outros mundos. Isto exprime-se de múltiplas maneiras: Em termos de vocabulário, de costumes, de rituais, de representações com referência ao simbólico. 

                                                        Fig. 5: Totems num parque, em Vancouver (Canadá)

A humanidade «segrega» símbolos, não apenas verbais (os símbolos sonoros), como nas marcas, nos sinais, nos identificativos pessoais ou de grupo, que ficam registados no seu entorno, em objetos que utilizam, ou no seu próprio corpo. 

                                                                 Fig.6: Chefe com tatuagens, ilhas da Oceânia

Com efeito, tanto os povos de caçadores-recolectores, em várias zonas do globo onde ainda aí subsistem (na Papuásia- Nova Guiné, na Amazónia, na Austrália, em África), como os que deixaram de ser caçadores recolectores e sedentarizaram (como na Mongólia, ou na América do Norte), mas cujas sociedades foram estudadas ainda antes disso, todos apresentam ciclos de narrativas (orais), bastante complexas. Nelas, dão-se interpretações de fenómenos naturais, frequentemente relacionados com animais, ou relatos sobre as origens do Universo, dos humanos, ou da tribo. Estas histórias, que se transmitem oralmente, de geração em geração, fazem parte da sua identidade. Esta parte está perdida para sempre, no que respeita aos homens paleolíticos. Igualmente, a arte corporal nos paleolíticos, como pinturas corporais, escarificações e tatuagens, são impossíveis de detetar. Mas, nem tudo está perdido, em relação a tais vestígios de arte corporal. Foi descoberto, na África Austral um fragmento de pedra, com um desenho abstrato, feito com o pigmento ocre e com mais de 70 mil anos.  Pensa-se que esse ocre servia também para pintar o próprio corpo. 

                                                   Fig.7: Desenho abstrato, a ocre, com 73 mil anos, África do Sul

Foram achados, em abrigos neandertais, garras e restos de penas de aves, usadas como adorno, em especial, as de águias e doutras aves de grande porte. 

                                                   Fig.8: Ornamentos de garras de águias, por Neandertais

Datadas de 77 mil anos em relação ao presente, encontraram-se, na África do Sul, pequenas conchas. Noutras instâncias, encontraram-se conchas a centenas de quilómetros dos sítios na costa onde estas espécies existiam. Estas conchas possuem perfurações; seriam usadas em colares, ou noutros adornos. 

                                                    Fig.9: conchas perfuradas com 77 mil anos, África do Sul 

Assim, penso que, ao considerar-se a arte como propriedade exclusiva da espécie humana, tal não deve ser visto no sentido estrito da espécie Homo sapiens, mas deverá englobar espécies que a antecederam (3). Parece-me provável que se encontrem mais objetos, ainda mais antigos, em futuras escavações, visto que, recentemente, se fizeram muitos achados e foram reavaliados outros, nomeadamente, as datações de «objetos de arte móvel», com sinais abstratos. Alguns dos objetos estão associados a espécies anteriores ao homem moderno. 


                                    Fig.10: Sinais parietais recolhidos em todo o mundo (também em utensílios, etc.)

É uma característica notável que, desde a origem, a arte seja simbólicaMesmo quando é pictórica, não pretende retratar algo que se vê, mas entrar em comunicação com o mundo dos espíritos, ou algo deste género. O mito de uma arte paleolítica «naturalista», finalmente está a ser posto de lado. Este mito foi construído, a partir duma visão ideológica inconsciente ou não-intencional, por arqueólogos e paleoantropólogos, dos séc. XIX e XX, valorando esteticamente as obras, consoante a «parecença», ou «realismo» da representação. 

Ora, embora não possamos jamais saber com toda a certeza, muitas probabilidades existem de que as representações animais (e as poucas humanas que existem) estejam integradas nalguma forma de «religião», animista e/ou xamanista. Os que pintaram, desenharam ou gravaram, não estavam a «fazer arte», estavam a executar um ritual, a entrar em contacto com o mundo dos espíritos, algo da ordem do simbólico (5). Eram símbolos, da mesma forma que por exemplo - nós, se estamos imbuídos de cultura cristã - podemos «ler» as estátuas e as pinturas murais das igrejas e catedrais, que exibem cenas das vidas de Cristo, dos Apóstolos, dos Santos. Porém, os episódios a que se referem, são completamente incompreensíveis para alguém que ignore tudo do cristianismo e da Bíblia. 

Por exemplo, o mito de que as gravuras de animais se destinavam a propiciar uma boa caçada, já não é sustentável. Com efeito, raras são as representações de animais que eles efetivamente caçavam. Um caso extremo (1), é o seguinte: em gravuras parietais duma gruta do final da era glaciar, na Europa Central, existem exemplares da fauna de então, os rinocerontes, os mamutes, os leões das cavernas, os cavalos, os auroques e outros. Primeiro, alguns nunca eram caçados (como os leões); segundo, outros, eram-no raramente. No entanto, no chão da mesma caverna, 95% dos ossos fossilizados pertenciam a uma espécie de alce, a qual nem sequer está representada em desenhos nas paredes. Não lhes interessava a representação da espécie mais frequentemente caçada. É prova de que as pinturas e gravuras parietais são simbólicas, ou seja, de que possuem significados associados a forças e energias. As representações revestiam formas animais, através das quais os xamãs entravam em contacto com as tais forças e energias dos universos paralelos.

A Europa, no período que vai de 150 mil a 50 mil anos, anterior à vinda do Homo sapiens, era uma vasta extensão muito escassamente povoada por neandertais, uma subespécie diferente da nossa. Aliás, Homo neanderthalensis tem sido descrito como Homo sapiens, sub-espécie neanderthalensis, por alguns paleoantropólogos. Em todo o vasto território da Europa, desde a Rússia até à Ibéria, encontraram-se vestígios de neandertais

Note-se que as condições em que evolui a ciência paleoantropológica não são independentes das condições sociais, culturais e ideológicas em que as descobertas foram feitas e interpretadas. Temos uma ilustração disso, na visão do século XIX, do homem de Neandertal (11) próximo dos símios, bruto e estúpido. Esta visão, totalmente fantasista, tem persistido no imaginário popular, por mais obras de divulgação científica que sejam publicadas, negando a «bestialidade» dos neandertais. Pelo menos, o mundo científico vê esta espécie como muito semelhante à nossa, capaz de produção simbólica, abstrata: Uma espécie humana, no sentido lato. Com efeito, reconheceu-se, nos últimos decénios, a existência de arte parietal, de esculturas e de adornos (arte corporal) atribuídos aos neandertais, em sítios cuja datação é anterior à chegada dos sapiens a essas partes da Europa.

Compreender a arte paleolítica sem as nossas projeções

Uma compreensão sofisticada e uma leitura inequívoca das obras deixadas pelos sapiens e pelos neandertais, será impossível. Penso que tal nunca poderá acontecer, pelo menos de uma forma cabal, pois implicaria um grau de conhecimento aprofundado, impossível de se alcançar, das sociedades do paleolítico. Estamos a falar, na Europa, de um período desde há 60 mil anos, ou mais atrás, até cerca de 12 mil anos, em relação ao presente. Compreender as formas de expressão artística desse longo período, equivaleria a compreender o essencial sobre a organização social e religião ou cosmovisão, do homem paleolítico. Porque a arte, ou aquilo que nós designamos como tal, é uma forma de expressão, de linguagem, que - como todas as linguagens - tem as suas regras: Existem uma gramática e uma semântica, nas gravuras rupestres, associadas à cosmovisão do homem paleolítico (2). Para os que faziam parte dessa cultura, as gravuras eram inteligíveis, tal como para nós o são, os monumentos e a arte da nossa cultura.

Se me parece impossível fazer uma reconstituição, em pormenor, dessas sociedades do paleolítico, já não me parece tão inapropriado tentar compreender, em traços muito gerais, as condições de produção destas obras. Nós, hoje, ficamos espantados com a mestria, o olhar certeiro, a elegância das curvas de contorno, nos desenhos, gravuras, pinturas, baixos-relevos e esculturas. Porém, passada a fase de maravilhamento, devemos nos perguntar: Porque fizeram eles essas obras? Que papel desempenhavam tais obras? Como se inseriam nos dispositivos simbólicos desses grupos? Que tipo de religião ou de espiritualidade seria a sua? 

O que impulsionou o homem do paleolítico a produzir «arte»?

Daqui por diante, irei fazer uma reflexão mais filosófica, o que não implica renunciar ao rigor científico, mas antes situar-me num plano diferente de discussão. 

Esta segunda parte tem como eixo as interrogações seguintes:  Afinal o que ensina a arte paleolítica sobre nós, homens contemporâneos? Será que aprendemos algo sobre nós próprios? Como podemos ter um olhar não eivado preconceitos, sobre essa época "primordial"? O que é ser humano? O que é a criação artística?

 Alguém que se debruce sobre os vestígios dos muitos milhares de anos (milhões, até) anteriores aos períodos do que consideramos arte paleolítica (cerca de 60 000 a 12 000 anos, antes do presente), encontra indícios de que os humanos dessas épocas, adornavam o corpo. Temos como evidências, o ocre e outros pigmentos, as conchas perfuradas, as marcas intencionais em pedras ou ossos. Quanto maior distância no tempo, menores evidências haverá de tais vestígios, pela sua raridade e pelos efeitos do tempo nos mesmos.  

Mas, pode-se colocar a hipótese de que as formas arcaicas da humanidade já tinham expressões de significado simbólico (4),  que traduziam em forma pictórica ou «ideogramática», pois toda a evolução se faz em sociedade, em grupo e as formas de comunicação, de intercâmbio, entre elementos do grupo são fundamentais para sua subsistência. A coesão dentro do grupo é fortalecida por tradições comuns, narrativas míticas, cosmovisão (para não usar a palavra religião, cujo significado é demasiado estreito para este contexto). A linguagem era, certamente, capaz de exprimir um projeto, uma intenção, ou de descrever algo, presenciado apenas pelo locutor, mas não pelos ouvintes. 

O simbólico, a representação, traduzem-se naquilo que reconhecemos, hoje, como «arte». 

Creio na possibilidade de existência de pensamento simbólico, a partir do Homo habilis ou do Homo erectus. Não consigo imaginar que tenha existido (como existiu!) uma perpetuação de técnicas de fabrico dos instrumentos de pedra, das indústrias líticas, que implicam uma transmissão precisa de saber técnico, sem que houvesse também uma transmissão simbólica. 

A perpetuação oral da cultura, do saber técnico e dos mitos, tem de ter existido no Paleolítico, embora seja impossível reconstituir a sua estrutura e conteúdo concretos. Esta transmissão - material e imaterial - é observada e estudada por antropólogos, nas sociedades de caçadores-recolectores contemporâneas. Embora seja arriscado fazer paralelos, qualquer sociedade onde sejam perpetuadas tradições técnicas, de geração em geração, também deverá ter mecanismos de perpetuação, pelo menos tão eficazes, para sua cultura imaterial, que são a língua, os ciclos de lendas, as crenças e arte. Note-se que a expressão artística dessas culturas se encontra, muitas vezes, em suportes perecíveis. Por exemplo, se os antropólogos não tivessem estudado as culturas da Amazônia, bem pouco subsistiria da sua cultura artística material, pois ela compõe-se de artefactos, quase todos confecionados com materiais frágeis e rapidamente perecíveis  (cordas de fibras, madeiras, penas de aves, etc.).  

Há cerca de 3 anos (em Dez. de 2018) foi divulgada a descoberta de um painel de pinturas rupestres, datadas com segurança do paleolítico, numa ilha que é hoje da Indonésia, em Sulawesi: esta arte é muito estilizada e contém a representação de uma fauna muito diversificada. No mesmo grupo de grutas, foi descoberta a mais antiga representação humana  (6) até hoje conhecida (isto pode mudar com novas descobertas, claro).

                         Figura 11: cabra selvagem e figuras humanoídes (Sulawesi, mais de 40 mil anos)

O papel das representações humanas e animais

As representações humanas são raras na arte parietal paleolítica. No período neolítico, pelo contrário, existem numerosos exemplos de figuras humanas.

Talvez tenha existido um tabu nos tempos mais recuados, em relação à representação humana. O certo, é que as poucas representações que se conhecem, com mais de 25 mil anos, frequentemente apresentam a figura humana fundida com a de certos animais


                                                    Fig. 12: Homem-leão, estatueta da idade do gelo

Como o homem-leão, estatueta encontrada na Alemanha, dum homem com corpo humano e cabeça de leão; ou de homem com cabeça de ave e sexo em ereção, numa gravura rupestre em Lascaux; ou, doutras figuras paleolíticas mais recentemente descobertas, como as de Sulawesi, que também apresentam um caráter de homem-animal. 

Estas raras representações, poderiam representar a transformação experimentada pelo xamã, que entra no corpo e no espírito dum animal, que pode ser o animal totémico do clã, ou outro, e que faz a viagem assim transformado, ao universo dos espíritos. Esta descrição de viagem, baseia-se em relatos de xamãs contemporâneos, de locais do planeta onde ainda é praticado o xamanismo. O que, muitas vezes, nos é descrito como sendo «cenas de caça» poderiam, mais provavelmente, ser cenas do encontro do xamã com os espíritos animais, nesse universo paralelo. Lembremo-nos de que as representações animais são símbolos de forças universais, tais como os princípios masculino e feminino (André Leroy-Gourhan). 

Note-se que o xamanismo implica que o xamã ou mediador entre mundos (6), fique num estado de transe. Os resultados tangíveis desses transes podem estar gravados na rocha. 

                                               

                                             Fig. 13: Impressões de mãos desenhando figura animal (grota Chauvet)

Uma das figuras mais intrigantes da célebre gruta Chauvet é aqui acima reproduzida. Na foto (fig.13), vemos pontuações, feitas por impressão de mãos, desenhando uma figura animal. Esta figura zoomorfa, crê-se seja de um rinoceronte: os rinocerontes lanígeros, tal como os mamutes, faziam parte da fauna da Europa, nessa época. O que tem de particular esta representação, é ser feita por calques de mãos. Talvez tenha sido delineado, previamente, o contorno do animal e depois tenha desaparecido, ou talvez não. Note-se que - na mesma gruta, noutros locais - rinocerontes e outros animais, são desenhados, com grande requinte e pormenor, portanto, com domínio das técnicas. Provavelmente, o que vemos não é uma maneira fruste de representar um animal, mas o resultado duma cerimónia encantatória. 

Muitos especialistas têm notado que os animais estão, muitas vezes, como que a sair das fendas nas rochas. Segundo Jean Clottes, eles representam as aparições, como mensageiros do(s) outro(s) mundo(s), invocados pelo xamã. Eles estão no mundo indistinto, no mundo das trevas, no mundo obscuro e denso da matéria bruta. Segundo Clottes, estas figuras significariam que os espíritos animais se esgueiram para fora desse(s) outro(s) mundo, para o nosso, através das fendas. 
As visões e alucinações são frequentes, em grutas, quando o teor de oxigénio no ar se reduz*, pelo que o cérebro recebe menos oxigénio. A diminuição temporária de oxigénio induz o estado de transe ou de hipnose, que experimentariam as pessoas nesses rituais iniciáticos, sempre efetuados à luz de tochas e lamparinas (que consomem oxigénio e libertam CO2), nas zonas mais recônditas das cavernas.
A sensação de embriaguez decorrente, podia ser interpretada como «viagem» até esses outros mundos. Claro que isto é muito especulativo, mas nós temos conhecimento detalhado do uso frequente de alucinogénios -com efeito análogo -  nos rituais xamânicos, no presente.
Em todo o caso, tais imagens não se destinavam a ser vistas em pleno dia, eram acessíveis apenas com grande esforço. Aliás, as imagens mais interessantes das grutas, em todo o mundo, geralmente não se situam próximo da entrada. Não eram imagens «banais», as representações feitas em zonas recônditas (**). As grutas eram sítios misteriosos, onde se entrava para praticar rituais. Com efeito, não existem vestígios de fogueiras, com restos de alimentos (apenas fogueiras para iluminar as paredes das grutas), nas câmaras mais recônditas, onde se situam as mais impressionantes representações parietais.
 Os ursos das cavernas eram um perigo real: Encontrar um deles, acabado de acordar da hibernação, podia significar a morte. Obviamente, as cavernas eram locais de culto e de atividades iniciáticas, não de vivência quotidiana. O mito de que o homem primitivo «viveu nas cavernas» tem persistido no imaginário do público («o homem das cavernas»), mas não tem base científica, ou mesmo, razoabilidade. 

                                       
  Fig.14: Foz Côa, gravura de cavalo selvagem e outros animais sobrepostos

As figuras ao ar livre de Foz Côa (vale do Côa) incluem animais que então povoavam a região, como cavalos selvagens,  cabras selvagens, veados,  auroques. Também se nota aqui a sobre representação de determinados animais, enquanto outros são raros, ou estão ausentes, apesar de presentes na fauna da época, e de serem frequentemente caçados, como os javalis. Podemos estar perante animais totémicos, simbólicos do clã. Nota-se também aqui a escassez da representação humana. Infelizmente, uma representação humana, o chamado «homem de Piscos», gravura com cerca de 10 mil anos, foi vandalizada há alguns anos!

Fig.15: Homem dos Piscos (c.10 mil anos, com diagrama sobreposto)


Abundância de signos na arte parietal paleolítica

                                                               Fig.16: Signos parietais presentes em vários sítios

Os signos abstratos estão presentes em abundância, quer nas paredes de grutas, quer em locais ao ar livre e - sobretudo - em muitas peças de arte móvel. Porém, tem havido insuficiente estudo e teorização sobre eles. Talvez por estarem  dispersos e por ser muito difícil - senão impossível - saber o que representam.
 A exceção, são traçados muito esquemáticos, quase abstratos, de sexos femininos (vulvas) ou masculinos (pénis, estes muito mais raros, em relação às vulvas). Estas imagens de órgãos genitais estão isoladas, não estão inseridas numa figura. Penso que podem fornecer uma pista, embora não constituam, por si sós, uma «chave» para a simbologia paleolítica. Mas, nós compreendemos o que representam, em primeiro grau. Podemos inferir que estejam associadas a simbologias de fecundidade e/ou de forças naturais. O contexto em que se encontram, mostra claramente não serem representações de ato sexual. 

A abundância dos signos (abstratos, ou quase) é estimada em cerca de 50% das imagens, nas cerca de 400 grutas e locais paleolíticos euroasiáticos, contendo arte parietal. No entanto, as 50% de figuras reconhecíveis (em geral, animais) mobilizam muito mais as atenções. 
Este interesse porém, não deve fazer-nos esquecer que as próprias figuras animais (e humanas) são a parte mais vistosa de todo um conjunto. As marcas de mãos, em negativo ou em positivo, presentes frequentemente onde exista arte parietal, terão estado associadas a determinados rituais, afim de estabelecer contacto com o mundo dos espíritos.
É notável que as mesmas ou semelhantes imagens «hieroglíficas» ou «abstratas» sejam frequentes e apareçam nos sítios mais diversos, o que denotaria uma certa universalidade destas formas. São em número bastante limitado, essas formas. Elas podem encontrar-se à distância de milhares de quilómetros e persistirem durante dezenas de milhares de anos. 
Embora não sejam uma escrita, certas características destas formas abstratas inclinam-me a raciocinar em termos de arquétipos. Penso que estejam ligadas a um fundo comum, com a sua semiótica e com seus códigos próprios. Poderiam ser indícios da espiritualidade, da cosmovisão do homem caçador-recolector. Poderiam ter uma função de apoio visual para narrativas, ou de sinais iniciáticos ou ainda, votivos para conciliar os espíritos dos outros mundos. Com efeito, estes sinais estão muito presentes nos locais de culto que são as grutas.

Anterioridade da arte e da espiritualidade do homem paleolítico

O que carateriza a humanidade é sua relação a um mundo imaginário, ou a procura da sua relação com o cosmos. Os processos de evolução da espécie humana e de espiritualização, ou de criação artística, vão de par. É improvável (e seria bem mais difícil de imaginar!) que espécies do género  Homo, anteriores à nossa, fossem capazes de comunicação, de usar uma linguagem, de fabricar objetos em pedra (e muitos outros, mas que não subsistiram), de perpetuar uma cultura material, mas sem que existisse, em simultâneo, uma cultura imaterial, composta por ciclos de narrativas, lendas, mitologias...Todas as populações humanas hoje existentes, todos os povos presentes e passados, têm algum tipo de cultura imaterial. 
É um facto de grande importância, encontrarem-se gravuras rupestres e signos abstratos muito parecidos, na Europa do Oeste e numa ilha da Indonésia, distantes de milhares de quilómetros, ambos com mais de 40 000 anos(12), ambos sendo obra de Homo sapiens. Eram os mesmos, os humanos que saíram de África e que migraram,(10) quer para a Europa, quer para a Ásia, na mesma altura. Estes achados arqueológicos dizem-nos que, no ponto de origem - ou seja, em África - eles já possuíam a cultura que irão transportar depois, nas suas migrações, para as paredes de grutas de França e Ibéria (Europa) ou de Sulawesi (Indonésia). 
Mais recentemente, foram encontradas figuras rupestres na Colômbia (9), em local datado do final do paleolítico. Os povos iniciais do continente americano atravessaram, pela Beríngia, o estreito de Behring há talvez uns 20 mil anos. 

Isto significa que a origem da arte se situa no continente africano, pois este é também o berço das formas ancestrais de humanidade (8). Existem abundantes provas de que foram originadas no continente africano, tanto a espécie Homo sapiens, como várias outras espécies do género Homo. Houve migrações para fora de África, a mais antiga terá sido a dos Homo erectus, talvez cerca de 1,8 milhões de anos, em direção à Ásia. Quanto aos Homo neanderthalensis, estes foram originados no continente Euroasiático, a partir duma espécie, vinda de África, H. heidelbergensis, presente na Península Ibérica (Atapuerca) e noutros pontos da Europa. 

O paleolítico contrasta com o neolítico, tanto no modo de vida, como na arte

As formas e conteúdos próprios do paleolítico são claramente caracterizáveis. A arte - pictórica ou abstrata - muda, de modo radical, a partir do neolítico. 
Uma interessante apresentação de arte parietal a céu aberto, pela extensão e duração (de -24 mil anos, a cerca de -5000 anos) é o Vale do Côa. Nas gravuras mais antigas, aparecem exclusivamente como elementos figurativos animais ou  formas antropomorfas em que os elementos humanos se fundem com os de um animal. No final do paleolítico (14 a 12 mil anos) a representação da figura humana torna-se mais frequente. 
As gravuras mais recentes, já do neolítico (com 10 mil a 5 mil anos em relação ao presente), por contraste, apresentam as figuras humanas em posição «dominante» em relação aos animais. 
Tal mudança está bem patente na muito recente descoberta (7) de gravuras neolíticas (-10 mil anos em relação ao presente, ou mais recentes), nas margens do rio Ocreza, afluente do Tejo (próximo da vila de Mação). 
Este tipo de representação, dando o papel central à figura humana, significa uma mudança na religiosidade: As religiões tornam-se formais, institucionalizadas, possuindo uma casta de sacerdotes, uma hierarquia, um rei no cume, etc.
O homem modifica  a visão da sua relação ao Cosmos, à Natureza. A representação dos animais passa a segundo plano ou a ser mostrada sob forma subordinada aos humanos. Nesta época, a representação do mundo espiritual sofre uma mutação também. O mundo espiritual torna-se, a partir das sociedades agrárias arcaicas do Neolítico, o reflexo da sociedade humana, com suas hierarquias, justiça, forças soberanas, etc. 

                               Fig.17: Gravuras rupestres neolíticas, vale do Ocreza: cena com figuras humanas.     
              
Estes factos contrastam com a constância da cosmovisão paleolítica, cujos testemunhos se estendem por cerca de 30 mil anos
No entanto, não acredito em visões idílicas do paleolítico, sobretudo porque uma grande parte desse período foi numa era glaciar. As condições rudes puseram à prova os genomas humanos: Deve ter havido uma forte pressão de seleção darwiniana associada, durante grande parte deste período. Mas, embora o seu modo de vida não tenha sido fácil, os seus ossos fossilizados dão-nos a indicação de que as pessoas não sofriam - em geral - de desnutrição, duma dieta com múltiplas carências, ou de doenças epidémicas. Todas as patologias atrás referidas estão presentes em ossadas fossilizadas, a partir do neolítico (início: 12-10 mil anos). Pelo que se pode inferir do registo fóssil, as pessoas no Neolítico, viveram - por vezes - com graves carências e com doenças nutricionais. Essas fomes periódicas, malnutrição, epidemias estendem-se até hoje. Não começaram no paleolítico, mas com a revolução neolítica, com a sedentarização e a introdução da agricultura. 

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* A respiração das pessoas e a combustão  dos archotes, no espaço fechado, vão causar o aumento do CO2 e a diminuição  do O2, no ar da gruta.

** O antropólogo Jean-Loïc Le Quellec tem interpretado a arte parietal como testemunho de um mito das origens, da emergência dos animais e dos humanos do seio das profundezas. Os rituais e as pinturas associadas às grutas seriam um processo de atualizar essa criação. Pode ser que esta interpretação se baseie demasiado em lendas e mitos que ele recolheu, junto de várias culturas contemporâneas. Nunca se está a salvo de cometer anacronismos, quando nos debruçamos sobre mistérios longínquos!  
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Bibliografia

(1) Modern Humans’ Earliest Artwork and Music: New European Discoveries


(2) Langage de signes et communication graphique à la fin du Magdalénien

(3) Les secrets de la grotte de Bruniquel

(4) Paleolithic Cave Arts in Northern Spain(1) El Castillo Cave, Cantabria

(5) La Grotte de Niaux FR3 2017

(6) Earliest hunting scene in prehistoric art

(7) Mação anuncia descoberta de novas gravuras rupestres no vale do Ocreza

(8) Nouveaux regards sur les arts préhistoriques

(9) Spectacular Ice Age rock paintings found in Colombian rainforest

(10) Conferência de J-J Hublin - Le Peuplement de l'Europe

(11) Conferência de J-J Hublin - Neandertais e Denisovianos

(12) Cave Paintings - Earliest-Known Animal Cave Art

(13) The World Oldest Animal Paintings