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sexta-feira, 4 de agosto de 2023

REPÚBLICA DOS POETAS Nº5: FERNANDO PESSOA

                                     



A personalidade deste poeta português foi tão escrutinada, tão classificada, tão psicanalisada, que é perfeitamente inútil acrescentar ao rol de opiniões que têm desfilado, ao longo das décadas que sucederam ao seu «redescobrimento», sobretudo (nos anos 60 e depois a nível mais internacional a partir dos anos 80). Com efeito, ele viveu numa semiobscuridade, produzindo de forma prolixa, sobretudo textos poéticos, mas também esboços de romances, de ensaios e uma abundante correspondência. 
Aqui, irei remeter os leitores para as várias intervenções (1) feitas pelo «fantasma» Pessoa, frequentando o meu blog. Tem sido visitante infrequente, mas amistoso.
Eu confesso que o meu substrato de «Filosofia Natural» deve muito ao poeta filósofo. Porventura, foi o mais profundo de todos os poetas que Portugal teve,  esta república dos poetas. Foi Pessoa que escreveu 'a minha pátria é a língua portuguesa'. Existem muitas outras citações dele, que se foram banalizando; muita gente nem suspeita terem sido cunhadas por ele.
O que é válido para Pessoa, não se aplica aos que tentaram, de uma forma ou de outra, seguir-lhe no encalço : Isto, porque a maioria não possuía a centelha de génio que pudesse incendiar a imaginação, como  o fez o Mestre.
A poesia pessoana está na intercessão entre o paradoxo, o esoterismo, o classicismo, o modernismo, a procura do ideal, a exploração sistemática dos recursos linguísticos, e possui muitos aspetos  contraditórios: racional-irracional, natural-artificial, espontâneo-elaborado.
A complexidade e a diversidade dos estilos, derivam de sua própria personalidade pluri-facetada, que ele conscientemente assume. Por isso, não pode ser assimilado a uma qualquer forma de «esquizofrenia», porque o doente esquizofrénico não está consciente; é joguete do seu mundo interior perturbado. Aliás, não conheço obras de qualidade por esquizofrénicos; muitos doentes deste tipo rapidamente descem a um estado de profunda degradação mental. Pelo contrário, Pessoa encarna, de forma deliberada, cada faceta da sua personalidade complexa através de personagens fictícios (os heterónimos) que acabam por atingir uma espécie de vida «semi autónoma». 
Dos muitos heterónimos que se encontram em sua obra manuscrita (o mítico «baú» com as obras deixadas inéditas), sobressaem alguns, quer pelo volume produzido, quer pela celebridade atingida, depois de falecido o autor. 
Pessoalmente, na «leitura-descoberta» da obra pessoana durante a minha adolescência (anos 1970), o heterónimo que mais me impressionou foi o de «Alberto Caeiro». 
O «Guardador de Rebanhos» é uma série de poemas que podem ser lidos como um longo poema. O próprio Pessoa afirma - terá sido a fingir, ou verdade? - que os escreveu todos de uma vez. 
Para mim, estes poemas são um ponto alto inegável de poesia na língua portuguesa e de reflexão filosófica, tomando a forma de verso. 

Alberto Caeiro

XXI - Se eu pudesse trincar a terra toda

XXI

Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar,

E se a terra fosse uma coisa para trincar

Seria mais feliz um momento...

Mas eu nem sempre quero ser feliz.

É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,

E a chuva, quando falta muito, pede-se.

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade

Naturalmente, como quem não estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo

Na felicidade ou na infelicidade,

Sentir como quem olha,

Pensar como quem anda,

E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...

7-3-1914

“O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.

  - 45.




terça-feira, 15 de novembro de 2022

FERNANDO PESSOA (POEMAS DE ALBERTO CAEIRO): «O mistério das coisas, onde está ele?»

O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
 
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

  - 63.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.


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Natura naturans





Fernando Pessoa/Alberto Caeiro define em poucas palavras a filosofia de Espinoza, a existência do Mundo, da Natureza, em si e para si. Para Espinoza, a Natureza identifica-se com Deus. «Deus sive Natura». 

«Deus» e «Natureza» são nomes, designações daquilo que é ação: Não uma coisa, não um objeto, nem mesmo o «objeto maior», que é o próprio Universo.

 Pois, para nós, que identificamos o Universo com a sua própria génese, teremos de incluir a existência de uma «força», uma «consciência», o que também podemos designar como Deus. 

Mas não podemos definir Sua existência, como coisa, como um ser: Porém, a humanidade apreende e vive essa relação com o Cosmos de forma pessoalizada. Por isso, o «Pai nosso que estais no Céu...» e todas as representações humanizadas em todas as religiões.

Para a tradição filosófica do Cristianismo, no entanto, não existe uma definição total de Deus. Visto que Ele está acima de qualquer tentativa de conceptualização, não se pode definir. 

É assim que eu interpreto o poema transcrito; um dos poemas mais belos e mais filosóficos de Fernando Pessoa. Ele não foi apenas poeta, mas igualmente um pensador, que abriu caminhos a muitos trabalhos filosóficos posteriores.


PS1: Fernando Pessoa (ortónimo) escreve na revista «A Águia» uma apreciação crítica do seu heterónimo Alberto Caeiro: Eis alguns parágrafos de prosa do poeta: 


«O que o sr. Alberto Caeiro faz é uma abstracção concreta. Veste de concreto uma tendência abstracta, que, naturalmente não de propósito, não deixa atingir o seu máximo de abstracção, mas que fica, bem reparando, nem abstracta nem concreta. E o materialismo abstracto foi tornado, por conseguinte, num materialismo extremamente relativo.

No sr. Alberto Caeiro toda a inspiração, longe de ser dos sentidos, é da inteligência. Ele, propriamente, não é um poeta. É um metafísico à grega, escrevendo em verso teorizações puramente metafísicas.

Repito que o admiro, que o admiro extraordinariamente. Mas não apraz à minha análise chamar-lhe um poeta abstractamente materialista. É um filósofo abstractamente materialista aureolado de alma em um poeta abstractamente místico. Creio no Deus em que o sr. Caeiro não crê que existe como afirmação do sr. Caeiro e como verdade pura.

Assim como para materialista o acho espiritualista em extremo, e como para poeta o acho filósofo em excesso, para espontâneo acho-o consciente de mais. Sei o que é pensar auto-objecções [...] ao ler O Guardador de Rebanhos pois reparei como o Poeta aqui e ali, nesta ou naquela altura dos seus versos, vai sub-repticiamente ou não, respondendo às objecções possíveis.  » 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

FILOSOFIA NATURAL?




A filosofia sempre me fascinou. Embora não me considere um filósofo, tenho alguma formação e, sobretudo, tenho-me interrogado sobre os processos cognitivos, sobre os afetos também, quer como biólogo, como professor ou como pessoa que interage e troca com os outros, seus semelhantes. 



Mas, desdenho as abordagens demasiado estruturadas, codificadas, em linguagem hermética. Não que seja impossível compreendê-las. Porém, as mais das vezes, faz-se um esforço para compreender o que o autor de um «sizudo» tratado filosófico quer dizer... e chega-se à conclusão de que o resultado não merecia o esforço. Igualmente, os filósofos de «modo de vida», que aparentam possuir afinidades com o meu pensamento, na maior parte dos casos não as possuem, pois se limitam a reforçar os lugares-comuns das massas, tendo assim venda assegurada dos seus livros. 

Mas é verdade que precisamos de filosofia como de «pão para o pensamento». Sem ela, será realmente impossível aprofundar as coisas importantes da vida - a própria vida, o amor, a amizade, o poder, a justiça, o espírito... 

Muitas vezes encontro mais poesia nos textos ou imagens que não têm a pretensão de ser «poéticos». O mesmo se passa em relação á filosofia.
Por exemplo,  Alvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, junto com Fernando Pessoa, formam um quarteto de poesia filosófica, onde nos podemos sempre nutrir, onde nos podemos refrescar e curar das banalidades que invadem o nosso universo mediatizado.

A filosofia natural é praticada, estudada e aprofundada em múltiplas sociedades, épocas e civilizações. Porém, não é reconhecida sempre como tal. Por exemplo, a corrente conhecida por Taoismo é mais uma filosofia do que uma religião; tem como pontos centrais um estar dentro dos processos naturais, aceitar o mundo tal como ele é, não desprezar as energias que moldam o Universo, mas fazer tudo em obediência com esse Todo. 
A Filosofia Natural do Ocidente surgida, em grande parte, no seio das correntes materialistas dos séculos XVI-XVIII, mas também das correntes espirituais, deu-nos muita abertura para pensar o Mundo em moldes não estáticos, em dar o primado da experiência na busca da verdade, por fim reconhecendo na Natureza uma Mestra, que se deve seguir, por Ela nos dar as melhores soluções para os nossos problemas. 

A Filosofia Naturalista opõe-se ao racionalismo puro e duro, que deriva tudo de proposições matemáticas, chegando ao ponto de demonstrações da existência de Deus e outros absurdos. Não que seja absurdo postular a existência de Deus, entendamo-nos. Considero absurdo uma DEMONSTRAÇÃO dessa existência. 

No século XXI multiplicam-se os sinais de um renovo da Filosofia Natural, colocando a tónica numa filosofia como base e guia para a sabedoria. A vocação da filosofia está mais do lado da sabedoria do que do conhecimento científico, embora seja indispensável uma reflexão filosófica no âmago da pesquisa científica e uma reflexão sobre os resultados dessa pesquisa. 
A Filosofia Natural pode e deve estar em harmonia com os conhecimentos científicos, não os repudia, não os pretende «superar». 
Ela apenas tenta compreender a Natureza por dentro, na esperança de encontrar aí um guia para como conduzir a vida do próprio ser pensante. 
Pragmaticamente, pode ir buscar inspiração à Natureza para soluções tecnológicas que são aplicadas neste ou naquele domínio prático. 
Mas a filosofia da natureza vai muito além dessa «cópia» do natural, vai tentar estar em harmonia com a Natureza, vai tentar inserir-se harmoniosamente nos ciclos naturais.

O culto da Divina Natureza é, por vezes, algo limitado a Ela própria, como não existindo nada para além Dela (versão materialista) ou por vezes, é encarado como a expressão duma Divindade Cósmica, duma manifestação ou expressão da Divindade, mesmo como corporização do Divino.

Em ambos os casos, tem-se uma atitude de respeito para com o Mundo Natural e que, quanto mais não seja, se torna essencial para salvaguarda da vida e da saúde do nosso Planeta.

Sabemos como é frágil o ecossistema global, como o ser humano tem inflingido terríveis golpes nos equilíbrios naturais, mas ainda sem afetar de forma irreversível a possibilidade da recuperação da saúde do Planeta e dos Humanos que nele habitam. 



A Filosofia da Natureza, em todas as suas variantes, constitui um caminho sensato, pois se revela indispensável à sobrevivência de todos nós.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

«A ESPANTOSA REALIDADE DAS COUSAS» ALBERTO CAEIRO/ FERNANDO PESSOA


A Espantosa Realidade das Cousas 

A espantosa realidade das cousas 
É a minha descoberta de todos os dias. 
Cada cousa é o que é, 
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, 
E quanto isso me basta. 

Basta existir para se ser completo. 

Tenho escrito bastantes poemas. 
Hei de escrever muitos mais. naturalmente. 

Cada poema meu diz isto, 
E todos os meus poemas são diferentes, 
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. 

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. 
Não me ponho a pensar se ela sente. 
Não me perco a chamar-lhe minha irmã. 
Mas gosto dela por ela ser uma pedra, 
Gosto dela porque ela não sente nada. 
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento, 
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. 

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; 
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, 
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; 
Porque o penso sem pensamentos 
Porque o digo como as minhas palavras o dizem. 

Uma vez chamaram-me poeta materialista, 
E eu admirei-me, porque não julgava 
Que se me pudesse chamar qualquer cousa. 
Eu nem sequer sou poeta: vejo. 
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: 
O valor está ali, nos meus versos. 
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.