terça-feira, 31 de maio de 2016

O que é uma «ESCOLA SEM MUROS»? MEDITAÇÃO PEDAGÓGICA - PROVOCAÇÃO REFLEXIVA

NB: este texto serviu de base à minha intervenção no Debate na sequência da Conferência «sobre o Conceito de uma Escola Sem Muros», realizada a 28-05-2016 na «Fábrica de Alternativas», Algés 

      

O meu ponto de partida para esta ideia, foi o constatar que estamos (quase) todos concentrados numa ideia de «escola», vista como uma espécie de fábrica de «futuros trabalhadores e cidadãos», coisa que correspondeu à era Taylorista e Fordista do século XX. 
Porém, a escola como aparelho ideológico do Estado (sem dúvida permanece assim, mesmo em escolas privadas ou cooperativas) é uma realidade que esmaga o indivíduo, que o marca a ferrete como sendo «escolarizado» (ou não), detentor de «diplomas (ou não), ou seja como explorável, como «útil-utensílio» na forma última de alienação no trabalho e pelo trabalho.
A questão do trabalho-mercadoria ultrapassa então a questão laboral; não poderia ficar assim «limitada» ao que se passa no local de trabalho: Como Marx viu e muito bem, a alienação do trabalhador implica que esteja completamente destituído de poder, escravo à mercê de uma máquina impiedosa que fabrica «lucro» antes de produzir bens e serviços... Pois o fim último da produção desses bens e serviços é o lucro.
O homem é portanto reduzido a uma «variável ajustável» às conveniências da «empresa», do capital. O capital é que rege o nosso ser e devir de nós todos, produtores/consumidores que somos. Apenas teremos uma hipótese de nos emanciparmos: a de nos apossarmos de nosso ser, nossa inteligência, vontade, querer e «coração», para construir (ou reconstruir) um mundo onde o humano esteja no centro.
O mundo social é um mundo sempre construído por nós, mas o nosso «input» nele é variável. Podemos ter o input de «formigas» OU SEJA, DE AGENTES ANÓNIMOS intercambiáveis, exploráveis, recicláveis ou deitados fora, como lixo... ou- em alternativa - sermos PROTAGONISTAS da nossa própria vida, da nossa construção interior, da nossa educação, dos laços diversos que constituem a teia única de cada ser no seio da sociedade.
Podemos fazer isso, sem necessidade de grandes teatros e proclamações, de grandes manifestos e marchas, que -muitas vezes- apenas são encenações do capital, ou seja, formas dele nos ludibriar e nos convencer de que sim, estamos a fazer algo por vontade própria, que estamos a mexer com algo, que estamos a ser «agentes ativos» de mudança. Mas, na realidade, continuamos num estado alienado, desapoderado. Isto é: temos todos os sintomas de zombies sociais…
A condição primeira para a libertação, emancipação e autonomia, enquanto indivíduos, grupos, comunidades e sociedades em geral, é de uma tomada de consciência social.
Por oposição à consciência individual que está centrada no ego, a consciência social parte da existência dum «sofrimento social». Face a este sofrimento, a atitude ativa é a de descobrir, debater, analisar, procurar soluções dessa disfunção social.
O debate proposto, sobre o conceito de uma Escola Sem Muros, é um contributo para essa procura de soluções.






O MEU QUERIDO TON-TON ÉDOUARD



Tenho o grande privilégio de ter herdado muitos quadros deste meu tio pintor. A sua arte acompanhou-me sempre, em todas as etapas da minha vida, seja na casa de meus pais, seja na de minha avó Louise, seja mais tarde, quando tive casa própria. 







É com alguma mágoa, porém, que verifico que seu génio não tem grande público, hoje em dia! Não existe público para apreciar o realismo tranquilo, sereno, o domínio da técnica pictórica e a capacidade de transmitir a «vibração» do mundo. 
No entanto, as suas obras educaram o meu olhar. Se posso olhar esse mundo, directamente e usufruir do seu espectáculo como obra de arte natural, muito o devo ao meu Tio-avô. 


- Como poderia eu ser quem sou sem ti, Ton-Ton querido? Morreste quando eu tinha apenas oito anos. Porém, a tua influência em mim e teus ensinamentos ficaram para sempre. 


Olho para a arte, hoje em dia, com um sentido não construído pela frequência de cursos em faculdades ou academias. 

Porém, a fruição da arte, toda ela, e todos os estilos, é para mim coisa espontânea e natural; talvez porque internalizei a arte de um pintor, assimilei-a profundamente, puramente, por intuição. Compreendi a sua maneira de olhar o mundo, a natureza, e pessoas. 

Em 2009, já com a sua Filha Huguette muito doente, atrevi-me a fazer o catálogo da Obra do meu tio-avô. 

Eu sinto o dever (e tenho prazer) em preservar o património, não só familiar, mas de toda a gente, pois afinal a arte não se deveria deixar espartilhar por limitações de propriedade, pelo menos no que toca ao usufruto da mesma e do cultivar do gosto. 

Oxalá outras pessoas, que possuem em casa ou têm acesso a património artístico com valor, o publicitem como eu o fiz, em relação à obra de meu tio-avô. 

Pode-se  visitar uma «exposição virtual» no blogue IN MEMORIAM.

Acompanhei o lançamento do blog e do catálogo com um livrinho de divulgação, que mostrava uma pequena selecção de sua obra e fazia um esboço de biografia, como introdução.

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(Lisb. 1886 - Lisb. 1962)


Retratos 

LOUISE, Irmã do Pintor, quando jovem

Huguette, filha do pintor


Paisagens 

                   




Naturezas Mortas e Vasos Com Flores 



  

terça-feira, 24 de maio de 2016

CONTO: A ESTRELA DO MAR


Nasci aqui, aqui cresci.



A terra e o mar... tanto que ver, 
refletia, olhando o céu.



Cedo aprendi

que havia vida por todo o lado, 





                                                       até debaixo das rochas!




Um belo dia
saí de casa, fui ao mar alto



                                   Mas voltarei, outro dia.
                                   Outro dia darei à costa 


Estrela de luz
no céu 
das estrelas do mar...



PAISAGENS INTERIORES


«Paisagem interior», desenho a lápis sobre cartão, por Manuel Banet datado de 14-04-2016



   

sábado, 21 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Frottola «Vergene Bella», Bartolomeo Tromboncino





Versos a Afrodite, Deusa da Geração do Amor e da Vida

A cada passo meu, dentro deste jardim, se vai aproximando o coração da luz. Em ti encontrei o fruto escondido do amor sem pecado. Do amor que se estabelece entre dois seres de luz, fora do tempo e do espaço, porque estão no plano universal do amor de Deus.

As guerras que nos atormentavam, as de ferro e fogo, as de corações inflamados pelas paixões terrenas, não desapareceram, mas não nos causam já esse abalo que nos desvia de Ti.

No meu coração te transporto sem o dizer a ninguém, pois o que há de bom e precioso deve ser preservado do olhar cobiçoso.

O ouro que é meu, esse que é verdadeiro, não é o que se encontra nos cofres e nas baixelas. O ouro que está em mim, não reluz e nem se pode cambiar, tem só uma existência: a do espírito comparticipando no Todo.

Estou em comunhão contigo, Deusa, com a beleza imóvel e intensamente compassiva do teu olhar poisado sobre mim. Em teu coração eu me refugio, recebo tua proteção. Sou teu, dou-te a minha fidelidade e a verdade de meu ser.


[NO PAÍS DOS SONHOS] Tento do Primeiro Tom, Manuel Rodrigues Coelho




O horizonte está entrecortado por colinas, onde tufos incertos de bosquedos teimam em assinalar a sua presença. O rio está quase seco, apenas serpenteando um fio de água por entre pedras e juncos. Oiço gritos ao longe, de uma aldeia ou quinta a duas léguas do ponto onde descanso. O cavalo entretém-se com os raquíticos pastos, ressequidos pelo longo Verão da meseta. O calor ainda é demasiado para nos pormos a caminho. Não consigo pregar olho, pois as moscas zumbem em torno de nós, sem descanso. O Sol ainda está acima do horizonte; quando o crepúsculo chegar, retomarei caminho na estrada de Toledo.

Penso no que acabo de deixar para trás, os olhos humedecem-me. Desterrado, por mim próprio, para o todo sempre, condenado pelo amor impossível que me atormenta. Leal e dignamente, apenas me resta a opção de tomar o hábito de monge numa ordem religiosa.
Ela sabe onde me irei acolher, somente ela e mais ninguém. 
Ao entrar nesta fraternidade monástica irei receber um nome, atribuído pelo superior: somente ele saberá a minha identidade, o meu nome civil, o título nobiliárquico de que sou portador, desaparecerão. As minhas propriedades, todos os meus bens terrenos, pertencerão à ordem monástica. 

Isto custa-me infinitamente menos do que o facto de nunca mais vê-la, a Dona e Senhora de meu coração, a única.



[NO PAÍS DOS SONHOS] Fantasia em Fá menor Op.49, Chopin






Num subterrâneo mundo, onde as águas são iluminadas por debaixo, vogam algumas canoas com misteriosos movimentos ondulantes, muito suaves. Tudo o que se pode entrever do local é adivinhado aquando de brevíssimos clarões azulados, que mostram instantâneos de cenas petrificadas. 
Homens nus reclinados, com a cabeça rapada, deixam-se transportar nas canoas. Estas movem-se sem nenhum gesto de seu passageiro. Cada canoa acosta, sucessivamente, a um pequeno cais. Aí, mulheres muito belas, nuas, vistas de costas, entram sucessivamente, uma em cada canoa. Afastam-se e perdem-se as suas silhuetas no fundo da gruta, que é afinal um rio subterrâneo, que serpenteia por debaixo da terra, silencioso. 

Agora estou numa dessas barcas. Ela dirige-se a uma abertura ao longe, enquadrada pela vermelhidão de archotes. O rio subterrâneo desemboca numa enseada. Observo a paisagem calma da noite com estrelas e sem luar. Oiço claramente o ruído suave da onda a lamber a areia da praia. O vai e vem da maré deixa um rasto fosforescente, desenhando um contorno sempre em mudança a cada ondulação levemente esboçada no limiar das águas. 

Os vultos que caminham desde umas rochas a uns duzentos metros, vão-se aproximando do ponto onde me encontro. Todo o grupo está silencioso, apenas se ouve o ruído do chapinhar da água ao nível de seus calcanhares, pernas, coxas e por fim, mergulham, num deslizar calmo. Nadam longamente, mas a uma distância curta do ponto onde estou. 

Emergem por fim e aproximam-se da praia, fosforescentes, corpos esplêndidos, bem proporcionados, apenas se distinguindo o seu contorno. Tudo é magnífico e nada assustador. Estes corpos espectrais passam perto de mim, mas sem notar-me.

O sonho deixa-me uma sensação de alegria serena; estou envolto num halo de luz e contemplo o céu estrelado, com profunda gratidão.



[NO PAÍS DOS SONHOS] Bachanias Nº5, Heitor Villa-Lobos

- Estou numa barca, ela desliza pela água, com a brisa que a transporta. Em cada margem há floresta, caprichosas formas de árvores de todos os tamanhos, tons e formas…
A minha memória, saturada da beleza deste sol poente vai ao encontro de uma estrela que luz no céu, tão alva e tão singela, apenas visível por alguém que eu amo profundamente:
- Essa mulher está no interior do canto de uma ave, existe neste rincão de selva escondido. Está e chora a sua solidão, pois seu amante está sempre ausente. Porém, deteta-lhe o rasto nos fragores da maresia, nos cânticos das aves e no restolhar das folhas nas árvores. Quando ela ergue o olhar para a estrela, a sua alma fusiona com a do seu amor.
- A espera transmuta-se em encontro … recebi a carícia suave da amada, o peito estremece-me com a brisa fresca do ar matinal.





quinta-feira, 19 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Largo do Concerto para Dois Violinos de J. S. Bach



Obrigado, Bach! 

A doçura deste Largo do concerto para dois violinos é um veículo de transporte mágico para o meu passado. Estou a vogar para o sítio onde os meus anos floresceram. Estou embalado e enlevado pela beleza que se abre, desabrocha, no seio desta música… tal e qual quando a ouvi pela primeira vez. É como se abrisse os olhos à visão do espírito. Deus está em cada partícula e em cada vibração do som, como está no meu coração, quando o abro a esta música.
Obrigado, Bach! Agora estou a pensar em ti, em ti, em ti… estou, eu mesmo, a aproximar-me do teu coração… estou dentro dele como quem está escondido numa gruta, muito calma, muito secreta. Sou eu, o mensageiro dos sonhos, que venho dar-te um abraço longo, como tu abraças o gato, este felino que gosta de se espreguiçar… assim…
Serei felino ou serei homem, não importa.
Estou aqui nesta música, como veículo de teu encontro com o Universo.
Assim, podes dizer-me o que quiseres, na resposta a esta mensagem. Certamente, será ouvida a tua voz… certamente, ela receberá acolhimento e resposta. De minha lavra ou de alguém, de alguma entidade espácio-temporal. Não é necessário especificar mais, nós sabemos… que

…A ciência é boa por essência, somente a preguiça e falta de cuidado dos humanos insiste em distorcer e ver outro maravilhoso onde está a maior de todas as maravilhas: a realidade do universo, a nossa existência e a nossa inteligência de humanos em perceber e comungar com este TODO.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] MOZART Andantino p/ flauta e harpa K299

Sonhado, ouvindo flauta


 




Capto o instante, num olhar reflexo de nuvem, nos olhos da Deusa que nos acorda dentro do sonho e nos conduz ao país em que a realidade e nosso verdadeiro Eu se unificam.


Mas o mistério está muito para lá do instante, pois perdura nos meus ouvidos e não estou a ouvir apenas a música de Mozart, mas a música do chilrear de todas as aves da alvorada.

Neste país sem fronteiras, o meu entendimento maravilhado satisfaz-se com o simples enunciado dum gesto.
Perdura o instante que sempre existiu, desde todo o tempo que existe humanidade.

O coração reaprende a bater o ritmo, em perfeita sincronia com o suave tanger de uma harpa. 





[NO PAÍS DOS SONHOS] Concerto para Piano Nº3 , Prokofiev

Ofegante corria como um louco, até ao portal da casa. Teve de parar, a respiração faltava-lhe. Foi nesse preciso momento que a porta da datcha se abriu e apareceu Nadja, resplandecente na glória os seus dezassete anos. Vestia uma camisa de cores variadas, saia castanha e tinha o cabelo mal apanhado num carrapito, caíam-lhe madeixas pelos ombros. Seu cabelo loiro acobreado enquadrava um rosto muito oval, com lábios desenhando um sorriso discreto, a maior parte do tempo, quando escutava aquele estroina: Inclinava ligeiramente a cabeça, como que para melhor adivinhar o que ia sair dessa cabeça oca e seus olhos cintilavam ou tornavam-se nevoentos, consoante o seu estado de alma. Como se toda a expressão do rosto se concentrasse nos olhos.
Não havia nada de especial naquele relacionamento. Ou melhor, tudo era especial. O jovem e a jovem tinham um pacto não dito de total entrega espiritual e total castidade corporal. Como é isso possível em jovens saudáveis e sem preconceitos? Impossível de explicar. O facto é que ambos se sentiam muito à vontade nessa situação de «não namoro» e nada poderia mudar a disposição dos dois, por mais que as famílias respetivas e os amigos achassem que as coisas não iriam permanecer nesse pé.
Este Verão seria o último, mas eles não suspeitavam de nada. Abraçaram-se e olharam-se nos olhos. Depois, com um sorriso muito terno, Victor poisou um beijo na fronte de Nadja.
Esta desprendeu-se logo do seu abraço, tomou-lhe a mão e arrastou-o numa corrida através do salão, atravessando a porta sempre aberta da cozinha e mostrou-lhe …
 - «Olha! Sua ninhada de oito gatinhos»…
 A gata siamesa estava deitada na alcofa e lambia a cabeça e dorso de um dos gatinhos, numa toilete interminável de mãe-gata.
…...
[não sei como foi a seguir… nada! Apenas me lembro de ter acordado deste sonho com uma opressão no peito, como se algo de terrível tivesse ocorrido. Não sei o quê…]



terça-feira, 17 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] «Lachrimosa» excerto do Requiem de Mozart






- Quando chegar o momento em que a Alma do Universo me vier acolher no seu seio, medo não terei.


- Não sei como, nem quando será essa passagem, mas sei que nada me assustará, pois irei para junto dos entes meus queridos.

[NO PAÍS DOS SONHOS] Ballade Nº1, Sol menor, Frédéric Chopin




Restava somente um, de toda aquela casa, outrora ilustre. Tinha forçosamente que fazer a «guarda do castelo», não havia mais ninguém, todos tinham morrido ou fugido. O tempo era de incertezas; roubava-se, aprisionava-se, mutilava-se, matava-se … a gente boa estava fugida. Os bandidos reinavam. Impunham a sua barbárie. Tinham prazer em submeter e humilhar.
Não te irei esconder que passei as horas mais angustiadas de minha vida, nessa época terrível.
Mas o meu medo foi-se transformando em força. Fui aprendendo a dominá-lo. Fazia pequenas sortidas para me abastecer por perto, onde houvesse alimento. Trocava comida por tudo o que pudesse despertar a cobiça dos comerciantes. Já não circulava dinheiro: apenas se trocavam objetos ou serviços.
Era um tempo muito duro de escassez generalizada, exceto para alguns. Estes tinham tudo, em resultado do saque e da extorsão permanente. O obscurantismo de há mil anos voltara e instalara-se. O medo fazia o resto. Tinha de me manter sempre vigilante, dia e noite; era uma autêntica tortura. Só podia dormitar uns minutos por dia, sempre com a arma ao alcance da mão. Agitavam-se vultos durante a noite, mesmo por debaixo das janelas.
Eu ouvia os sons que os homens desesperados faziam, a meio da noite, quando entravam furtivamente no jardim. Eram pobres diabos, exaustos, que apenas bebiam um pouco de água de uma fonte e dormiam umas poucas horas sobre a terra debaixo de um arbusto. De início, tive medo deles, depois compreendi que eu lhes metia respeito a eles também, pois as luzes do interior, filtradas através das gelosias fechadas eram indício seguro de que havia habitantes dentro.
A verdade é que a presença noturna dos fugitivos era protetora contra verdadeiros ladrões e assaltantes. Somente tinha de me manter vigilante para que não fosse surpreendido por um bando organizado de malfeitores armados.
Esta situação manteve-se durante algumas semanas. Depois, apesar da catástrofe, a vida foi retomando os seus direitos. Conseguia ver isso pelo ar menos contraído das pessoas, o seu olhar nem sempre era de medo ou inquietação, às vezes esboçavam um sorriso. 
Os animais selvagens também se acolhiam ao jardim. Escolhiam sempre as horas de maior calmaria. Onde estivesse um melro, um ouriço-cacheiro, uma serpente… era terreno (provisoriamente) seguro. Eles escolhiam locais pacíficos como refúgio.
Por vezes avistava-se um falcão peregrino, poisado sobre um poste de iluminação, de onde observava o entorno.
Os gatos selvagens gostavam de vir furtivamente beber água no tanque das traseiras. Marcavam o território enterrando, em determinados pontos do jardim, seus excrementos. Ao fazerem isso, estavam a dar-me uma ajuda, pois os ratos cheiravam à distância a presença dos felinos e não se aventuravam pelos canteiros da minha horta improvisada.
O mais difícil era manter o equilíbrio perante a situação de incerteza permanente, que obrigava a estar sempre alerta. Mas aprendi a afugentar o medo e a olhar para uma situação aparentemente desesperada com uma certa serenidade.
 As visões que perpassavam pela minha mente, os sonhos acordados dessa época, eram - evidentemente - projeções da minha mente perturbada, mas não insana.






segunda-feira, 16 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Magnificat BWV 243 J.S.Bach


Deixou repousar em cima do peito o livro que estava a ler; fechou os olhos. Sentia um agradável torpor, embalado pela música de J. S. Bach




Neste estado, as imagens que lhe apareciam diante do espírito e sobretudo os sentimentos no seu peito, o transportavam para o êxtase:
Uma luz difusa fazia rebrilhar miríades de partículas de poeira doirada. Uma pulsação rítmica movimentava o tronco do sonhador, era o movimento do cavalo dócil, que se transmitia ao cavaleiro. Um jovem, no meio de uma orquestra de músicos empoados; estava entoando uma pura melodia jamais ouvida antes.
(Tudo era estranho, justamente por tudo lhe parecer familiar. Até o gato do vizinho se imiscuíra no sonho, com os seus movimentos circunspectos, cautelosos…)
Sobretudo, a estranheza era devida à impossibilidade de decidir onde se encontrava: se no seio da música de Bach, se no conforto do seu estúdio ou se no universo dos sonhos… Talvez estivesse nesses três universos em simultâneo. Era a alegria metafísica que o invadia, que o impulsionava a subir aquela escada de luminoso cristal que se erguia pelos céus em arcada, num majestoso arco-íris. O livro que tinha estado a ler, porém, não estava relacionado com tal visão. Embora não se saiba o conteúdo exato do mesmo, sabe-se que era de bioquímica. Com efeito, no campo dos sonhos onde evoluía, bailavam várias espirais caprichosas de proteínas, enroladas em torno de eixos invisíveis, em tons de vermelho, roxo, castanho e azul-escuro. Deslocavam-se, rodavam e pulsavam ao ritmo da música. Por vezes, aproximavam-se umas das outras, ou se afastavam como galáxias no Universo.

[Depois, mergulhou num torpor profundo e sua visão esfumou-se rapidamente.]





sábado, 14 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] Salmo Primeiro



SONHO 4:               Salmo Primeiro, Coro de monges do mosteiro de Optina (Rússia)



Eles aqueciam-se como podiam ao calor da fogueira. Estavam no meio da estepe gelada. Outros fogos tremeluzentes se viam por todo o horizonte. Irkutz estava a onze vestras. O acampamento fora ordenado ao cair da noite. Em Setembro já mordia o frio do outono. De vez em quando, ao longe, ouvia-se o tropel dos cascos da cavalaria, que passava perto do nosso acampamento. Ouviam-se também vozes em surdina, dos soldados do regimento de infantaria nº16, em torno da fogueira. Nunca mais se calavam; falavam de tudo e de nada. Rompido de cansaço, acabei por adormecer. Um suave calor bafejava-me o rosto.
Não sei se foi sonho ou foi realidade; não sei se ela se deslocou por artes mágicas até ao acampamento ou se sempre lá estivera:
- O que sei é que o seu rosto estava lá, no meio dos meus companheiros de armas. Aquele rosto trigueiro e oval, com olhos de faiança e cabelos de seda. Vestia com modéstia, mas o seu porte era de uma princesa. Sua doçura e espontânea bonomia derretiam-nos a todos. Ninguém era insensível à beleza, no meio de tanta  fealdade.
Vi o seu vulto levantar-se da roda da fogueira, com um movimento ondulante e flexível, erguendo-se no meio dos meus companheiros. Logo começou a entoar uma prece. Ela dizia o verso e o coro de homens respondia-lhe. As vozes entoavam os salmos num uníssono perfeito, tanto as dos velhos e ressequidos sargentos, como as dos jovens quase imberbes.
Tal era a perfeição, que me pareceu um encanto; era como se nada tivessem feito na vida, senão cantar a salmódia. Os versos eram espaçados por pausas. Nestas, o crepitar do fogo fazia-se ouvir. Maria estava no meio de todos nós, seus familiares, vizinhos, amigos.
Não havia ninguém que não conhecesse Maria; não havia soldado que ela ignorasse, a todos cumprimentava pelo patrónimo. Numa ocasião, vira como ela tratava de um ferido que tremia de febre - já nem conseguia segurar a colher ou a malga.
Senti-me feliz como nunca, nessa noite! Sabia que estava sob proteção dum anjo enviado pelo Senhor. Nem a morte eu temia!
Desde então, trilhei os caminhos da luz e da bondade, seguindo a Palavra, que ressoava na voz do povo.
Se foi sonho ou realidade, não sei. Para mim, isso é indiferente, pois a vida mudou-se totalmente a partir dessa noite.
Tive de sofrer muito; vi horrores, tive medo, frio, fome, fui ferido, bati o dente de febre, corri como um coelho diante da metralha. Esporei desesperadamente cavalos e cruzei ferro com inimigos ferozes, tão desesperados como eu. Percorri milhares de vestras em países distantes, sob climas tórridos ou gélidos. Sou o que sou, sem dúvida. Mas não tenho a arrogância de me considerar mestre de meu destino. A minha vida foi igual à de muitos homens, tão bons ou tão maus quanto eu. No entanto, sinto-me diferente. Tornei-me outro, a partir da noite da visão acima descrita. A simples evocação dessa noite, enche-me de suave júbilo. Iluminou vários momentos e episódios da minha jornada.  
Meu último desejo é somente que alguém transcreva estas palavras. Ámen.

[Alexei transcreveu, 17 de Outubro, Ano da Graça de 1842]

sexta-feira, 13 de maio de 2016

[NO PAÍS DOS SONHOS] «Sol de Mi Corazón»

                             «Sol de Mi Corazón», interpretado na guitarra e voz por Paulina Iñiguez



Sonhos sem memória embotaram-me a alma…

Assim falava quando queria designar alguém distraído…  
Avô, que dizia tudo em verso… afinal, estava a comunicar com o autor destas linhas, sem saber: sou seu neto mais novo, ainda não tinha nascido quando o Avô abandonou este vale de lágrimas.
Ele sofreu muito, mas não viu aquilo que veio a seguir. Deus poupou-lhe essa desdita. Ele foi-se embora esperançado no «Homem Novo». Deus foi carinhoso com ele.
Ele dizia «sou ateu, graças a Deus»! Avô és ateu como eu sou Teu… Avô, és um homem do teu tempo: racionalista, mas sem desprezo pelos crentes e respeitando a religião dos outros.
Porém, o Avô estava desligado do universo mental do catolicismo de sacristia. O mesmo se pode dizer de todos os descendentes em linha direta… uma espécie de tradição familiar.
Desculpa! Não estou aqui a falar contigo só para contar umas futilidades! Tenho coisas sérias para te dizer, Avô.
Teu neto, presente pela primeira vez perante o teu espírito… nunca te tinha visto antes, senão em fotos. Agora sei como és, na verdade: afável, atento, com teu olhar penetrante.
Tens o sorriso doce e meigo, mas és capaz de severidade, também. Teu magistério é o de um pai amado e temido!











Foi triste a tua partida, tão cedo deste mundo! O raio da Rickettsia …ou lá como se chama essa bactéria… levou-te em poucos dias!
Tua esposa Júlia, minha Avó, demonstrou – quando contava histórias sobre ti e sobre a família – quanto te amava, como se sentia saudosa, mesmo depois de tantos anos.
Seres amado assim para lá do tempo e da morte… diz tudo!
(Entretanto, chegou-me um muito curioso papel, «Caução 382509001» … no momento em que te ia falar do teu Filho e meu Pai, Luís Manuel. Isto desconcentrou-me, fiquei muito preocupado )
Avô, noutra ocasião, se quiseres, voltarei a falar contigo.




[NO PAÍS DOS SONHOS] Allemande da partita para flauta solo BWV 1013 de J.S. Bach


 (Adormeço e vou de novo para o país dos sonhos.)

Agora estou à porta de uma casa, no campo. Esta casa parece-me muito familiar, porém, ao mesmo tempo, não sei onde estou. 
É como se tivesse sido transportado de repente a um local onde já estive no passado, mas ao ignorar todo o caminho percorrido, tenho de tentar buscar na memória em que circunstâncias eu me encontrei em frente desta casa ou de outra semelhante a esta.
De repente, a porta principal abre-se e sai de lá um jovem apressado. Leva uma sacola a tiracolo; aparenta uns 20 e poucos anos… Ele não olha para o sítio onde me encontro. Está decidido, no passo largo, ligeiramente curvado, olhando fixamente o chão à sua frente. Que estará ele a pensar? Impossível saber! 
- Embora eu nunca venha a saber nada mais do jovem, agora já sei onde e como eu vi esta casa pela primeira vez: …. Curiosamente, este jovem desconhecido permitiu-me situar-me no tempo. Num tempo muito diferente deste, embora as casas e as indumentárias fossem pouco diferentes do que se vê agora.
Sim, foi há uns quarenta anos e aquele jovem…sim, era eu!